BOA VISTA — Ainda na escola, Ariene dos Santos Lima, 24, adotou o sobrenome indígena Susui. A palavra, em seu idioma ancestral Wapichana, significa “flor”, justamente o adereço que Ariene Susui mais gosta de usar e que a acompanha em suas muitas versões: jornalista, defensora da causa indígena em movimentos sociais e candidata a vereadora em Boa Vista.
Os Wapichana são a segunda etnia mais numerosa de Roraima, atrás apenas dos Macuxi, que, não por acaso, é o apelido de quem nasceu no estado. No passado, agrupamentos das duas etnias ultrapassaram os atuais limites territoriais de Roraima e do Brasil, avançando Guiana adentro. Hoje, grupos Wapichana ainda vivem entre os territórios dos países vizinhos.
Outros povos, como os Paraviana, tiveram destino ainda mais trágico do que o da dominação pelo invasor: acabaram aniquilados pelos primeiros colonizadores europeus. “No estado inteiro, apenas nove dos 30 povos ainda existem”, relata Ananda Machado, antropóloga da Universidade Federal de Roraima (UFRR). Os Paraviana, hoje, dão nome a um bairro nobre de Boa Vista.
Apesar de a primeira colonização de Roraima ter ocorrido nos anos 1700 com a construção do Forte São Joaquim, foi só na década de 1930 que houve um grande crescimento populacional na região, com a descoberta de minas de ouro e diamantes. Há até mesmo um monumento em homenagem aos garimpeiros, no centro da capital.
Roraima era considerada um território federal até a proclamação da Constituição Federal de 1988, quando se tornou oficialmente um estado. Mesmo com o interior ainda pouco urbanizado, a capital Boa Vista viu um rápido desenvolvimento. Esse intenso processo de urbanização acabou empurrando os povos Wapichana e Macuxi para cada vez mais longe da margem do Rio Branco, que corta a capital, perdendo boa parte de seu território original.
“Minhas bisavós contavam que os igarapés dentro do município eram usados para tomar banho, lavar utensílios e ter filhos [dar à luz]”, conta Eliandro Pedro de Souza Wapichana, também antropólogo pela UFRR e fundador da Organização dos Indígenas da Cidade (Odic).
Eliandro Wapichana relata que, com a colonização, os habitantes nativos da região onde hoje está localizada Boa Vista foram rodeados por fazendas, muitas delas tomadas por grileiros, que ocupavam as terras e depois as registravam em cartório.
“Para garantir que seu espaço não seria invadido, eles [os indígenas] resistiram. Impuseram sua presença em espaços próximos à cidade. É por isso que no processo de demarcação algumas terras indígenas são ‘ilhas’”, explica.
As comunidades indígenas que ainda existem na capital se concentram na zona rural do município, distantes do centro urbano, em uma região conhecida como Murupu, onde há 600 famílias distribuídas por cinco agrupamentos: Serra do Truaru, Anzol, Morcego, Serra da Moça e Truaru da Cabeceira.
Ariene Susui nasceu em Truaru da Cabeceira. A entrada da estrada de terra que leva à sua casa é próxima a um dos pontos turísticos mais conhecidos de Roraima, o Lago do Robertinho, bastante frequentado por pessoas da elite. A zona urbana de Boa Vista fica a uns 30 minutos dali de carro.
Mas a distância que a separou do universo urbano é maior: até os 18 anos, Ariene nunca havia morado fora de Truaru. Só se alimentava do que era produzido na comunidade por meio da pesca e da agricultura familiar e conhecia todos à sua volta. Sequer cogitava uma carreira após o ensino médio — seus pais só estudaram até o fundamental.
Até que uma professora da escola indígena onde ela estudou contou sobre o Processo Específico para Indígenas (PSEI): um vestibular da UFRR que até hoje ocorre meses antes do regular e destina algumas vagas para indígenas. “Foi um sonho que surgiu”, recorda.
A efervescência daquele tempo foi além do ingresso na universidade: Ariene conheceu os movimentos sociais indígenas, passou a participar de mobilizações, oficinas e reuniões com outras comunidades do estado e tornou-se uma ativista reconhecida como defensora da educação.
Por meio do PSEI, foi aprovada no curso de jornalismo. Para se manter, morou e trabalhou como doméstica na casa de uma família de classe média alta no bairro São Francisco, um dos mais centrais e ricos de Boa Vista. “Minha mãe viveu assim aqui e achei que essa era a única forma de viver na capital”.
O estranhamento foi grande. “Em Truaru, somos uma grande família, todos te conhecem e te ajudam, temos os festejos e fazemos nossa própria comida. Aqui tu não conheces ninguém, é cada um por si. Tens que pegar ônibus, trabalhar pra comprar comida e ela é industrializada”.
Boa Vista é a cidade com a quarta maior população indígena em área urbana do país: 6 mil habitantes. Para se manterem na cidade, estudantes indígenas com trajetória semelhante à de Ariene Susui, vindos do interior do estado, podem concorrer à Bolsa-Permanência e a vagas na Casa do Estudante Indígena.
Dentro da UFRR, há o Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena, com três cursos de graduação só para indígenas: licenciatura intercultural, gestão territorial indígena e gestão em saúde coletiva indígena.
Para quem busca outra formação, é possível fazer o PSEI ou o vestibular regular. Para o mestrado e o doutorado, há 30 cotas para minorias distribuídas entre os 17 cursos da Universidade. No mestrado em geografia, há uma vaga somente para indígenas.
“Pela primeira vez, estamos conseguindo ter indígenas doutores em Roraima. Considero nosso bloco um território indígena dentro da universidade, onde [os alunos] conseguem falar em seus idiomas”, celebra Ananda, que também é professora e pesquisadora do Instituto Insikiran.
