Para salvar anfíbios de fungo letal, é preciso reconectar as florestas tropicais, diz estudo

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  • Anfíbios tropicais estão vivendo um declínio global, com a doença causada pelo fungo Batrachochytrium dendrobatidis (Bd) exercendo um papel especialmente significativo nas mortes; mais de 500 espécies no mundo já foram dizimadas pela infecção. 
  • Segundo o estudo, a passagem de um anfíbio por um habitat alterado para completar seu ciclo de vida pode modificar a composição de seu microbioma (a composição de bactérias que habita sua pele), induzir a estresse crônico e reduzir a diversidade genética imunológica – tudo isso pode ter impacto na resistência a doenças.
  • Embora sejam necessários mais estudos, a pesquisa pode oferecer uma razão determinante para restaurar e reconectar os habitats a fim de aumentar a resistência dos anfíbios contra doenças letais.  

Por Sean Mowbray e traduzido por Carol De Marchi e André Cherri em Mongabay | A fragmentação do habitat em florestas tropicais está aumentando a incidência de doenças fatais em sapos, rãs e pererecas, diz um estudo recentemente publicado na revista Biological Reviews. Conforme explicou à Mongabay o principal autor do estudo, Gui Becker, biólogo da Universidade Estadual da Pensilvânia (EUA), a divisão do habitat ocorre quando múltiplas classes de habitat importantes para algumas espécies anfíbias (como florestas, riachos e lagoas) são separadas.

Em trabalhos anteriores, Becker e colegas já haviam concluído que a divisão do habitat era uma força motriz por trás das extinções locais de anfíbios na altamente fragmentada Mata Atlântica. Entretanto, uma ligação entre a divisão do habitat e a morte por doenças não havia sido considerada na época. O fungo Batrachochytrium dendrobatidis é particularmente preocupante, pois está ligado ao declínio populacional no Brasil e à perda de espécies anfíbias em todo o mundo. Também conhecido como Bd, este fungo pode causar a quitridiomicose, doença potencialmente fatal.

Fagmento de floresta na Mata Atlântica do Brasil. A divisão do habitat pode ocorrer quando diferentes classes de habitat, como áreas terrestres e de água doce, são separadas. Nesses casos, espécies anfíbias que requerem diversos tipos de habitat para seu ciclo de vida podem estar sob maior risco de doenças. Foto: Gui Becker/divulgação

Becker e sua equipe, realizando testes em vários locais da Mata Atlântica, descobriram que a divisão do habitat estava ligada a maiores cargas de infecção pelo fungo durante a época de reprodução. Além disso, à medida que a distância entre a floresta e os corpos d’água aumenta, também aumentam os casos de quitridiomicose. “Essa é a ligação da doença que encontramos com a divisão do habitat”, explica Becker.

De acordo com o novo estudo, a passagem de um anfíbio por um habitat alterado para completar seu ciclo de vida poderia impactar a espécie de três formas primárias: alterando o microbioma de uma espécie (a composição de bactérias que habitam sua pele); induzindo estresse crônico; e reduzindo a diversidade dos genes imunológicos. Todos estes efeitos poderiam impactar negativamente a resistência a doenças, embora a teoria exija testes.

Para Andrea Jani, pesquisadora da Universidade do Havaí (EUA), o trabalho oferece uma “distinção sutil, mas importante” em relação às questões que envolvem a fragmentação do habitat e possíveis soluções de conservação: “A análise sugeriu que o tamanho do fragmento de habitat é menos importante do que o grau de divisão do habitat”, afirma Jani, que não se envolveu no estudo. “Em outras palavras: em alguns casos, a distância entre dois pedaços de habitat pode ser mais importante para a conservação da espécie do que o tamanho de um determinado pedaço de habitat”, ou seja, uma maior distância percorrida de um lugar para outro potencialmente contribui para a suscetibilidade a doenças.

Na opinião da pesquisadora, “o fato e a maneira como a divisão do habitat leva ao aumento do risco de doenças” também dependerá de uma série de fatores, incluindo as espécies em questão, o patógeno e o tipo de habitat.

