Ausência de política federal específica para a eletrificação de veículos leves limita o crescimento do setor no país
Por Frances Jones em Pesquisa Fapesp | Enquanto parte do mundo acelera em direção à tecnologia do carro elétrico, o Brasil integra o grupo de países que vê um crescimento apenas modesto na adoção dos automóveis movidos a eletricidade. É verdade que nunca se vendeu tanto esse tipo de veículo no país. O ano passado terminou com 49.245 emplacamentos, um recorde. Mas eles representam uma parcela pequena ante os quase 2 milhões de carros vendidos em território brasileiro. A sua participação no mercado subiu de 1,8% em 2021 para 2,5% em 2022 e agora há uma frota circulante de 126.504 unidades, segundo a Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE). Entre esses, os 100% elétricos – os chamados elétricos puros ou a bateria (VEB) – ganharam espaço e registraram um aumento de quase 200% no número de emplacamentos em 2022, com 8.458 novas unidades, na comparação com 2021. O crescimento é expressivo, mas está longe do ritmo de países como China, Alemanha, Noruega e Estados Unidos.
Segundo o relatório “Global Electric Vehicle Outlook 2022”, publicação anual da Agência Internacional de Energia (AIE) que apresenta a situação da mobilidade elétrica no globo, a venda mundial de veículos elétricos mais do que dobrou entre 2020 e 2021, alcançando 6,6 milhões de unidades. Metade dos negócios ocorreu na China, onde 3,3 milhões de automóveis foram comercializados, mais que os 3 milhões de veículos elétricos vendidos no mundo inteiro em 2020.
No país asiático, os elétricos representaram 16% das vendas internas em 2021. Houve aumentos expressivos também na Europa, onde conquistaram 17% do mercado. A dianteira no continente é da Noruega e da Islândia, onde esses veículos representaram, respectivamente, 86% e 72% dos emplacamentos no ano. Os Estados Unidos seguem bem atrás da China e dos líderes europeus, com 4,5% das vendas.
“Temos, sim, muito o que celebrar, pelo fato de o mercado ter crescido. Mas, quando olhamos os veículos 100% elétricos, aqueles que dependem exclusivamente de recarga externa, ainda estamos num nível muito baixo em relação ao restante do mundo”, observa Adalberto Maluf, que deixou no fim de março a presidência da ABVE para assumir o cargo de secretário nacional de Meio Ambiente Urbano e Qualidade Ambiental do Ministério do Meio Ambiente.Rodrigo Cunha / Revista Pesquisa FAPESP
No Brasil, segundo o especialista, os elétricos puros representaram apenas 0,4% das vendas totais de veículos leves no mercado doméstico em 2022, enquanto Alemanha e China registraram 20% e França e Reino Unido 18%. “Estamos nos afastando um pouco em relação aos grandes mercados mundiais”, diz Maluf.
No território brasileiro, os mais vendidos são os veículos elétricos híbridos (VEH), equipados com um motor a combustão interna e um ou mais motores elétricos. Esses carros são abastecidos em postos de combustíveis, não havendo a necessidade de recarregar a bateria em um eletroposto. Nesse caso, as baterias são alimentadas pelo motor a combustão ou pela energia das frenagens, em geral desperdiçadas nos carros convencionais. Em 2022, os VEH flex tinham uma participação de 48% do mercado brasileiro de elétricos.
Especialistas preocupam-se com o desempenho tímido da venda de elétricos no país e veem certa inércia do mercado nacional diante da transição tecnológica que ocorre no mundo mais industrializado. Em artigo publicado na Revista Brasileira de Inovação, o sociólogo Rodrigo Foresta Wolffenbüttel, integrante do Grupo de Estudos da Inovação do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), aponta para a inexistência de uma política robusta que apoie a tecnologia do motor elétrico, assim como uma infraestrutura de recarga com eletropostos.
