Pesquisadores de todos os continentes divulgaram em junho o que pode ser considerado o primeiro catálogo mundial do ecossistema microbiano de áreas urbanas. Por meio de 4.728 amostras coletadas nas ruas, em solas de sapato, no transporte público e em hospitais por três anos, o grupo mapeou geneticamente a microbiota – o conjunto de bactérias, vírus, fungos e outros microrganismos – de 60 cidades de 32 países, três delas no Brasil. Uma das principais descobertas do estudo é que 31 espécies de bactérias aparecem em 97% das amostras. Elas formam um núcleo central de microrganismos predominantes em centros urbanos de todo o mundo.
Nesse grupo, três bactérias se destacam por sua grande abundância: Cutibacterium acnes, encontrada na pele humana e que favorece o aparecimento de espinhas; Bradyrhizobium sp. BTAi1, microrganismo presente usualmente no solo, que fixa o nitrogênio nas plantas; e Micrococcus luteus, bactéria que vive no solo e na pele humana e já foi relacionada a eventos esporádicos de infecções adquiridas em hospitais. No total, o trabalho identificou 4.246 espécies de microrganismos. Entre as novas espécies não catalogadas pela ciência, foram anotados 10.928 vírus, 1.302 bactérias e duas arqueias (seres unicelulares semelhantes às bactérias). O Sars-CoV-2, causador da Covid-19, é um vírus de RNA e não aparece no estudo, que foi voltado a microorganismos com genomas de DNA. Além disso, as amostras de microbioma urbano foram obtidas antes do aparecimento da pandemia.
Com esse tipo de monitoramento, é possível observar a dispersão de microrganismos localmente, dentro das cidades, e acompanhar sua disseminação em escala global, algo de grande utilidade em um contexto de pandemia, além de detectar genes de resistência a antibióticos no caso das bactérias. O estudo é fruto da colaboração entre cientistas especializados em genômica, análise de dados, engenharia, epidemiologia e saúde pública que formam o consórcio MetaSUB, abreviação de Metagenômica e Metadesign de Metrôs e Biomas Urbanos.
A origem desse projeto remonta a 2013, quando o geneticista Christopher Mason, da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, começou a coletar amostras microbiológicas no metrô de Nova York. “Toda vez que sentamos no metrô provavelmente estamos nos deslocando ao lado de uma espécie totalmente nova de microrganismo”, diz Mason, em material de divulgação do trabalho. Logo após o geneticista norte-americano publicar seu primeiro artigo sobre o tema, pesquisadores do mundo inteiro o procuraram com o intuito de fazer análises semelhantes em suas cidades. Dentre eles, estava o biólogo molecular brasileiro Emmanuel Dias-Neto.
“No início dos anos 2010, comecei a investigar a associação de bactérias com a ocorrência de câncer de boca. Muitas vezes voltava para casa de metrô e ficava imaginando que microrganismos estavam viajando ali comigo e como achar um jeito de estudá-los. Um colega tinha lido sobre um projeto parecido em Nova York. Entrei em contato com os autores do trabalho e me chamaram para participar da primeira reunião, em 2016”, lembra o diretor do consórcio MetaSUB para a América do Sul e chefe do Laboratório de Genômica Médica do Centro Internacional de Pesquisas (Cipe) do A.C.Camargo Cancer Center. Dias-Neto coordenou a coleta das 199 amostras brasileiras que fizeram parte do estudo nas cidades de Ribeirão Preto, interior paulista, Rio de Janeiro e São Paulo.
O protocolo de coleta das amostras envolve o uso de um swab, espécie de cotonete com material sintético na ponta. O swab é mergulhado numa solução que preserva o DNA e a ponta úmida é passada por três minutos na superfície selecionada para fornecer a amostra. Dados como as coordenadas de latitude e longitude, a temperatura, a umidade do ar e a quantidade de pessoas circulando no local também são anotados. O material é então colocado em um tubo que não precisa de refrigeração. Todas as coletas ao redor do mundo são enviadas para Nova York, onde são analisadas em um mesmo equipamento, seguindo a mesma metodologia. “Cerca de 30 amostras vieram de São Paulo, especialmente de bancos de praça e de parques, como no Trianon, na avenida Paulista, e das dependências do A.C.Camargo”, conta Dias-Neto. Além de locais públicos, bicicletas de uso comum e solas de sapato, as coletas, no Rio de Janeiro, incluíram o metrô e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e, em Riberão Preto, o campus da Universidade de São Paulo (USP) e pontos de ônibus. Os pesquisadores Houtan Noushmehr, da USP, e Milton Ozório Moraes, da Fiocruz, também participaram do estudo.