Espécies como o Aplastodiscus leucopygius, sapo endêmico das serras do Mar e da Mantiqueira de reprodução aquática, que depende de diferentes tipos de habitat para seu ciclo de vida, podem sofrer com desequilíbrios no microbioma da pele, alteração na imunidade e estresse crônico. Foto: Gui Becker/divulgação

“O que realmente me agradou no estudo foi que eles analisaram as respostas imunológicas e isso é algo que não é realizado com freqüência”, diz Dennis Rödder, do Instituto Leibniz de Análise da Mudança da Biodiversidade, na Alemanha.

Rödder, que não participou no estudo, acrescenta que a prevalência de doenças e cargas de infecção são frequentemente investigados, mas não tanto os hormônios de estresse e o papel do microbioma. “É algo que as pessoas estão apenas começando [a explorar], e nós precisamos de muito mais informações sobre isso.”

Segundo Trent Garner, pesquisador do Instituto de Zoologia de Londres, no Reino Unido, é possível que a divisão do habitat poderia impactar a imunidade e desencadear respostas ao estresse, mas ele é mais cético quanto ao impacto sugerido sobre o microbioma.

“Digo isso porque, em minha experiência, os anfíbios inevitavelmente experimentam instabilidades microbianas que se movem da terra para a água, e de volta”, explica ele. Garner não estava envolvido na pesquisa, mas reviu o artigo. “Acho mais difícil entender como as instabilidades migratórias adicionais são uma grande força por trás das instabilidades microbianas que afetam as doenças”.

A perereca-de-capacete-do-rio-pomba (Nyctimantis pomba) é uma espécie endêmica da Zona da Mata mineira que possui baixa diversidade microbiológica em sua pele. A possível relação entre o grau de ameaça de uma espécie e a diversidade de bactérias em sua pele necessita ser mais explorada.Foto: Pedro Peloso/Projeto DoTS

Investigando o microbioma anfíbio

A compreensão da dinâmica das doenças é uma das chaves para a sobrevivência dos anfíbios ao redor do mundo, dizem os pesquisadores, particularmente nos trópicos. O fungo Bd, por exemplo, está ligada a declínios em mais de 500 espécies de anfíbios em todo o planeta, com base em pesquisas anteriores.

“O risco de doenças para os anfíbios não pode ser subestimado”, afirma Jani. “Pesquisadores e gestores de conservação têm se esforçado para encontrar maneiras de evitar o declínio de anfíbios produzido por bactérias, mas até agora não temos uma solução sólida para as populações selvagens. Parte do problema é que o patógeno pode sobreviver no meio ambiente.”

É cada vez mais reconhecido que um microbioma anfíbio saudável pode desempenhar um papel importante na proteção contra infecções, embora ainda existam lacunas significativas de conhecimento.

Pesquisas anteriores conduzidas por Jackson Preuss, biólogo da Universidade do Oeste de Santa Catarina, descobriram que a suinocultura disseminada na paisagem fragmentada da Mata Atlântica catarinense pode aumentar o risco de doenças para os anfíbios que ali vivem. Neste cenário, os anfíbios podem deixar fragmentos de floresta em busca de cursos d’água e lagoas artificiais para se reproduzirem. Mas a entrada nestes habitats aquáticos alterados, onde os dejetos de suínos são descartados, “altera as comunidades microbianas da pele dos hospedeiros anfíbios tropicais, aumentando assim potencialmente o risco de quitridiomicose”, afirma o pesquisador.

“Nossas descobertas indicam que, ao interromper os processos naturais de organização e função microbiológica, as descargas de resíduos da criação integrada de suínos e peixes podem aumentar a pressão da doença em hospedeiros nativos que dependem de tanques artificiais para a persistência da população”, explica Preuss.

Em áreas com criação intensiva de suínos, o descarte de dejetos em cursos d’água pode aumentar o risco de doença de quitridiomicose entre anfíbios tropicais. Foto: Jackson Preuss/divulgação

Outro estudo recente de Becker levantou ainda mais questões relacionadas ao papel do microbioma no declínio dos anfíbios. Analisando um banco de dados de diversidade microbiana em anfíbios ameaçados e não ameaçados no Brasil e em Madagascar, a equipe da Becker descobriu que as espécies à beira da extinção tinham níveis mais baixos de diversidade microbiana do que suas contrapartes não ameaçadas.

