O problema da mobilidade é a carrocracia, e não a matriz energética

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A Holanda, conhecida por sua cultura ciclística, enfrenta um dilema moderno: o espaço urbano está cada vez mais disputado entre carros, bicicletas e novos veículos, como e-bikes e fatbikes. Enquanto o debate sobre mobilidade elétrica ganha destaque, especialistas alertam que o problema central não é apenas a emissão de poluentes, mas a ocupação desproporcional de espaço pelos automóveis, também chamada de “carrocracia”. Com mais de 9 milhões de carros circulando pelo país, metade do espaço urbano é dedicado a eles, deixando pouco espaço para outras formas de transporte.

A expansão dos carros na Holanda é histórica. Em 1950, eram 120 mil veículos; em 1965, esse número saltou para 1 milhão. Hoje, a frota ultrapassa 9 milhões, percorrendo mais de 100 bilhões de quilômetros por ano. Apesar de 14% dos carros serem elétricos, a infraestrutura urbana ainda privilegia os veículos de quatro rodas, o que gera conflitos e desafios para outras modalidades de transporte.

Clara Glachant, especialista em micromobilidade da Universidade de Tecnologia de Eindhoven (TU/e), destaca em sua pesquisa que os carros são tão enraizados na cultura que sua presença é naturalizada. No entanto, essa mentalidade precisa mudar para enfrentar os desafios atuais. A popularidade crescente de fatbikes, por exemplo, tem levado a um aumento de acidentes, especialmente entre jovens. Esses veículos, que podem atingir mais de 25 km/h, estão sob escrutínio, com propostas para regulamentação, como idade mínima e uso obrigatório de capacete.

Para Glachant, a solução não está em banir completamente os carros das cidades, mas em repensar o desenho urbano. Reduzir o limite de velocidade para 30 km/h nas cidades é uma medida que pode tornar as ruas mais seguras para ciclistas e pedestres, além de incentivar o uso de bicicletas. No entanto, em locais como Amsterdã, onde e-bikes e fatbikes muitas vezes superam a velocidade dos carros, novos desafios surgem.

A pesquisa de Glachant também aponta para a necessidade de criar novas categorias para veículos emergentes. A tentativa de encaixar novos modelos de transporte em estruturas existentes gera confusão e resistência. Políticas públicas devem desenvolver frameworks específicos para integrar adequadamente essas inovações ao sistema de mobilidade.

Exemplos de sucesso já podem ser observados em cidades como Utrecht, onde intervenções urbanas transformaram antigas rodovias em espaços para pedestres e ciclistas. A reabilitação da Catharijnesingel, antes uma via de 12 pistas, e o desenvolvimento do distrito Merwede, livre de carros, são exemplos de como o planejamento urbano pode promover formas alternativas de transporte. Além disso, Utrecht tem investido na expansão da infraestrutura ciclística, tornando-se um modelo a ser seguido.

Internacionalmente, cidades como Paris e Bogotá também têm avançado nessa direção. Em Paris, os cais do Sena foram transformados em zonas livres de carros, enquanto Bogotá implementou o conceito de “Ciclovía”, fechando ruas para carros aos domingos e feriados, incentivando o uso de bicicletas.

Apesar dos avanços, a Holanda ainda tem um longo caminho a percorrer. Medidas como a redução de vagas de estacionamento em áreas centrais e a construção de moradias e escritórios próximos a estações de trem são passos importantes para tornar o transporte público mais atrativo e liberar espaço para outras formas de mobilidade.

Enquanto isso, pesquisas como a de Glachant continuam a fornecer insights valiosos. Seus resultados, que serão apresentados ao Ministério da Infraestrutura, podem ajudar a moldar políticas públicas mais eficazes. O desafio é garantir que essas descobertas não fiquem apenas no papel, mas se traduzam em ações concretas que promovam uma mobilidade mais sustentável e segura para todos.

Stella Legnaioli

Jornalista, gestora ambiental, ecofeminista, vegana e livre de glúten. Aceito convites para morar em uma ecovila :)

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