A Constituição estabelece que todos nós temos – mas as crianças com prioridade absoluta – o direito ao meio ambiente saudável e estável. As consequências da má gestão socioambiental e climática no Brasil atingem principalmente as crianças, que são mais vulneráveis a alterações em seus ambientes. As múltiplas infâncias brasileiras, como indígenas, ribeirinhas, quilombolas, rurais e urbanas, têm voz e devem ser contempladas como cidadãs
Por JP Amaral*, Angela Barbarulo** e Danilo Farias*** em Página22 – No dia 30 de março, o Supremo Tribunal Federal deu início ao julgamento de uma série de ações, chamadas de “pacote verde”, que será retomado esta semana. São sete processos que procuram garantir medidas efetivas de preservação da natureza e mitigar impactos socioambientais. As consequências da má gestão socioambiental e climática no Brasil atingem principalmente as crianças, que são mais vulneráveis a alterações em seus ambientes.
A alta corte tem nas mãos a possibilidade de agir sobre o cumprimento das metas de redução do desmatamento (ADPF 760), a Política Nacional de Mudança do Clima (ADO 54), a fiscalização efetiva do Ibama (ADPF 735), o Fundo Amazônia e o financiamento da política de combate ao desmatamento (ADO 59), a criação de padrões efetivos para a qualidade do ar (ADI 6148) e o investimento em atividades carbono-intensivas (ADI 6808).
Esse pacote verde evidencia a omissão e violação sistemática de princípios constitucionais na política ambiental do governo Jair Bolsonaro. A ministra Cármen Lúcia, relatora das ações que deram início ao julgamento, defendeu que o Estado não pode retroceder na preservação ambiental, e que é obrigação do poder público garantir tal preservação com uma atuação eficiente. Que o enfraquecimento do quadro normativo em matéria ambiental é a comprovação de uma “cupinização institucional” em curso, configurado pela corrosão invisível das instituições.
Esse panorama inclui a redução da fiscalização, o não cumprimento e uso efetivo dos recursos orçamentários da pasta ambiental e a inexistência de um plano de combate ao desmatamento, comprovados nas ações em julgamento. A taxa de desmatamento da Amazônia alcançou a marca de 13.235 quilômetros quadrados, entre agosto de 2020 e julho de 2021, representando um aumento de 75% em relação a 2018. Essa alteração do uso da terra, com as queimadas que o precedem, constitui uma das principais fontes de emissão de gases do efeito estufa no Brasil, além de uma fonte de poluição do ar que impacta especialmente a saúde e a vida das crianças.
A paralisação do Fundo Amazônia, principal fonte de financiamento de projetos para a execução do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), a partir de 2019, evidencia a omissão do governo federal no cumprimento de suas obrigações de proteção à Floresta Amazônica.
Além da expressiva redução das emissões de gases de efeito estufa, os projetos apoiados e desenvolvidos pelo Fundo contribuíram para resultados significativos na prevenção, monitoramento e combate ao desmatamento e de promoção da conservação e do uso sustentável das florestas na Amazônia Legal. Tal omissão impede o cumprimento das metas climáticas assumidas pelo Brasil, além de saltar aos olhos o recurso disponível do Fundo Amazônia no valor de R$ 3 bilhões.
No que se refere à poluição atmosférica, o Brasil encontra-se em descompasso em relação aos padrões de qualidade do ar definidos pela OMS. Globalmente, 93% de todas as crianças respiram ar com concentrações mais elevadas de poluentes do que a OMS considera seguras. No Brasil, das 27 Unidades Federativas, 20 (74%) não realizam o monitoramento; ou deixaram de realizar; ou realizam de forma obsoleta ou ineficiente, e apenas 26% atendem o regulamento vigente.
Todas essas discussões, que serão enfrentadas pelo STF, têm relação direta com a crise climática e a proteção de direitos fundamentais e humanos, como o direito à vida, à saúde e bem-estar, à alimentação, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à segurança no núcleo familiar, muitas vezes violado por desastres socioambientais advindos da má gestão em estratégias de mitigação e adaptação.
O relatório da Unicef, lançado em agosto do ano passado, revelou que quase todos as meninas e meninos na Terra estão expostos a pelo menos um risco climático e ambiental. Tanto que a Unicef classificou a crise climática como uma “crise dos direitos das crianças”. Hoje, 1 bilhão das crianças vulneráveis do mundo estão em risco. Se nada for feito, amanhã serão todas.
À medida que as autoridades públicas abordem esses problemas, elas farão escolhas que terão efeitos profundos sobre a robustez e integridade da Terra e sobre o bem-estar das presentes e futuras gerações. A equidade entre gerações é central e é, portanto, imperativo, que o princípio da equidade intergeracional esteja no centro do debate jurídico. Também é importante evocar o princípio constitucional da precaução, que revela a responsabilidade para com as futuras gerações e coloca todos os indivíduos vivos no presente, como guardiões do tempo e das vidas futuras.
A dimensão intergeracional do princípio da solidariedade aponta também para um complexo de responsabilidades e deveres das gerações contemporâneas em resguardar condições existenciais para as pessoas que virão a habitar o planeta, e também da solidariedade de adultos para com as crianças, as mais afetadas pela crise climática e socioambiental.
Tudo isso encontra suporte constitucional nos artigos 225 e 227, que estabelecem, respectivamente, que todos nós temos, mas as crianças com prioridade absoluta, o direito ao meio ambiente saudável e estável. As múltiplas infâncias brasileiras – indígenas, ribeirinhas, quilombolas, rurais, urbanas etc. –, precisam das florestas em pé. Elas também têm voz e devem ser contempladas como cidadãs.
É por isso que o Instituto Alana apresentou aos ministros do STF, por meio de cartas e desenhos, como elas expressam, cada qual a sua maneira, suas ideias e reflexões sobre os objetos das ações. Nosso objetivo é que essas manifestações sejam levadas em consideração no julgamento. O STF tem nas mãos o presente e o futuro das infâncias.
* João Paulo (JP) Amaral é coordenador do programa Criança e Natureza, do Instituto Alana.
**Angela Barbarulo é coordenadora do Projeto Justiça Climática e Socioambiental, do Programa Criança e Natureza, do Instituto Alana.
*** Danilo Farias é advogado do Instituto Alana.