Neste caso, porque Becker olhou para os habitats naturais em vez de habitats divididos, sua equipe levantou uma questão “o ovo ou a galinha” sobre se o status de perigo veio primeiro, seguido por níveis mais baixos de diversidade microbiana, ou se este possível declínio microbiano veio primeiro e então contribuiu para o status de perigo.

“Não há como saber, com base nos dados que temos”, disse Becker. “Mas o padrão em si é bastante interessante. Especialmente porque estamos olhando para a biodiversidade e múltiplas escalas de organização biológica [em declínio] ao mesmo tempo.”

Qualquer que seja a sequência causal apropriada, Becker e seus coautores dizem que os padrões em torno do status ameaçado e do declínio microbiano levantam uma possível bandeira vermelha. Seus resultados poderiam indicar “baixa resistência a patógenos invasores” nessas espécies ameaçadas de extinção.

Pesquisas recentes descobriram que anfíbios tropicais em perigo, tais como a rã Gephyromantis  corvus, confinada a uma pequena área de Madagascar, têm uma diversidade microbiológica menor em comparação às espécies não ameaçadas. Isso poderia ter implicações para a resistência a patógenos como o fungo Bd. Foto: Franco Andreone via Wikimedia Commons (CC BY-SA 2.5).

Preparar imunidade para múltiplas espécies?

Embora todos concordem que há necessidade de mais pesquisas para testar a hipótese de divisão de habitat, Becker acredita que o conhecimento já adquirido poderia levar os projetos de conservação a pensar em modos de restaurar e conectar múltiplos habitats terrestres e aquáticos – como uma forma imunizar contra doenças “através da exposição repetida de baixa carga a patógenos endêmicos e redução da imunossupressão induzida pelo estresse”.

“Pensamos que, se há florestas, vamos conectar as florestas. Mas no caso dos sapos, há mais do que floresta”, explica Becker. Para alguns anfíbios, por exemplo, pode ser o caso de olhar além dos fragmentos e conectar as zonas ribeirinhas ou conectar seus locais de reprodução.

As descobertas também podem iluminar questões similares em outras espécies, diz Becker, provocando um reexame de qualquer espécie que dependa de diferentes tipos de habitat como parte de seu ciclo de vida, e fazendo com que os pesquisadores procurem vulnerabilidades impulsionadas pela divisão do habitat.

Embora os potenciais efeitos prejudiciais da divisão do habitat sejam preocupantes do ponto de vista da conservação, compreender melhor a questão também poderia oferecer possibilidades de restauração, embora “ainda não estejamos lá”, adverte Becker.

“O bom é que estamos trabalhando para poder, talvez, restaurar paisagens que favoreçam microbiomas saudáveis [e] a diversidade genética imunológica”, acrescenta Becker. O estudo recente oferece um “primeiro passo para as pessoas começarem a pensar que um projeto de restauração também pode ser uma maneira de aperfeiçoar o sistema imunológico hospedeiro e reduzir o risco de doenças em cada animal que precisa de múltiplos ambientes para completar seu ciclo de vida”.

Quando se trata de anfíbios, Rödder concorda que essa é uma possibilidade interessante, mas reitera que muito mais precisa ser aprendido sobre como os microbiomas respondem à modificação do habitat em diferentes ecossistemas.

“A maioria dos ecologistas e conservacionistas argumentam que a conectividade facilita a transmissão de doenças através do movimento do hospedeiro”, diz Garner. “Pessoalmente, gosto de posições contrárias, e espero que Becker e seus parceiros possam gerar evidências que sustentem esta mudança de visão.”


Este texto foi originalmente publicado por Mongabay de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.

Carolina Hisatomi

Graduanda em Gestão Ambiental pela Universidade de São Paulo e protetora de abelhas nas horas vagas.

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