O silêncio dos golfinhos

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No litoral do Rio de Janeiro, as populações de algumas espécies caíram a menos da metade, enquanto as de baleia aumentaram

Imagem de Claude Sanders no Unsplash

Na baía de Sepetiba, no sul do estado do Rio de Janeiro, hoje dominada por um polo industrial e três grandes portos, são cada vez mais raros os botos-cinza (Sotalia guianensis), mamíferos aquáticos com 2 metros (m) de comprimento, por si só tímidos e fugidios. Magros e com as costelas aparentes por causa da falta de peixes, agora se comunicam entre si bem menos do que antes em meio ao som dos motores dos navios que encobrem seu assobio. Pode ter restado apenas dois terços dos cerca de mil animais que viviam ali.

“Essa espécie é tão arisca que indivíduos capturados por pesquisadores podem se estressar e morrer de ataque cardíaco”, explica o biólogo Rodrigo Tardin, das universidades do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em dezembro de 2019, ele, com sua equipe, publicou um artigo na revista Aquatic Conservation mostrando que, inversamente, na baía de Ilha Grande – vizinha da de Sepetiba e mais preservada – a população de golfinhos parece estar mais estável, vivendo em grandes grupos.

Ao norte, em frente à cidade do Rio de Janeiro, no fundo da poluída baía da Guanabara, vivem cerca de 40 botos-cinza, um décimo da população dessa espécie que frequentava a região há três décadas, de acordo com estudo da Uerj publicado em 2017 na revista Ecological Indicators. Na entrada da baía, sem se misturar com os botos, vivem os golfinhos-de-dentes-rugosos (Steno bredanensis), com até 2,8 metros de comprimento, que geralmente vivem em águas mais profundas, mas, no Brasil, também ocorrem em águas costeiras. “Isso facilita bastante a pesquisa sobre seus hábitos, ainda pouco conhecidos em âmbito global”, conta a bióloga marinha Liliane Lodi, do Instituto Mar Adentro, que monitora os cetáceos das águas costeiras da cidade do Rio de Janeiro desde 2011 e publicou um artigo sobre a espécie na revista Journal of the Marine Biological Association of the United Kingdom em maio de 2020.

“Não há levantamentos nacionais sobre a variação de populações de golfinhos na costa brasileira, mas a contaminação e degradação ambiental devem estar causando declínios populacionais em áreas afetadas por atividades humanas”, estima o biólogo Marcos César de Oliveira Santos, da Universidade de São Paulo, que estuda a movimentação e os hábitos de golfinhos e baleias no litoral paulista. O Livro vermelho da fauna brasileira ameaçada de extinção, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO), classifica o boto-cinza como espécie vulnerável e a toninha (Pontoporia blainvillei) como criticamente em perigo. Essa situação se deve à perda e à poluição dos seus hábitats costeiros e da captura acidental em redes de pescadores.

As baleias, outros mamíferos marinhos do grupo dos cetáceos, estão em melhor situação. Baleias-jubarte (Megaptera novaeangliae) singram com frequência o mar aberto em frente à baía da Guanabara. “A proibição da caça na década de 1980 permitiu que a população dessa espécie se recuperasse e atingisse os cerca de 20 mil indivíduos atuais”, afirma Tardin. A população da baleia-franca-austral (Eubalaena australis) também cresceu para 10 mil indivíduos, depois de chegar perto da extinção com uma redução de 90%. “Por serem predadores, os cetáceos ajudam a controlar populações de peixes e demais animais aquáticos que poderiam se tornar dominantes e eliminariam outras espécies”, explica Santos. Apesar dos problemas, a costa do Brasil é um dos maiores centros de biodiversidade de cetáceos do planeta, com 46 das 89 espécies já identificadas.

Guerra e paz

Embora tenham uma vida social elaborada, os golfinhos nem sempre são pacíficos quando se encontram. Pesquisadores observaram que o boto-cinza costuma evitar o nariz-de-garrafa (Tursiops truncatus), bem maior, com 4 m de comprimento, que também se alimenta em águas rasas. “O boto-cinza geralmente foge, mas se não o fizer rapidamente, o nariz-de-garrafa pode atacar com violência”, diz Santos. Ele estudou essas e mais três espécies de golfinhos que circulam pelo litoral paulista, como relatado em artigo publicado em agosto na revista PeerJ.

Nessas horas, o nariz-de-garrafa pode investir com a lateral do corpo ou com a nadadeira para atingir o oponente. Os dentes são usados sempre que possível para arranhar, criando marcas únicas na nadadeira dorsal. Esses sinais são usados depois pelos pesquisadores para identificar cada indivíduo e mapear seu deslocamento. O comportamento belicoso não condiz com a amabilidade fictícia da espécie retratada pela estrela do filme norte-americano Flipper, gravado em 1963 e regravado em 1996.

