A corrupção fragiliza os direitos da comunidade LGBT+ no Brasil e perpetua a exclusão desta comunidade dos espaços formais de poder.
Por Guilherme France, da Transparência Internacional Brasil
A corrupção potencializa todos os males da sociedade, como a desigualdade social, a pobreza, a violência policial, a captura do Estado pelas elites econômicas e marginalização política de grupos minoritários. Assim, não é nenhuma surpresa concluir que a corrupção fragiliza de modo significativo os direitos da comunidade LGBT+ no Brasil e perpetua a exclusão desta comunidade dos espaços formais de poder. Há que se reconhecer, no entanto, que esta conclusão demanda um encontro inédito das agendas de defesa dos direitos LGBT+ e de combate à corrupção e promoção da transparência.
São inúmeras as barreiras à participação de pessoas LGBT+ na política, desde o preconceito social disseminado até a mobilização do discurso LGBTfóbico com propósitos eleitoreiros. Pesquisas demonstram como a corrupção, de modo geral, serve de obstáculo adicional à entrada de grupos marginalizados em instâncias formais da política. Arranjos políticos informais, baseados em clientelismo, tráfico de influência e troca de favores, favorecem redes estabelecidas de homens brancos, heteros e cis que já se encontram no poder. Em países altamente corruptos e com políticas partidárias pouco transparentes e democráticas, como o Brasil, essas redes atuam para se manter e se fortalecer por meio da seleção de candidatos de acordo com conexões pessoais, quando não familiares.
Em detrimento de critérios objetivos ou meritocráticos, como formação acadêmica, experiência profissional ou base de apoio comunitária, são preferidos critérios informais, como o pertencimento a determinada rede de contatos e a confiança construída na base da semelhança. A preferência por candidatos com recursos financeiros próprios (ou conexão a grupos com capacidade financeira de apoiá-los) também favorece desproporcionalmente homens brancos, heteros e cis.
Assim, não é difícil compreender como o número de pessoas LGBT+ eleitas no país continua extremamente baixo, apesar de um crescimento recente do número de candidaturas. Mesmo quando aceitas as candidaturas, o que acontece, majoritariamente, em partidos de esquerda, elas sofrem com a falta de recursos. E isso ocorre em todo o espectro político. No caso brasileiro, os recursos oriundos do Fundo Eleitoral e do Fundo Partidário são distribuídos por caciques partidários de acordo com critérios arbitrários, definidos sem transparência ou preocupação com a diversidade ou a equidade. Como resultado, candidaturas LGBT+ recebem recursos insuficientes para se tornarem competitivas.
A corrupção se infiltra e solapa até mesmo iniciativas especificamente destinadas a promover a diversidade. Há indícios abundantes, por exemplo, de fraudes na determinação de que ao menos 30% dos recursos oriundos do Fundo Eleitoral sejam destinados a candidaturas femininas. As candidaturas laranjas foram utilizadas para desviar recursos para candidatos que pertencentem àquelas redes de homens brancos, heteros e cis. Apesar de projetos de lei neste sentido, inexistem, até o momento, regras destinando recursos específicos para candidaturas LGBT+ ou reservando vagas nas nominatas de partidos.
Mesmo quando estes obstáculos são superados, pessoas LGBT+ eleitas enfrentam, dentro na política institucional, desafios inimagináveis aos seus pares. Levantamento recente da Folha de São Paulo, por exemplo, mostrou que a imensa maioria das pessoas trans eleitas nas últimas eleições sofre com ataques e ameaças rotineiros. Sofrem, ainda, com a falta de apoio e proteção institucional das casas legislativas a que pertencem, sem dúvida mais um reflexo do seu não-pertencimento às redes tradicionais de poder que, por outro lado, se mobilizam prontamente para proteger agressores.
A exclusão, o afastamento e a marginalização da população LGBT+ em relação aos espaços de representação nos Poderes Executivo e Legislativo levaram o Poder Judiciário, especialmente o Supremo Tribunal Federal, a exercer um papel contramajoritário, se tornando o responsável pelos principais avanços da cidadania LGBT+ no Brasil.
