Por BPBES | Tão conhecidos quanto as denominações ‘potência agrícola’ e ‘país megadiverso’ são os conflitos e as dificuldades de diálogo que tendem a manter apartadas as agendas da conservação ambiental e da produção rural no Brasil. A mais recente publicação da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES) pretende aproximar as duas áreas e compatibilizar seus interesses, mostrando como o agronegócio – agricultura, pecuária e silvicultura – se beneficia e depende da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos. Lançado em 16 de julho de 2024, o “Sumário para Tomadores de Decisão” (STD) do “Relatório Temático sobre Agricultura, Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos” aborda os desafios associados ao modelo de uso da terra predominante no país e as soluções para tornar a agropecuária uma prática mais sustentável e inclusiva.
Uma versão resumida do Relatório Temático, o Sumário foi elaborado por 35 pesquisadores que sintetizaram o conteúdo principal com linguagem simplificada e em formato didático. O documento visa influenciar gestores e lideranças das esferas pública e privada na tomada de decisões com foco na sustentabilidade e no equilíbrio da tríade agricultura, biodiversidade e serviços ecossistêmicos. Benefícios gerados pela natureza que sustentam a vida no planeta, os serviços ecossistêmicos são essenciais para garantir a capacidade da produção agrícola. Água limpa, regulação do clima, manutenção da fertilidade e da estrutura do solo, polinização de culturas e controle biológico de pragas e doenças são alguns exemplos.
O Relatório Temático é um diagnóstico minucioso que compila informações científicas e casos exitosos acerca das interações entre os usos do solo e a biodiversidade no Brasil, sob a ótica do bem-estar humano e levando em conta os saberes tradicionais. O estudo mobilizou ao longo de três anos 100 profissionais de inúmeras áreas, pertencentes a mais de 40 instituições distribuídas por todos os biomas do país. Além da síntese de conhecimento sobre a temática, o texto traz propostas para um melhor manejo do capital natural no meio rural nacional.
Topo do ranking das nações megadiversas e detentor de um vasto e rico território que abriga 20% das espécies do planeta, o Brasil também tem solo fértil, água abundante e clima favorável para a produção de alimentos. Considerado por muitos o ‘celeiro do mundo’, o país é um dos maiores produtores e exportadores de produtos agropecuários, como grãos, carnes, frutas e fibras. Segmento crucial para a economia nacional, o agronegócio é responsável por cerca de 20% dos empregos formais e por mais de um quarto (27%) do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil (R$ 403,3 bilhões em 2020). Em grande parte, é caracterizado por monoculturas em larga escala, com sistemas de irrigação intensivos e uso excessivo de insumos, fertilizantes e agrotóxicos. “O modus operandi do setor tem se mostrado insustentável, aumentando a pressão sobre o capital natural e originando grandes impactos ambientais. Isso compromete a saúde humana e afeta inclusive os serviços ecossistêmicos dos quais a atividade depende”, pontua Gerhard Ernst Overbeck, professor do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador do Relatório.
Rachel Bardy Prado, pesquisadora da Embrapa Solos e também coordenadora da publicação, reforça que a escassez de recursos naturais em algumas partes do país e os efeitos sobre o clima colocam em xeque a própria abundância da agricultura brasileira. “As principais cadeias de valor de alimentos estão susceptíveis às mudanças climáticas e certas regiões poderão sofrer quedas de produtividade e alterações na aptidão para determinadas culturas”, diz o texto. Modelos projetados estimam, por exemplo, que na fronteira Amazônia-Cerrado as variações no clima regional vão comprometer a viabilidade de 74% das atuais terras agrícolas até 2060.
Dados do MapBiomas revelam que, em 38 anos (1985 a 2022), a área utilizada para a agricultura no Brasil cresceu 95,1 milhões de hectares (Mha). Overbeck destaca que, na maioria dos casos, isso se deu às custas da destruição da vegetação nativa, o equivalente a 10,6% do território nacional. Em 2022, a agropecuária já ocupava 33% da área do país (282,5 Mha) e suas emissões respondiam por cerca de 27% do total de 2,3 bilhões de toneladas de gases de efeito estufa (GEE) lançados pelo Brasil na atmosfera.
Segundo o relatório, pode ser que esse avanço não pare por aí. Se o modelo de agronegócio vigente no país for mantido, projeções de cenários futuros indicam aumento da área destinada ao setor. A tendência é a ampliação de cultivos de soja, milho e cana-de-açúcar no Cerrado e na Mata Atlântica e de áreas de pastagens na Amazônia e no Pantanal. “Essa expansão agrícola intensificará a pressão sobre unidades de conservação e terras indígenas, com impactos negativos para o meio ambiente e as comunidades locais”, diz o estudo. Para além do viés ambiental, os autores advertem sobre as consequências socioeconômicas da dinâmica de ocupação das terras no Brasil, que tem ocasionado disputas por território, concentração fundiária e exclusão social.
