Em 18 de outubro passado, a régua da Marinha que há 120 anos mede a altura do rio Paraguai no município sul-mato-grossense de Ladário, vizinho a Corumbá, marcou -33 centímetros (cm) em relação ao zero. Foi o menor registro desde setembro de 1971, quando atingiu -51 cm, e entre os seis piores da história da escala, a mais antiga das seis instaladas ao longo da bacia do Paraguai, cujas cheias e secas ditam o pulso periódico de inundação que faz o Pantanal ser a maior província alagada do planeta. O recorde negativo foi em 1964, quando a régua de Ladário apontou -61 cm. Em 18 de outubro de 2019, um ano não chuvoso, a marca da escala estava em 1,76 m acima do zero, 2 metros mais alta.
Entre novembro e meados de março deste ano, período que costuma concentrar o grosso das chuvas anuais sobre a região, a pluviosidade sobre a bacia foi de apenas 350 mm, pouco mais de 40% da média histórica, segundo levantamento da Embrapa Pantanal. “Neste ano, temos o menor nível de inundação do Pantanal em meio século”, comenta o biólogo José Sabino, especialista em peixes da Universidade Anhanguera-Uniderp, de Campo Grande. O zero da régua de Ladário indica que o rio Paraguai apresenta, naquele trecho, apenas 4 metros de profundidade. Além de inviabilizar a navegação na hidrovia, com prejuízos para o escoamento da produção de soja e minério do Centro-Oeste, níveis tão baixos atestam a gravidade da escassez hídrica.
A grande seca é o pano de fundo da escalada atual de queimadas que assola o Pantanal, o menor dos seis biomas terrestres brasileiros. No Brasil, o Pantanal se estende por 150 mil quilômetros quadrados (km2) dos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, área equivalente a 1,8% do território nacional. Uma pequena parte do bioma, algo como 30 mil km2, encontra-se em áreas adjacentes do Paraguai e da Bolívia, coladas à fronteira brasileira. A intensidade do fogo em 2020 não tem registro histórico recente e contribui para sufocar ainda mais o pulso das águas no bioma, causando destruição em sua flora e fauna. Cenas de grandes labaredas consumindo a vegetação — um misto de florestas, cerrados e campos que ocupam 84% do Pantanal — e imagens dramáticas de onças, jacarés e aves mortos correram o noticiário nacional e internacional.
Entre janeiro e 18 de outubro de 2020, 27% da área do ecossistema tinha sido alvo de incêndios, inclusive setores dentro de unidades de conservação e terras indígenas, segundo dados do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Em média, a área do Pantanal brasileiro que sofre com queimadas não passa de 10%”, diz a climatologista Renata Libonati, uma das coordenadoras do Lasa, que acompanha o avanço das labaredas no bioma desde o ano passado. “O Pantanal se desenvolveu com um certo grau de adaptação ao fogo e é capaz de se regenerar em parte, mas não se mantivermos os níveis atuais de incêndios.” Com o emprego de um algoritmo que reconhece automaticamente áreas de queimadas em meio às imagens captadas pelo sensor Visible Infrared Imaging Radiometer Suite (VIIRS) do satélite norte-americano S-NPP, o trabalho do Lasa consegue identificar incêndios em áreas de pelo menos 25 hectares, um quadrado com 500 metros de lado.
Dados do programa de queimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) também apontam uma incidência sem paralelo do fogo no bioma. Até 25 de outubro, haviam sido contabilizados 20.996 focos de incêndio no Pantanal, mais do que o dobro de todo 2019, quarto pior ano da série histórica. A quantidade de focos nos 10 primeiros meses de 2020 supera com folga os números referentes aos anos inteiros desde 1998, quando se iniciam os registros do programa no Pantanal. Antes de 2020, o ano mais crítico para as queimadas na região tinha sido 2005, com 12.536 focos.
A forte estiagem prolongada cria condições para que o fogo se mantenha e se propague mais facilmente, mas, sozinha, é incapaz de acender a faísca que inicia os incêndios. “São necessários três ingredientes para que ocorra um incêndio florestal”, explica Libonati. “Precisa haver o combustível, o comburente e a ignição do fogo.” O material combustível é a vegetação, que em anos secos fica mais exposta e ainda mais suscetível ao avanço das labaredas. O comburente, aquilo que reage com o combustível e alimenta o fogo, são as condições meteorológicas, como estiagem prolongada, baixa umidade do ar, altas temperaturas e forte vento. O processo de ignição pode se dar de duas formas, naturalmente, por meio de raios, ou causado pelo homem.
