Por Alessandra Ueno em Jornal da USP | Memórias são acontecimentos que já ocorreram, mas cada pessoa lembra à sua maneira. Entretanto, o que muitos não sabem é que existem memórias coletivas e essas podem ser até falsas. Altay Souza, doutor em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP, explica: “Memórias coletivas podem ser entendidas como um conjunto de informações, memórias e conhecimentos que são compartilhadas e são associadas de forma significativa com a identidade ou valores de um grupo específico. Essas memórias coletivas podem ser construídas, modeladas e transmitidas tanto por grandes grupos quanto por pequenos e são presentes em nações, passam por gerações, comunidades e famílias”.
O professor Renato Cymbalista, da disciplina Lugares de Memória e Consciência da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, acrescenta: “Elas são memórias que se alojam em grupos, comunidades, que podem ser de todos os tipos: políticas, religiosas, institucionais. São narrativas, encadeamentos de fatos no passado que, de alguma forma, são relevantes para a coesão e identidade dos grupos no presente”.
As memórias coletivas falsas precisam de cuidado a serem analisadas, já que, para Souza, a questão não é pensar porque elas são falsas e, sim, o quanto de verdade cada memória possui em um determinado momento. Ele ainda ressalta a importância de diferenciarmos história e memória: “As memórias podem ser individuais ou coletivas e representam percepções, sentimentos e opiniões que são resultado de um evento ou podem ter sido gerados por ele. Já a História tem um compromisso importante com a verossimilhança dos fatos, bem como é um resultado integrado de muitos pesquisadores que revisaram dados, fatos e cenários históricos para construir uma interpretação consensual das motivações e desencadeantes de um certo evento”.
Na mesma linha de raciocínio, Cymbalista comenta: “Todas as comunidades e sociedades precisam de narrativas que conectem presente e passado, que mantenham os grupos coesos. Mesmo quando inventam ou distorcem os fatos do passado, essas narrativas, de certa forma, criam novas verdades. Os historiadores são muito importantes para revisitar as fontes periodicamente e mostrar os caminhos das nossas memórias coletivas”.
O “Efeito Mandela” é um nome famoso dado a casos de memórias coletivas falsas. Essa denominação apareceu em 2010, porque o fato de muitas pessoas pensarem que Nelson Mandela havia morrido na prisão nos anos 80 viralizou. Mandela, na verdade, morreu em 2013. Nesse caso, Souza coloca que essas lembranças são, geralmente, partes dos estímulos que trocamos ou confundimos, ou seja, não são o estímulo todo. Isso quer dizer que essas memórias coletivas falsas são omissões dentro de um fato maior.
As informações mais propícias de serem falsificadas pela memória aparecem recorrentemente, dependendo do grupo, mas não têm uma grande relevância no caso do “Efeito Mandela”: “Todo mundo conhece o Mandela, é uma informação comum para nosso grupo, mas a importância relativa dessa informação frente a outras faz com que lembremos dele com vieses. Esses vieses são modelados pelo ambiente, pois todos que conhecem o Mandela costumam conhecer por fontes parecidas (escolas, jornais, sites etc.). Lembrando que uma certa informação suscetível ao ‘Efeito Mandela’ no Brasil pode não repercutir em outros locais”. Logo, a existência desse caso de memória coletiva falsa leva em conta os fatores de sua existência, como o grupo conhecer Nelson Mandela, ter contato com informações similares e, por mais que o conjunto de indivíduos influenciados não esteja fisicamente presente, como no caso de memórias coletivas de grupos sociais, essas características os unem.
Alguns exemplos são: a cor da cauda do Pikachu, um dos personagens do anime Pokémon; a fala de Darth Vader para Luke Skywalker no filme Star Wars: O Império Contra-Ataca; a frase dita pela Rainha Má ao Espelho Mágico no filme Branca de Neve e os Sete Anões; entre outros.
Quando se fala em falsidade em informações, as fake news são uma das primeiras a se relacionar com o tema. Uma dúvida possível é a relação entre as memórias coletivas falsas e o fenômeno dessas notícias enganosas que atingem também um coletivo.
Souza pontua que as memórias coletivas falsas não têm nada a ver com as fake news: “O primeiro é um fenômeno coletivo comum a certos grupos e existe desde a origem de nossa espécie. Já as fake news envolvem um processo mais sofisticado de desinformação baseado em uma solução fácil, porém errada, para lidar com um fenômeno complexo”. Porém, ele adiciona que a capacidade humana de gerar memórias falsas é uma condição para que as fake news pudessem se estabelecer, mas não são o mesmo fenômeno.
Cymbalista complementa: “Não sei se devemos encaixar fake news na categoria de memória coletiva falsa. As memórias coletivas são construídas no decorrer das décadas. As fake news são instantâneas, elas são desmentidas imediatamente e precisam ser esquecidas, até para dar lugar para novas fake news”.
As memórias coletivas falsas mais comuns, no caso, as que fazem parte do “Efeito Mandela”, não atrapalham a vida em comunidade e até geram memes, isto é, publicações engraçadas que viralizam rapidamente na internet. Entretanto, as fake news, sendo frutos também da capacidade de gerar tais memórias, são um grave problema. Dessa forma, Souza comenta: “A questão aqui não é falar que nós somos pessoas limitadas ou irracionais, isso não responde a questão; mas, sim, promover a regulação das redes sociais para que as fake news tenham menos sucesso e as memórias coletivas falsas sejam apenas memes que distraem as pessoas sem maiores consequências”.
Este texto foi originalmente publicado pela Jornal da USP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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