Outra espécie, a toninha, vive geralmente em águas turvas entre a Argentina e o Espírito Santo, segundo Santos. De cor amarronzada e tímidos, os animais dessa espécie podem ser vistos mais facilmente no litoral norte paulista, uma região de águas mais claras que abriga a maior variedade de cetáceos no estado, possivelmente por causa da grande oferta de alimentos e da concentração de ilhas. De acordo com o pesquisador, o conhecimento mais aprofundado dos hábitos dessa espécies implicaria o uso de gravadores de som funcionando em tempo integral.

Fertilizadores do mar

As informações sobre os cetáceos nem sempre foram obtidas em expedições e observações em alto-mar. “Comecei na década de 1990 procurando notícias e fotos em jornais antigos e animais encalhados na praia”, lembra Santos. Foi assim que ele identificou pela primeira vez no país a orca-pigmeia (Feresa attenuata), de corpo preto e cerca de 2,5 metros de comprimento, e resgatou a foto de uma baleia-franca encalhada no litoral paulista em 1955.

Em seus corpos monumentais, as baleias acumulam muito carbono e podem ajudar a reduzir os impactos das mudanças climáticas. Estudos indicam que, ao longo da vida, uma baleia grande, com até 30 metros, sequestra, em média, 33 toneladas de gás carbônico, que, se liberado para a atmosfera, poderia aumentar o efeito estufa. Ao defecarem perto da superfície do mar, liberam nutrientes que fertilizam os microrganismos marinhos que formam o chamado fitoplâncton, capazes por sua vez de capturar 37 bilhões de toneladas de CO2, o equivalente a quatro florestas amazônicas. Ao morrer, as baleias afundam e o carbono contido nelas permanece durante séculos no fundo do mar. “Ao fertilizar o fitoplâncton, as baleias contribuem com metade da produção do oxigênio que a humanidade respira, proveniente da produção primária do fitoplâncton”, comenta Santos.

Baleias e golfinhos também movimentam o turismo. No Brasil, principalmente de julho a novembro, quem percorre de barco os arredores do arquipélago de Abrolhos, a cerca de 70 quilômetros de Caravelas, ou Porto Seguro, ambos no estado da Bahia, pode ver as baleias-jubarte, uma das espécies que migram das águas geladas da Antártida para a costa brasileira na época da reprodução – outra é a baleia-franca, que aparece no litoral de Imbituba, Laguna e Garopaba, no sul de Santa Catarina.

“O turismo em embarcações deveria ser bastante planejado para não prejudicar as baleias”, recomenda Santos, que exemplifica com um episódio ocorrido em julho de 2012: turistas em um passeio de barco encurralaram sem querer uma baleia-jubarte em uma baía de águas rasas em Arraial do Cabo. A baleia ficou presa entre o costão rochoso e a embarcação, com risco de se ferir nas pedras ou encalhar, até conseguir sair.

No final de outubro, os moradores da cidade irlandesa de Dingle estavam apreensivos com o desaparecimento de Fungie, um golfinho nariz-de-garrafa que transformou o povoado em atração turística internacional desde que apareceu por lá, há 37 anos.

Projeto: Ocorrência, distribuição e movimentos de cetáceos na costa do estado de São Paulo (nº 11/51543-9); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular Programa Biota; Pesquisador responsável Marcos César de Oliveira Santos – IO/USP; Investimento R$ 397.921,83.

Artigos científicos: AZEVEDO, A. F. et al. The first confirmed decline of a delphinid population from Brazilian waters: 2000–2015 abundance of Sotalia guianensis in Guanabara Bay, South-eastern Brazil. Ecological Indicators. v. 79, p. 1-10, 6 abr. 2017. FIGUEIREDO, G. C. et al. Cetaceans along the southeastern Brazilian coast: Occurrence, distribution and niche inference at local scale. PeerJ. v. 8, e10000. 29 ago. 2020. LODI, L. et al. Rough-toothed dolphins (Cetartiodactyla: Delphinidae) habitat use in coastal urban waters of the South-western Atlantic. Journal of the Marine Biological Association of the United Kingdom. v. 100, p. 471-9. mar. 2020. TARDIN, R. H. et al. Modelling habitat use by the Guiana dolphin, Sotalia guianensis, in south-eastern Brazil: Effects of environmental and anthropogenic variables, and the adequacy of current management measures. Aquatic Conservation: Marine and Freshwater Ecosystems. v. 30, p. 775-86. 2 dez. 2019.


Artigo publicado na Pesquisa FAPESP sob CC-BY-NC-ND 4.0 license. Leia o original

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