Conferência que reuniu lideranças indígenas abriu ciclo que comemora os 95 anos da UFMG e o Bicentenário da Independência
Por Hugo Rafael, da Universidade Federal de Minas Gerais | “Por que vocês estão estudando? Por que vocês estão ficando mais sábios?” Com esse questionamento, o xamã e líder do povo indígena yanomami Davi Kopenawa Yanomami iniciou sua fala, na tarde de segunda-feira, 27 de junho, em conferência no auditório da Reitoria da UFMG, no campus Pampulha. Na exposição inicial, em língua yanomami, interpretada pela pesquisadora Ana Maria Antunes Machado, Kopenawa conclamou os napas (“brancos”) e a comunidade universitária a “acordar o pensamento para proteger a floresta, o mundo e a terra-floresta”. A atividade, Diálogos pela (re)existência em um mundo comum, disponível no canal da UFMG no YouTube, abriu o ciclo de conferências Futuro, essa palavra, que integra as celebrações dos 95 anos da UFMG e do Bicentenário da Independência do Brasil, ambos completados em 7 de setembro de 2022.
Ao lado do também líder indígena Ailton Krenak, Kopenawa falou do prazer de estar na UFMG e pediu aos presentes que os ouvissem. “Eu estou feliz de estar aqui, falando para vocês, e nós vamos falar sobre todos nós estarmos preocupados. Por isso, estamos sentados aqui hoje: estamos preocupados com o mundo. Eu vou falar para vocês o que está acontecendo na minha terra yanomami, o que eu conheço e o que estou vendo com meus olhos. Muitas coisas ruins estão acontecendo na minha terra: os brancos estão acabando com a gente, e isso não é bom. E aqueles que querem ver a floresta bem, saudável, ver a chuva cair precisam ouvir. Precisamos falar sobre isso, porque somos os protetores das florestas. Mas nós não somos os únicos: vocês das universidades também precisam lutar por isso”, conclamou.
Minha língua é minha flecha
A mudança climática também foi abordada por Kopenawa. Segundo ele, os napas não sabem lidar com “aquilo que chamam de mudança climática”, que é resultado do que os “donos da cidade e da mercadoria” estão fazendo com o mundo. “Há muito tempo, as autoridades estão falando disso, mas ficam quietas e não se movem, porque os napas não sabem resolver a mudança climática. Falam que está piorando e fazem reuniões, mas não resolvem, porque não sabem como resolver. Então, não há mudanças”, denunciou. Na interpretação do xamã, o xiulari-bo (que pode ser entendido como “ser do caos”) “está bravo com aqueles que destroem a floresta”. “Há muito tempo vocês têm visto isso e não fazem nada: o sol está mais fraco, a chuva, mais forte. Nós estamos vendo isso que vocês chamam de mudanças climáticas, e é isso que vai matar todos nós”, alertou.
Em português, Davi Kopenawa explicou que escolheu abrir a conferência em seu idioma originário como forma de representação de sua luta. “Eu continuo falando a própria língua yanomami, porque ela é a minha flecha. Meu arco e flecha, para me defender e também para enrolar: o branco está enrolando a gente, e nós também sabemos enrolá-lo”, disse.
Esse enrolar, segundo Krenak, que se pronunciou depois de Kopenawa, pode ser entendido como os processos de negociação que os povos indígenas precisam travar com os brancos em defesa da própria vida. “Há muitos inimigos, mas há poucos índios, que estão protegendo o mundo inteiro. Nós, povos indígenas que falamos português, denunciamos que os inimigos estão nos maltratando, e também os rios, as florestas, os peixes”, denunciou Kopenawa.
Ainda em português, o xamã yanomami denunciou a “grande mineração”, classificada por ele como “assassina”, e alertou para o espalhamento de novas doenças. “Não é só o coronavírus, outras doenças estão vindo. Vão matar muitas pessoas, porque a sociedade civil cresceu muito, e há muita gente destruindo, fazendo bagunça. A Mãe-Terra está falando com os pajés, para levarmos esta mensagem para vocês, para vocês se lembrarem quando vier outra doença muito forte, que vai matar ainda mais o povo da cidade, o povo da floresta e as nossas águas”, disse Kopenawa.
Mais coração
Ambientalista, filósofo, poeta e escritor brasileiro do povo indígena krenak, Ailton Krenak deu sequência à conferência, destacando que estar em um ambiente como o auditório da Reitoria, com algum silêncio, é oportunidade para “deixar nossa cabeça mais ou menos na altura do coração”. Segundo o pensador, os protocolos das instituições acadêmicas “trabalham muito para a gente ficar com a cabeça acima do corpo e do coração”.
Citando o colega cientista e ativista Antonio Nobre, Krenak afirmou que a cultura ocidental, inclusive no meio acadêmico, “silencia o coração em favor de uma hiperatividade do cérebro. E parece que esse corpo que as pessoas constituem é só um veículo para carregar o cérebro de um lugar para outro. As pessoas circulam por aí, não cuidam do resto do corpo e ficam com um cérebro superinteligente fazendo o corpo levá-lo de um lugar para outro. Essa imagem cômica e trágica sugere que as pessoas estão virando zumbis, sem cuidado com os lugares onde o corpo pisa, e o corpo pisa em tudo no mundo. Esses corpos ambulantes carregadores de cérebros precisam ser afetados com sentimento”, defendeu.