O potencial produtivo do país não se restringe às grandes propriedades rurais, pois a agricultura familiar é uma peça-chave no contexto agrícola nacional. “Ela responde por aproximadamente 70% dos alimentos que chegam à nossa mesa e contribui para a segurança alimentar da população”, aponta Prado. Conhecida pelo manejo conservacionista dos recursos ambientais, pelo menor uso de insumos e pela diversidade de cultivos, a agricultura familiar – que congrega pequenos produtores rurais, povos e comunidades tradicionais (PCTs), assentados de reforma agrária, silvicultores, aquicultores, extrativistas e pescadores – emprega dois terços da mão de obra rural brasileira e assegura parcela significativa da renda no campo. Em 2017, seu valor de produção foi de R$ 106,5 bilhões enquanto a cifra da agricultura comercial convencional atingiu R$ 355,9 bilhões. Se equiparada a um país, a agricultura familiar seria a oitava maior produtora de alimentos do planeta, conforme o Anuário Estatístico da Agricultura Familiar 2023.
O fomento a essa modalidade de agricultura é um dos caminhos apontados para conciliar a produção agrícola com baixas emissões de carbono e com a manutenção da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos. No entanto, o setor ainda enfrenta dificuldades para conseguir crédito rural e assistência técnica. “É necessário ampliar o acesso às linhas de crédito diferenciadas e voltadas à agricultura de baixo impacto ambiental. Também há que se reverter o cenário atual onde, por exemplo, 84% de todo o valor contratado via Pronaf (crédito rural dirigido à agricultura familiar) foram aplicados na produção pecuária, geralmente praticada de forma extensiva e com baixa rentabilidade”, escrevem os autores na publicação.
Uma das principais mensagens do estudo é a de que, havendo vontade política, existem opções viáveis e eficazes para uma agropecuária mais sustentável no Brasil. Assim, é possível conciliar uma melhor produtividade nas pastagens e cultivos e a mitigação das mudanças climáticas. “O Relatório traz soluções já adotadas em algumas regiões do Brasil capazes de tornar a agricultura nacional mais diversificada, competitiva e resiliente. Essas práticas agregam maior renda aos produtores que conservam o capital natural”, informa Prado.
Segundo os pesquisadores, o simples cumprimento da Lei de Proteção da Vegetação (norma federal, instituída em 2012) evitaria, entre 2020 e 2050, a perda de 32 Mha de vegetação nativa no país. Além disso, “o aumento na produtividade das pastagens brasileiras permite atender a demanda futura por carne, culturas agrícolas, produtos madeireiros e biocombustíveis, sem a necessidade de converter mais hectare algum de vegetação nativa e ainda liberando terra para restauração em larga escala, por exemplo, na Mata Atlântica”, diz o texto.
Outras alternativas incluem o estímulo à restauração de áreas de reserva legal (RL) e de preservação permanente (APP); os incentivos econômicos e mecanismos financeiros para atividades agrícolas sustentáveis – como Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), linhas de crédito verdes, créditos de biodiversidade, REDD+ (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação) e mercado de Cotas de Reserva Ambiental; os programas de extensão rural com foco na agroecologia; a valorização e a disseminação de práticas e tecnologias sociais de PCTs; os sistemas de rastreabilidade de cadeias produtivas; o Sistema Plantio Direto; as florestas plantadas; o turismo rural; e o Sistema de Integração Lavoura-Pecuária-Floresta.
Contudo, para atingir a transformação desejada nos sistemas de produção agrícola, esses mecanismos precisam ser incentivados e disseminados para ganhar escala, ampliar sua abrangência nos biomas e, sobretudo, alcançar os agricultores mais vulneráveis, ressalta Overbeck.
A transição para um modelo produtivo sustentável no Brasil requer esforços de diferentes setores da sociedade e o engajamento de múltiplas áreas do governo, como planejamento, agricultura, meio ambiente e desenvolvimento regional. “A verdadeira sustentabilidade da agricultura passa pela melhoria da qualidade de vida no campo e nas cidades, pela agregação de renda aos marginalizados, pelo aumento da soberania alimentar e pela manutenção da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos. É preciso que os governos e o setor privado ajam com seriedade e de forma integrada, assegurando a efetiva implementação das normas ambientais”, avalia Prado.
A publicação enfatiza a importância de se ter instrumentos de gestão territorial, políticos, institucionais e setoriais orientados para o uso racional do capital natural e a manutenção da integridade ambiental. Estes devem levar em conta as condições locais e regionais e os distintos modos de vida Brasil afora. Outro passo fundamental para uma boa governança agroambiental é romper a dicotomia entre produção e conservação e dissipar a falsa ideia de que a biodiversidade atrapalha o crescimento. “Em longo prazo, só teremos desenvolvimento econômico no país, e principalmente no setor da agropecuária, se conseguirmos fortalecer a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos. Esses campos são aliados e não opositores!”, finaliza Overbeck.
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