Ele também percebe certa ambiguidade das montadoras estabelecidas no país, que nem sempre se mostram interessadas em fazer a transição rápida para a eletrificação dos automóveis. “Elas estão em uma posição ambígua porque, ao mesmo tempo que as sedes em outros países fazem a transição para a eletrificação, aqui, no contexto latino-americano, não veem um esforço político que favoreça a mudança, pois não têm tantos incentivos para isso”, afirma Wolffenbüttel.
Congestionamento em São Paulo: a transição para a mobilidade elétrica não resolve esse problemaEduardo Anizelli / Folhapress
Tanto Maluf quanto a pesquisadora Flávia Consoni, do Programa de Pós-graduação em Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (IG-Unicamp), afirmam que recentemente o Brasil esteve perto de ter uma política específica para os elétricos, mas de última hora não foi aprovada. “Em 2018, ainda no governo Temer, participei das discussões sobre a nova política para o setor, no âmbito do programa Rota 2030, que substituiu o Inovar-Auto, e liderei um trabalho para desenhar um plano nacional de mobilidade elétrica para o Brasil”, conta Consoni.
Naquela época, diz a especialista, apenas Chile e Costa Rica tinham um plano como esse na América Latina. “Com os diversos atores do setor e com o MDIC [Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços], que ainda existia na época, elaboramos um programa para o país. Trabalhamos entre o Natal e o Ano-novo, pois ia mudar o governo e o Bolsonaro assumiria a Presidência. Mas o MDIC decidiu, por algum motivo não revelado, não lançar o plano”, recorda-se a pesquisadora.
Consoni, que também coordena o Laboratório de Estudos do Veículo Elétrico (Leve), da Unicamp, e integra o Centro Paulista de Estudos de Transição Energética, apoiado pela FAPESP, ressalta que hoje outros países da região, como Colômbia, Panamá e Equador, têm planos com direcionamentos claros rumo à eletrificação veicular. “Além disso, tanto a Argentina como o México, que possuem, como o Brasil, uma indústria automotiva mais forte, já deram passos significativos nessa questão e estão em vias de lançar um programa relativo à eletrificação. No Brasil, ainda não sabemos como vai ficar.”
Entre as decisões a serem tomadas, o país precisa escolher se fará a descarbonização do setor de transporte por meio de eletrificação completa, optando por veículos puramente elétricos, como a grande maioria dos países que estão adotando essa tecnologia, ou se decidirá pela eletrificação parcial, via hibridização, com ou sem conexão com a rede elétrica.Rodrigo Cunha / Revista Pesquisa FAPESP
A eletrificação completa, de acordo com os autores do 2º Anuário brasileiro da mobilidade elétrica, publicado pela Plataforma Nacional de Mobilidade Elétrica, implica uma transformação total na cadeia de negócios que extrapolaria o setor automotivo. Exigiria, por exemplo, investimentos para a fabricação de baterias, exploração de recursos minerais e requalificação de profissionais e imporia uma ameaça à indústria tradicional. Já a mudança parcial, pela hibridização, aproveitaria a estrutura de produção e de negócios atual. Esse modelo ganha força com a experiência do país em biocombustíveis, em especial o etanol, aponta a publicação.
A inércia em se posicionar sobre a rota de eletrificação traz mais consequências negativas do que qualquer escolha, alertam os especialistas. Entre as possíveis implicações está a perda de mercados de exportação de veículos elétricos, uma vez que boa parte dos países avança para zerar ou baixar consideravelmente as emissões de gases de efeito estufa (GEE) no setor de transportes.
Maluf diz que o Brasil já vem perdendo seus mercados de exportação de veículos na América Latina. “Há pelo menos cinco anos mais de um terço dos ônibus vendidos no mundo é elétrico. O Brasil já foi o maior fabricante de ônibus e hoje está na terceira ou na quarta posição. Em 2022 perdemos todas as licitações da América Latina porque poucas montadoras brasileiras produzem ônibus elétricos”, afirma. “Nos preocupa ficar tão desconectados das grandes transformações do resto do mundo.”
