Foto de Jesse Gardner na Unsplash
Por Revista Fapesp | Antes da chegada dos europeus à América do Sul, a cultura Casarabe ocupava grandes áreas do sudoeste amazônico, em um período estimado entre os anos 500 e 1400. Cada vez mais surgem indícios de uma ampla população que, na planície boliviana conhecida como Llanos de Moxos, mantinha extensos milharais. E isso é surpreendente. Artigos publicados nos últimos meses permitiram classificar essas plantações como monoculturas, como o do fim de janeiro na revista Nature, reforçar a importância do milho na dieta humana e associá-lo à domesticação de patos, segundo o divulgado em dezembro na Nature Human Behaviour.
“Sempre achamos que as populações pré-colombianas daquela região cultivassem uma variedade de plantas, como as ‘três irmãs’ [milho, abóbora e feijão] na América Central, ou que adotassem práticas agroflorestais”, explica o arqueólogo ambiental italiano Umberto Lombardo, da Universidade Autônoma de Barcelona, na Espanha, autor principal do artigo da Nature, que teve participação de integrantes do grupo do arqueólogo Eduardo Góes Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP). “Encontrar uma monocultura de milho foi uma verdadeira surpresa”, completa ele, que viveu na região há pouco mais de 20 anos e pesquisa ali desde 2006.
Já se sabia, de trabalhos anteriores, que toda aquela área é repleta de resquícios de assentamentos humanos, com centenas de montes monumentais conectados por canais e caminhos. “Eles são organizados de acordo com um padrão hierárquico, com montes maiores no centro de agregados de montículos menores”, descreve Lombardo. “Isso sugeriria a presença de uma organização social acima do nível de cada assentamento, provavelmente com algum poder centralizado.”
Uma mistura de técnicas de sensoriamento remoto, análises microbotânicas e levantamentos de campo agora evidenciaram uma engenharia da paisagem voltada ao plantio, com canais de drenagem para escoar a água nos meses chuvosos, quando tudo alaga, e lagos para reter água na estação seca, o que também seria precioso para atrair caça. De acordo com a investigação de vestígios de plantas, como os fitólitos (moldes petrificados das células vegetais, preservados em grande quantidade nos Llanos de Moxos), havia uma presença intensa de milho nos campos e lagoas, mas não nas partes onde havia floresta – o que deixaria claro que o cultivo não se dava em um contexto agroflorestal.
“Por décadas houve muito debate sobre o papel do milho”, relata a arqueóloga britânica Jennifer Watling, do MAE-USP, que supervisionou o trabalho de pós-doutorado do arqueobotânico brasileiro Lautaro Hilbert, coautor do artigo, na região. A dúvida vinha, em parte, do fato de que é uma planta que requer solos férteis, o que se pensava não existir na Amazônia – e já se demonstrou falso com o conhecimento sobre a terra preta ainda hoje fabricada por povos indígenas.
Em menor escala, Watling e colegas identificaram – também nas áreas florestais – fitólitos de abóbora, mandioca, cabaça, entre outras plantas. “Nos pontos mais altos, que não alagam na estação das chuvas, há floresta, que provavelmente era manejada”, destaca. Segundo ela, o trabalho da Nature ressalta a importância do milho na dieta daqueles habitantes. O mesmo vale para o artigo de dezembro na Nature Human Behaviour, cujo primeiro autor é o arqueólogo brasileiro Tiago Hermenegildo. Ele estudou material dos Llanos de Moxos durante o doutorado, concluído em 2022, na Universidade de Cambridge, Reino Unido, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O material agora foi repatriado e está depositado no museu em Trinidade, Bolívia, construído como retribuição a partir de fundos do projeto europeu.
“No sítio há evidências consideráveis da presença do milho”, afirma Hermenegildo. “Há vestígios nas cerâmicas, no solo, nos restos de grãos e de sabugos.” Os achados dependem muito do acaso, que em parte determina o que é preservado ou não, e de estarem presentes nas áreas amostradas pelos arqueólogos, que recolhem os pequenos grãos depois de peneirar os sedimentos escavados. Para fugir um pouco dessa necessidade de sorte, Hermenegildo desde o mestrado se concentrou no estudo de isótopos estáveis, formas variadas de átomos cuja composição não se altera ao longo do tempo, como acontece com os radioativos.