Diferentemente do que ocorre na Amazônia, um bioma muito úmido onde os incêndios naturais são considerados inexistentes, raios podem iniciar focos de fogo no Pantanal, mas apenas em condições muito específicas. A combustão da vegetação sem intervenção humana ocorre somente na transição entre a estação seca e a úmida e vice-versa, quando há produção de raios. No entanto, esses incêndios causados por descargas elétricas costumam ser extremamente raros. “A estação chuvosa de 2019 tinha sido fraca no Pantanal. A de 2020 também foi menor do que o normal. Essa estiagem prolongada, somada ao ar seco e quente, favorece a ocorrência de queimadas de maior extensão”, explica o climatologista José Marengo, chefe do setor de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Em 2020, dois terços dos quase 21 mil focos de queimadas se concentraram em agosto e setembro, bem no auge da estação seca, segundo dados do Inpe.
Essa situação reforça a ideia de que a maior parte dos incêndios do Pantanal tenha se iniciado por ação humana. Usar o fogo para queimar excesso de vegetação e regenerar o solo para a agricultura é uma prática antiga, usada em várias partes do mundo. Além de eventuais benefícios para o plantio, esses incêndios, se pequenos e controlados, diminuem a quantidade de biomassa que poderia ser usada para provocar grandes queimadas. No Pantanal, não é diferente. Embora polêmico, o procedimento, quando feito dentro da lei e com critérios técnicos, não tem potencial de gerar incêndios na quantidade e na extensão verificadas neste ano.
É possível que, em um ano muito seco como 2020, alguns fogos intencionais que seriam facilmente administráveis tenham saído de controle por uma combinação de fatores, como inexperiência de seus propagadores ou excesso de biomassa (vegetação) disponível no solo. Resta também a hipótese de fogo proposital, incêndios criminosos com o objetivo de abrir novas áreas de pastagem para gado, a grande atividade econômica do Pantanal, e de agricultura. “Não se pode descartar o dolo como causa de muitos incêndios”, comenta Sabino. “Vemos que muitas queimadas se iniciam fora de áreas protegidas e avançam pelo interior das unidades de conservação.” Embora um decreto federal de 15 de julho tenha proibido as queimadas em propriedades rurais de todo o país por 120 dias, e os governos dos estados de Mato Grosso e Mato do Grosso do Sul também tenham adotado medidas semelhantes, o Pantanal continuou ardendo.
Diferentemente da Amazônia, onde há grandes extensões de florestas públicas, mais de 90% da área do Pantanal é propriedade privada. “É possível saber quem são os donos das terras em que as queimadas ocorrem e responsabilizá-los na forma da lei”, diz Libonati. A atuação de órgãos federais da área do meio ambiente também tem sido tímida e descoordenada na prevenção e no combate aos incêndios. No dia 21 de outubro, o Ministério do Meio Ambiente, por exemplo, determinou que os brigadistas do Sistema Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo) parassem em todo o país seus esforços para conter as chamas e voltassem a suas bases. Comunicado do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) justificou a medida alegando falta de recursos. Dois dias mais tarde, em 23 de outubro, segundo o site Poder360, o Ibama recebeu mais verba e ordenou a volta dos brigadistas ao trabalho de campo.
A dinâmica que faz do Pantanal um bioma praticamente único deriva de suas condições naturais muito particulares. Trata-se de uma extensão de terra extremamente plana, uma planície, com altitudes que raramente ultrapassam os 200 metros. Sua parte norte, no entanto, é ligeiramente mais elevada do que a sul. A cada quilômetro que se percorre no sentido meridional a altitude do terreno diminui, em média, poucos centímetros. Essa diferença cria uma suave inclinação e faz com que toda a água que entra na bacia do Paraguai flua na direção Cáceres-Corumbá-Porto Murtinho. O leito do rio Paraguai e seus afluentes é o caminho natural para onde a água das chuvas se encaminha. Para o ciclo de cheias e secas, é importante chover não apenas localmente, mas também nas nascentes dos rios, localizadas nos planaltos do entorno, que fluem para áreas mais baixas da planície. “Pode demorar até seis meses para as águas mais ao norte da bacia chegarem ao sul do Pantanal”, diz o geólogo Mario Assine, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Rio Claro, que há 25 anos estuda a geomorfologia da região.
A descida das águas fluviais é tão lenta porque o rio Paraguai, cuja extensão total chega a 2.700 km, apresenta em território nacional dois grandes gargalos: um ao norte, quando o rio encontra a serra do Amolar; outro, cerca de 500 km ao sul, em Urucum. Os estreitamentos de margem fazem as águas do rio transbordar em vários pontos da planície e criam a paisagem sazonalmente inundada, pontuada pela cheia de várzeas e presença de lagos e áreas alagadas. Por meio de imagens de satélites de 2006, Assine e colaboradores acompanharam o caminhar das cheias e secas durante um ano típico no bioma, conforme mostraram no livro Dynamics of the Pantanal wetland in South America, editado em 2016.