Para Consoni, da Unicamp, o grande gargalo tecnológico da eletrificação em todo o mundo gira em torno da bateria. “Ela ainda tem um custo muito alto e há problemas ligados à mineração que precisam ser mais bem trabalhados”, afirma. Um componente-chave desses dispositivos é o lítio, também chamado de ouro branco. Como todo processo de mineração, o do lítio também pode causar impactos ambientais e sociais. Chile, Argentina e Bolívia estão entre os maiores produtores mundiais e já enfrentaram conflitos relacionados à escassez de água, contaminação do solo e disputa entre povos originários e empresas privadas. O preço do metal no começo de 2023 era oito vezes o de 2021, de acordo com o jornal Financial Times. Apesar de ele compor apenas uma pequena parte da bateria (cerca de 4%), é essencial para o seu funcionamento. Sem ele, as reações químicas não ocorrem como deveriam. A vantagem é que as baterias de lítio conseguem armazenar uma grande quantidade de energia, em um volume relativamente pequeno.
A recarga das baterias é uma das preocupações dos motoristas, aponta pesquisaLéo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP
No que diz respeito ao desenvolvimento da tecnologia e de produção de baterias, a China ocupa a liderança mundial. Os Estados Unidos, principalmente no atual governo de Joe Biden, têm feito grandes investimentos para recuperar terreno. “Há toda uma infraestrutura que foi se desenvolvendo em outros países. O Brasil só agora parece que está começando a acordar”, afirma a química Maria de Fátima Rosolem, do centro de inovação CPQD, em Campinas, que pesquisa baterias avançadas para veículos elétricos e sistemas de armazenamento de energia estacionária. “Toda tecnologia emergente tem de ter um programa de estímulo, um governo apostando nela. A China tinha esse gap lá atrás, incentivou a montagem de fábricas e investiu em pesquisas. Hoje domina a área” (ver box).
Segundo Rosolem, as pesquisas nas novas gerações de baterias buscam avanços em quatro pontos: maior autonomia e vida útil, redução de custo e segurança. “A questão das recargas vem se resolvendo. Atualmente é possível recarregar uma bateria em 30, 15 ou até 10 minutos.” Uma das frentes de pesquisa busca desenvolver baterias com um eletrólito sólido, em vez de líquido, como ocorre hoje, oferecendo maior segurança a esse tipo de dispositivo. Também estão avançados os estudos e as aplicações relativos ao segundo uso (second life) dos dispositivos. As baterias, esgotadas as possibilidades de utilização nos veículos, podem ser reformadas para armazenamento de energia e utilizadas, por exemplo, em conjunto com sistemas para geração distribuída de energia solar, aponta a química.
Em São Paulo, grupos de pesquisa investigam, com financiamento da FAPESP, novas arquiteturas e materiais para aumentar o desempenho, a capacidade de armazenamento e a estabilidade das baterias de lítio. Uma dessas iniciativas é desenvolvida em parceria entre a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidad de Antioquia, na Colômbia. Outros projetos, também apoiados pela Fundação, estudam rotas e tecnologias alternativas para a reciclagem desse tipo de bateria. É o caso de um estudo focado na recuperação de matérias-primas críticas de baterias usando tecnologias ambientalmente sustentáveis.
Enquanto o governo brasileiro não define um rumo para a eletrificação veicular no país, a população parece ver com bons olhos os elétricos, de acordo com pesquisas. Em artigo publicado na revista Transportation Research Part A, pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Bauru, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) em Sorocaba e da USP em Ribeirão Preto divulgaram resultados de um levantamento realizado em 2019 sobre a intenção de uso de carros elétricos no Brasil: 89,1% disseram que comprariam um veículo do tipo movido a bateria.Rodrigo Cunha / Revista Pesquisa FAPESP
No entanto, boa parte dos 488 respondentes afirmaram estar dispostos a pagar no máximo entre R$ 30 mil e R$ 70 mil, bem abaixo do preço de um veículo vendido no país à época. “Em 2019 o modelo mais barato custava mais de R$ 100 mil. Nota-se que as pessoas não tinham muita noção de quanto custaria um carro elétrico”, comenta um dos autores do artigo, Hermes Moretti Ribeiro da Silva, professor do curso de engenharia de produção da Unesp.