“O tipo de carbono encontrado no colágeno preservado junto aos ossos é indicativo dos vegetais consumidos, enquanto o nitrogênio está associado à proteína animal”, explica. Ele complementa que na Amazônia não ocorrem naturalmente plantas do tipo C4 consumidas por seres humanos, como é o caso do milho, cujo mecanismo de fotossíntese produz moléculas com quatro átomos de carbono. Encontrar esse tipo de carbono em ossos humanos e animais indica, portanto, o consumo de milho.
Watling, que não trabalha com isótopos estáveis, considera esse tipo de análise mais informativo para inferir a dieta, já que se detecta aquilo que as pessoas e animais consumiram em vida. Mas o quadro mais amplo não deixa de ser importante. Antes do estudo isotópico, é fundamental conhecer a caracterização zooarqueológica e arqueobotânica do sítio, de acordo com Hermenegildo: quais animais e plantas existiam no contexto da vida humana. “Fomos descobrindo muitos ossos de pato durante a exploração do material de fauna”, conta ele. Isso foi surpreendente por ser incomum, e fez diferença nas interpretações.
Lagos pré-colombianos serviam para irrigação. Umberto Lombardo / Universidade Autônoma de Barcelona
O estudo trouxe os primeiros indícios arqueológicos reforçando a posição do pato-do-mato (Cairina moschata), nativo daquela região, como a única domesticação local a leste da cordilheira dos Andes. “Os isótopos estáveis mostram que eles comiam uma proporção de milho ainda maior do que as pessoas”, conta Hermenegildo. Ele ressalta, no entanto, que o uso das aves era provavelmente ritual – algo registrado em relatos deixados por padres que andaram por ali nos séculos XVI e XVII. “Ainda não dá para saber em qual contexto e quantidade as pessoas comiam patos.” Os dados de isótopos estáveis ainda não permitem distinguir as fontes de proteína animal, ele explica, mas os ossos de fauna recuperados da escavação são principalmente de cervídeos. Esses animais que podiam chegar a 40 quilogramas (kg) eram caçados e representavam uma refeição bem mais significativa para a comunidade.
Para Hermenegildo, o que seu trabalho mostra de mais importante é a centralidade do milho na alimentação pré-colombiana daquela área, cuja urbanização se deu em torno do cultivo. Há indícios, segundo ele, de uma rede de troca entre as terras baixas amazônicas e os Andes, de forma que utensílios e adornos de cobre aparecem em sítios dos Llanos de Moxos. O milho acabou sendo também plantado nas montanhas, mas ainda não se sabe por qual rota. “A domesticação desse cultivo à altitude demorou mais”, explica. Depois da chegada dos colonizadores europeus, as populações amazônicas começaram a ser dizimadas e os registros de milho também se tornam mais escassos, uma vez que a lavoura precisa de cuidado humano para prosperar.
Ossos de pato-do-mato, a única espécie local domesticada a leste dos Andes (à esq.), estão presentes nos achados arqueológicos (à dir.). Dan Vickers | Heiko Prümers / Instituto Arqueológico Alemão
“O sudoeste da Amazônia é um importante centro de diversificação em que raças nativas de milho foram desenvolvidas e adaptadas”, reitera a geneticista Flaviane Costa, pesquisadora em estágio de pós-doutorado na Universidade de Oxford, Reino Unido, que não participou dos estudos. Para ela, que é especialista na domesticação do milho e nas raças nativas ainda hoje plantadas na Amazônia, entender o histórico ligado à agricultura e ao patrimônio genético e cultural é importante inclusive, no âmbito de políticas públicas atuais de conservação e de segurança alimentar.
Costa considera crucial que os estudos de Hermenegildo, Lombardo e colaboradores sejam aprofundados para mensurar o tamanho dos campos de cultivo da cultura Casarabe e entender a diferença em relação ao que os povos indígenas praticam hoje. Ela põe ressalvas no uso do termo “monocultura”. “Os sistemas agrícolas tradicionais são muito dinâmicos em relação ao manejo e cultivo do milho e conservam uma diversidade grande em termos de raças locais e suas características, possibilitando usos diversos.” De acordo com Lombardo, os achados na Bolívia sugerem que a produção de alimento seria suficiente para alimentar uma população numerosa, mas isso ainda é especulativo. “Precisamos de um mapa de todos os lagos e canais para ter uma estimativa de quanto poderia ser produzido na área inteira, e a partir daí talvez possamos traçar um modelo da população passada”, planeja o arqueólogo italiano.
Este texto foi originalmente publicado por Revista Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
Utilizamos cookies para oferecer uma melhor experiência de navegação. Ao navegar pelo site você concorda com o uso dos mesmos.
Saiba mais