Do direito ao casamento e a adotar até o direito à retificação do nome e a criminalização da LGBTfobia, a totalidade dos direitos LGBT+ no país foi produto de decisões judiciais. São direitos que não se encontram positivados no ordenamento jurídico. Sua fragilidade se manifesta não só pela possibilidade de revogação, na hipótese de simples alteração da composição do STF, mas também pela falta de publicidade e de precisão destas decisões, o que multiplica os casos de descumprimento. Quando estes direitos não estão cimentados em leis, cresce a possibilidade de que agentes públicos responsáveis pela sua efetivação abusem do seu poder, se negando a fazê-lo ou exigindo propinas para realizar seus deveres funcionais.
Dentre as principais barreiras para a efetiva criminalização da LGBTfobia, por exemplo, se encontra uma resistência de operadores do Direito (delegados, promotores, juízes) em reconhecer a motivação LGBTfóbica, em conferir a adequada prioridade aos casos que efetivamente são à Justiça e mesmo discordâncias com relação à interpretação dada pelo Supremo à Lei do Racismo.
Do ponto de vista de políticas públicas, o apagamento das vidas LGBT+ pela ausência de dados específicos sobre nossas vivências – exemplificado pela resistência do governo federal em incluir questões sobre orientação sexual e identidade de gênero no Censo –, aprofunda a vulnerabilidade social e fragiliza os mecanismos de reivindicação social. Ao invés de ciclos de desenvolvimento, implementação e avaliação de políticas destinadas a atender esta população, baseados em evidências científicas, nos sujeitamos ao clientelismo e à inconsistência de vontades políticas impactadas por ondas de conservadorismo e ciclos eleitorais.
Aliás, os ciclos eleitorais, no Brasil, têm se apresentado, nos últimos anos, como espaços de disputa em que a LGBTfobia é mobilizada para distorcer, desmobilizar e distrair. Históricos de atuação e propostas são distorcidas para assustar eleitores, enquanto ataques incessantes afastam e aterrorizam possíveis candidaturas. Assim como em outros países, como Malawi e Gana, a LGBTfobia também foi utilizada para distrair eleitores de acusações de corrupção, criando factóides e ameaças ilusórias.
O que não é ilusório são os riscos aos direitos LGBT+. Se a alteração da composição do Supremo já foi identificada como o risco de médio prazo mais significativo, uma proposta de Emenda à Constituição que pretende outorgar ao Congresso Nacional o poder de rever decisões do STF forneceria um atalho para revogar tantas das nossas conquistas. Em jogo, o direito de existir, de amar.
Não parece exagerado, neste cenário, ressaltar o que se passa quando o autoritarismo prevalece. Em diversos países, como Nigéria e Rússia, onde a homossexualidade é ilegal, tornou-se costumeira a prática de policiais exigirem o pagamento de propina para não prender ou revelar a sexualidade de pessoas que são atraídas ou descobertas por meio de aplicativos de encontros. São casos de corrupção que deixam de ser reportados justamente porque as vítimas temem as consequências de se expor às autoridades. Cria-se um ciclo de abuso em que pessoas LGBT+ são as vítimas preferenciais de policiais corruptos que agem sem qualquer constrangimento ou medo de investigações.
Destacar os impactos da corrupção sobre a comunidade LGBT+ não afasta o reconhecimento de um viés intencional e legalmente homofóbico e transfóbico no Estado brasileiro. Corrupção é usualmente entendida como uma manifestação da ilegalidade, mas ela é também elemento que contribui para a construção de uma legalidade homofóbica e transfóbica. As pautas da transparência e do combate à corrupção podem, portanto, contribuir de forma decisiva para superar o cenário atual de exclusão política e para assegurar a plena efetividade dos direitos que já nos foram reconhecidos.
Este texto foi originalmente publicado pela Transparência Internacional Brasil de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.