O preço e a questão do recarregamento da bateria aparecem no levantamento como pontos de restrição para a aquisição. “Existia certo temor dos entrevistados a respeito dos eletropostos e de como seria feito o carregamento da bateria. Preocupava, sobretudo, a questão da autonomia”, ressalta Silva. Especialistas concordam que, em um país com dimensões continentais como o Brasil, o avanço da mobilidade elétrica depende da existência de uma rede ampla e pulverizada de eletropostos que garantam o abastecimento dos veículos.
Em estudo publicado em 2022 realizado por Rodrigo Wolffenbüttel para um livro do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) sobre os desafios para a mobilidade urbana no século XXI, proprietários de veículos elétricos ressaltaram que, apesar dos ganhos ambientais, a transição dos motores a combustão interna dos automóveis para os elétricos não vai solucionar um problema crucial dos grandes centros urbanos, os engarrafamentos.
“Grande parte dos entrevistados percebe essa limitação. Essa ainda é uma aposta em uma resposta individual para um problema coletivo”, diz o sociólogo. “No fundo, a eletrificação de automóveis não responde aos problemas de mobilidade urbana. Ela reduz as emissões locais de gases de efeito estufa, mas em termos de deslocamento, você fica preso dentro de um carro elétrico do mesmo modo que fica em um veículo a combustão.”Dianteira chinesa
Por volta do ano 2000, o país asiático investiu na eletrificação e hoje lidera o setor; Europa e Estados Unidos seguem atrás com desafios
A China ocupa clara posição de liderança no desenvolvimento tecnológico, na produção e no consumo de carros 100% elétricos. O investimento em pesquisa nesse setor no país não é de hoje. “Há muitos anos orientei um mestrado sobre a indústria automobilística chinesa e víamos o esforço do país em ser referência na tecnologia do motor a combustão interna, que já era mais do que dominada pelas empresas europeias, japonesas e norte-americanas”, recorda-se Flávia Consoni, do Programa de Pós-graduação em Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (IG-Unicamp). “Antes ainda dos anos 2000, eles deram uma guinada e partiram para a eletrificação. Depois, investiram com muito mais força e elegeram a eletrificação como um dos focos prioritários dos seus planos quinquenais.”
Estados Unidos e Europa também centraram forças para superar obstáculos e fortalecer a eletrificação veicular. Além dos desafios relacionados à tecnologia, principalmente no que se refere às células que compõem as baterias, esses países têm de lidar com uma matriz energética, baseada em combustíveis fósseis, ainda não tão limpa quanto a do Brasil, onde predomina a geração hidrelétrica,
para abastecer os carros elétricos e com a necessidade de instalação de uma rede abrangente de recarga em grandes territórios.
Outras dificuldades não tão óbvias também começam a ser apontadas pelos especialistas, como a desigualdade que a eletrificação pode trazer entre os mais ricos e os de menor renda, que moram em áreas rurais ou em bairros sem fácil acesso à recarga. Pesquisadores da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, publicaram em janeiro estudo que aponta que, para a população mais pobre, a recarga do veículo elétrico representaria um gasto anual expressivo.
“Os padrões iniciais de adoção do veículo elétrico alinham-se com as tendências típicas da maior parte das novas tecnologias e, embora ela tenda a se tornar mais equitativa ao longo do tempo, são necessárias intervenções políticas para aumentar a acessibilidade do veículo elétrico para famílias vulneráveis e excluídas”, ressaltam os autores no artigo.
Este texto foi originalmente publicado pela Pesquisa Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.