De acordo com o estudo descrito no livro, em janeiro de 2006 apenas um trecho modesto do noroeste do bioma e sua parte central, em torno do rio Taquari, estavam inundados. De março até maio, a cheia se intensificou nessas áreas e penetrou até em trechos do centro-leste do Pantanal, zona menos suscetível às cheias. Em junho e julho, no auge da estação mais seca, praticamente toda a porção ocidental do bioma, de norte a sul, estava sob as águas – um reflexo das chuvas que tinham caído em sua porção setentrional no início do ano. Entre agosto e novembro, o oeste começou a secar, mas setores da região central, em torno do Taquari, permaneceram alagados, ainda que de forma menos expressiva. “A existência dessa dinâmica de inundação é essencial para a manutenção do Pantanal”, diz Assine. “Se ela se alterar, a planície se descaracteriza.”
Estudos feitos antes da seca deste ano e da escalada das queimadas indicam que o ciclo de inundações pode estar perdendo força. Artigo publicado em setembro deste ano na revista científica Acta Limnologica Brasiliensia calculou uma redução de 16% na extensão da área alagada no norte do Pantanal no mês de agosto, que marca o pico de estação seca, em um período de 10 anos. Em 2008, a área sob as águas chegava a 1.125 km2, segundo imagens de satélites. Em 2018, era de 950 km2. “Isso ocorreu porque houve uma diminuição no número de dias com chuva nessa área”, comenta o ecólogo aquático Ernandes Sobreira Oliveira-Júnior, da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), de Cáceres, principal autor do estudo. No trabalho, Oliveira-Júnior e seus colegas analisaram uma série histórica da pluviosidade média mensal de 42 anos, entre 1971 e 2013. “Hoje o norte do Pantanal tem 13% mais dias sem chuva do que ocorria há 50 anos”, compara o pesquisador da Unemat.
As previsões sobre o clima futuro no Pantanal são de natureza incerta. “A maior parte dos modelos climáticos aponta para um aumento de temperatura nas próximas décadas”, explica Marengo. “Ainda que não haja um consenso sobre qual seria a tendência das chuvas, a maioria das previsões indica um clima mais seco nesse bioma.” Por ter a Amazônia ao norte, fonte de umidade para todo o país com seus “rios voadores” (ver Pesquisa FAPESP nº 158), os níveis de pluviosidade do bioma são em parte influenciados pelo que ocorre na grande floresta tropical. Se cair menos água na Amazônia, provavelmente o Pantanal receberá menos umidade. Da mesma forma, se chover menos nas nascentes dos rios da bacia do Paraguai, que se situam em áreas próximas de Cerrado, a grande planície inundável se encolhe.
Um artigo publicado no periódico PLOS One em janeiro deste ano, antes do início das queimadas mais expressivas de 2020, sugere que o Pantanal pode ser alvo no futuro próximo de uma das manifestações mais típicas das chamadas mudanças climáticas: o aumento dos eventos extremos. Nessa categoria de oscilações exacerbadas do clima, são incluídos tanto períodos intensos e prolongados de chuvas como de secas. No caso do Pantanal, haveria especialmente, segundo o trabalho, uma tendência de ocorrer reiteradas estiagens pronunciadas. “Essas secas seriam ocasionadas fundamentalmente pelo aquecimento das águas superficiais dos oceanos Atlântico e Pacífico no hemisfério Norte”, disse a Pesquisa FAPESP o biólogo alemão Karl-Ludwig Schuchmann, do Museu de Pesquisa Zoológica A. Koenig, em Bonn, e da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), principal autor do paper. “Se o regime de chuvas entrar em colapso, o Pantanal, como conhecemos hoje, acaba.”
Depois da segunda quinzena de outubro, como era esperado, as chuvas começaram a voltar ao Pantanal. Ainda não se sabe qual pode ser sua extensão. Elas devem contribuir para diminuir as queimadas, mas também causar um problema típico das temporadas pós-fogo: carregar as cinzas dos grandes incêndios e biomassa oxidada para os rios e lagoas e provocar a morte por sufocamento de peixes e seres aquáticos. Esse fenômeno anual e natural, conhecido como decoada, reduz a quantidade de oxigênio disponível na água e aumenta a de dióxido de carbono. “É possível que ocorra uma decoada mais intensa do que o normal”, diz Sabino, que estuda os peixes do Pantanal. “Se, após os incêndios recordes, a matéria queimada não se infiltrar no solo, é provável que ocorra uma decoada sem precedentes.”
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