Na família de Ariene Susui, por exemplo, apenas seus avós são fluentes em Wapichana: “Meus pais já cresceram com medo de falar [a língua nativa devido às disputas por terras entre povos tradicionais e fazendeiros] e por isso minha geração não é fluente”. Essa condição, muito comum em várias famílias, é uma das particularidades da Amazônia, explica a antropóloga.
Segundo Ananda, a UFRR tem feito muitos esforços para produzir material didático traduzido para os alunos ingressantes nas diversas línguas indígenas. “Se os jovens perceberem essa necessidade de continuar [a falar sua] língua, podem colocar seus filhos[na escola] ou …[aprendê-las] com os avós. O monolinguismo não é saudável”.
O acesso a políticas públicas para os indígenas nas cidades e nas comunidades foi uma conquista do movimento indígena, afirma Eliandro Wapichana. Ele atribui à mobilização dos indígenas que vivem nas áreas urbanas de Boa Vista conquistas como a educação escolar diferenciada, o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Leste e um DSEI específico para os Yanomami na cidade.
Creches também têm sido inauguradas dentro das comunidades, pontua Eliandro, mas há certa rejeição por parte das famílias porque nem sempre se respeita o ensino das línguas e das religiões tradicionais.
Mestre em antropologia social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o pesquisador Emerson da Silva Rodrigues, que trabalha na área de Boa Vista, explica que até hoje existem comunidades sem escolas, postos de saúde, energia elétrica ou policiamento. “O acesso à infraestrutura dentro das Terras Indígenas (TI) é muito recente, ainda carecendo de serviços básicos dependendo da localização da TI”.
No ambiente urbano, os indígenas em Boa Vista são tratados como os demais habitantes para ter assistência à saúde. “É aquela ideia: ‘se ele está integrado, não é mais índio’”, ironiza Eliandro Wapichana. A prefeitura de Boa Vista não se manifestou sobre as críticas dos indígenas sobre a falta de assistência na cidade.
Para fugir da intensa crise econômica na Venezuela, indígenas do país vizinho migraram para Roraima, somando-se aos 55 mil habitantes indígenas do estado, que representam oito etnias (veja no gráfico), intensificando os problemas já existentes no atendimento à saúde. Só os Warao, todos vindos da Venezuela, somavam 1,3 mil pessoas em Roraima em 2020.
Boa parte deles está nos abrigos coordenados pela Força-Tarefa Humanitária, uma parceria entre o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), as Forças Armadas e ONGs como a Fraternidade Internacional (FFHI). Há dois abrigos específicos: um no bairro Pintolândia, em Boa Vista, e outro no município de Pacaraima, na fronteira com a Venezuela. Antes, vários indígenas venezuelanos viviam nas ruas.
Em alguns locais da UFRR, o ambiente é menos amistoso. Relatos de preconceito não são incomuns e a ideia de que esses alunos conseguem ingressar no curso, mas podem não ter capacidade para aprender ainda impera entre alguns professores, atesta Ananda.
Distorções decorrentes das disputas pela posse da terra no estado acabaram por disseminar a crença de que os indígenas atrapalham o desenvolvimento de Roraima. No caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, o mais conhecido nacionalmente, um hotel e fazendas com grandes áreas de monocultura – sobretudo de arroz – foram completamente desativados nos anos 2000 para retornar aos donos originais.
Há uma animosidade grande para com os indígenas vindos das comunidades do interior do estado, afirma Ananda, algo que vem desde a invasão dos colonizadores, que em Boa Vista começou pela margem do Rio Branco, nos atuais pontos turísticos da Orla Taumanam e da Igreja Matriz.
“Quando os colonizadores consideraram que tudo onde o seu gado pisava era seu território, ainda que fosse a roça do indígena, [os indígenas] foram sendo empurrados para cada vez mais longe”.
Há outras particularidades em Roraima, pontua a pesquisadora, como a TI Yanomami ter uma quantidade de garimpeiros ilegais igual à da própria população nativa, sem nenhuma ação do poder público.
Ela se diz impressionada com a discriminação praticada por pessoas vindas de fora do estado contra seus habitantes originários. “Eles [os indígenas habitantes de Boa Vista] têm de lidar com o desprezo de quem os considera preguiçosos e sujos: deixam de ser atendidos em restaurantes, são seguidos em mercados. Isso sem contar que muitos só têm condições de viver em bairros sem saneamento básico”.
Tanto preconceito faz muitos indígenas desistirem da universidade, sobretudo mulheres que trabalhavam em casas de famílias ou restaurantes, compartilha Ariene Susui.
Ariene Susui, que inicialmente trabalhou como doméstica, hoje vive com as irmãs mais novas no Jardim Floresta, zona Oeste da capital, um bairro intermediário entre periferia e centro.
Quando foi assessora de comunicação do Conselho Indígena de Roraima, Ariene se aproximou ainda mais das lideranças e dos movimentos pelos direitos humanos. A internet é para ela uma ferramenta poderosa: tanto seu trabalho de conclusão de curso quanto a dissertação do seu mestrado em comunicação tratam do uso das mídias digitais pelos indígenas. Ela também conversa sobre empoderamento feminino e a educação em eventos — agora virtuais, por causa da pandemia —nacionais e regionais.
Primeira integrante da sua família a ter curso superior, Ariene Susui vibra ao ver indígenas médicos, advogados ou músicos. “As outras pessoas ainda têm aquela visão de 1500 da gente, do ‘selvagem no meio do mato’. Então é de uma relevância muito grande viver aqui no contexto urbano, concluir o ensino superior, se afirmar como indígena. A conquista de um é a conquista de todos nós”.
Utilizamos cookies para oferecer uma melhor experiência de navegação. Ao navegar pelo site você concorda com o uso dos mesmos.
Saiba mais