Na capital paulista, o Monumento às Bandeiras forneceu uma amostra interessante. Em alguns pontos da superfície da escultura, foram identificadas duas comunidades de diferentes microrganismos em conflito. Por cima de um biofilme branco, composto por bactérias, havia uma película escura, formada por fungos. “Para invadir o espaço da bactéria, o fungo produz substâncias antibacterianas. A bactéria, por sua vez, defende-se produzindo substâncias antifúngicas”, explica Dias-Neto. “Sequenciamos essa borda de contato entre os biofilmes na esperança de encontrar algo que possa dar origem a um fármaco.”
As informações reunidas pelo MetaSUB podem vir a ser úteis em investigações criminais. Embora exista um grupo de microrganismos comuns aos microbiomas das zonas urbanas em escala global, cada cidade mapeada apresenta um conjunto particular de microrganismos que funciona como assinatura típica de seu microbioma. Em São Paulo, por exemplo, uma espécie de vírus (Meleagrid alphaherpesvirus 1) e duas de bactérias (Pandoraea vervacti
e Paraburkholderia terrae) são consideradas marcadoras do conjunto de microrganismos da cidade. No Rio de Janeiro, esse papel é atribuído a uma cianobactéria (Prochlorococcus sp. MIT 0604), microrganismo que faz fotossíntese e era denominado antigamente de alga azul, e a dois vírus que infectam cianobactérias (Synechococcus phage S-SSM4 e Synechococcus phage S-SM1). “Para uso forense, é possível, por exemplo, observar o material biológico depositado na sola do sapato de uma pessoa e saber por qual cidade ela andou”, destaca Dias-Neto.
O MetaSUB disponibiliza uma ferramenta de visualização on-line (https://pangeabio.io/staticd/metasub-map-all-public-html/index.html), por meio da qual é possível navegar pelo mapa-múndi por detalhes sobre as amostras coletadas em cada localidade. É possível, por exemplo, pesquisar por tipo de microrganismo e verificar em que cidades ele ocorre. Em breve, o projeto deve publicar um artigo com dados coletados durante a Olimpíada de 2016, no Rio de Janeiro. O estudo analisa se a presença de turistas de todo o mundo – que trouxeram o microbioma típico de suas cidades e entraram em contato no metrô carioca com bactérias e vírus presentes na capital fluminense – alterou o perfil dos microrganismos encontrados no Rio de Janeiro.
Outro estudo global, coordenado por Manuel Delgado-Baquerizo, da Universidade Pablo de Olavide (UPO), na Espanha, investigou a comunidade microbiana escondida em solos de parques e jardins de 56 cidades do mundo de 17 países, como Beijing, na China, Santiago, no Chile, e Belo Horizonte, no Brasil. O interesse pelo tema se deve ao fato de a população humana entrar frequentemente em contato com os microrganismos das áreas verdes urbanas durante a prática de atividades de lazer e de esportes, um tipo de intercâmbio que fortalece o sistema imunológico. Publicado em julho no periódico Science Advances, o trabalho indica que parques e jardins urbanos têm uma diversidade diferente de microrganismos dos ecossistemas naturais próximos. Esse é um padrão que ocorre em todo o mundo. Em comparação com áreas naturais vizinhas às cidades, os solos de parques e jardins favorecem uma proporção maior de fungos patogênicos para plantas e uma dominância menor de organismos simbióticos que favorecem o crescimento da vegetação. Esses solos de áreas verdes em cidades também têm uma proporção maior de genes associados a patógenos humanos, à resistência a antibióticos e à proteção contra estresse ambiental.
“Observamos que as comunidades microbianas nos parques de distintas cidades diferem menos umas das outras e são mais homogêneas do que as de áreas naturais, como florestas”, explica Gabriel Peñaloza-Bojacá, doutorando em biologia vegetal pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que coletou amostras do solo na Região Metropolitana de Belo Horizonte em áreas verdes urbanas e no campo. “Nossas análises mostram uma semelhança maior na composição da comunidade de arqueias, bactérias, fungos e protistas (organismos unicelulares eucarióticos, isto é, com células nucleadas) nos 56 espaços verdes urbanos investigados do que nos ecossistemas naturais correspondentes.”
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