Ainda citando Antonio Nobre, Krenak explicou que a terra é um organismo vivo, com humor e inteligência. “Obviamente, ela tem um modo de operar diferente dos humanos. A energia dela atua o tempo inteiro numa potência muito grande, produzindo vida. Ela opera em amor incondicional. Eu achei chocante um cientista, principalmente da área da ciência em que ele se destaca [Nobre é agrônomo], usar esse termo poético de que a terra opera em amor incondicional. Ou seja, ela tem um funcionamento simpático, movido por empatia. E como diz o poeta, essa empatia já é um tipo de amor. É o amor que move a vida no planeta. Um cientista dizer isso pode parecer estranho. É admissível que um poeta diga isso: os poetas podem pirar, podem dizer ‘a terra falou comigo, a terra dança, a terra é linda’. É por isso que, às vezes, invoco Carlos Drummond de Andrade como meu escudo invisível, porque se alguém me acusar de estar sendo poético, eu falo: bom, tem o Carlos Drummond de Andrade”, brincou.
Futuro, hoje
Na sequência, Krenak destacou a palavra “futuro”, que dá nome à série que celebra os 95 anos da UFMG. “O futuro, essa palavra, dispara em cada um de nós, na célula de cada um, uma expectativa sobre alguma coisa que vai acontecer depois: amanhã, por exemplo. O futuro tem que ser pelo menos amanhã, porque é quase impensável fazer confundir essa energia que dispara o futuro com este momento em que estamos nos encontrando aqui, neste salão, agora”, refletiu.
Na sequência, o pensador defendeu a importância de trazer o futuro para o agora. “Que tal a gente deixar a nossa mente baixar a temperatura, ficar no nível do coração e imaginar o futuro agora? Por que depois? Imagine só: você encontra a sua mãe e diz pra ela: depois, no futuro, eu te abraço. Por que nós temos tanta dificuldade de invocar o futuro aqui, agora?”, indagou Ailton Krenak.
“Uma vez usei uma expressão na mídia que se espalhou por todo lado: o futuro é ancestral. Foi uma resposta que dei a uma pergunta sobre futuro. Foi uma prospecção, porque, na cultura do ocidente, o napa pensa que o futuro é um outro lugar. Não aqui, nem agora. O futuro é uma parábola sobre uma coisa que não existe. Ninguém pode vencer o amanhã, o amanhã não está à venda. Quando você cogita alguma coisa que não pode acontecer aqui e agora, só depois, você está fazendo um jogo, é um bingo: vamos ver se dá. O futuro é: vamos ver se dá pra gente parar de comer a terra? Vamos ver se dá pra gente ser sustentável? Vamos ver se dá pra gente inventar uma outra narrativa sobre nós e o mundo para que a gente continue comendo a terra?”, disse Krenak.
Ailton Krenak recorreu à fala de Kopenawa para afirmar, assim como o colega, que “os brancos não têm mais capacidade de consertar os estragos causados no eixo da Terra”. Segundo ele, “agora ela está brava, com febre, e pode dar uma patada na gente. Assim como uma mãe amorosa, ela pode sentar a mão no pé do ouvido da gente, e a gente pode sair voando por aí, aos milhões”. Por isso, ele reforçou a necessidade de se pensar o futuro agora. “Pensar o futuro agora implica responsabilidade, em não negociar mais nada, em não aceitar os termos que o capitalismo impõe: de sermos uma sociedade da mercadoria e pronto. Dizem que a única coisa que cresce indefinidamente no espaço é o câncer, então a gente tem que parar com essa doideira de crescer. A ideia de desenvolvimento e progresso é gatilho do consumo, da mercadoria, de toda a predação do corpo da terra”, afirmou.
Colaboração entre UFMG e povos indígenas
Responsável por coordenar o evento, a professora Ana Maria Rabelo Gomes, da Faculdade de Educação da UFMG, iniciou sua fala visivelmente emocionada, vestindo uma camisa em homenagem ao indigenista Bruno Pereira e ao jornalista Dom Phillips, mortos recentemente, como retaliação ao trabalho de denúncia feito na Amazônia. “Falar chorando é parte da nossa experiência. Noventa e cinco anos da UFMG com a presença dos povos indígenas: não existe maneira melhor de iniciar essa celebração. A parceria com Davi e com Ailton, desde a organização da Aliança dos Povos da Floresta, é uma história antiga. A presença dos dois nos conforta, nos alimenta, nos reanima, nos energiza e nos ajuda a ter força, inspiração, criatividade para estar à altura do desafio que temos aqui”, disse.
A reitora Sandra Regina Goulart Almeida afirmou que a mesa, com a presença de Davi Kopenawa Yanomami e Ailton Krenak, “era um sonho nosso para iniciar as comemorações dos nossos 95 anos.” Em sua fala, a reitora também destacou o “duplo sentimento” que marca a recepção dos líderes e ativistas indígenas na Universidade, e lembrou que o evento “também é o nosso espaço de homenagem ao indigenista Bruno Pereira e ao jornalista Dom Phillips, para que não nos esqueçamos jamais da brutalidade que sofreram. A UFMG está em luto por suas perdas e se soma à indignação social contra as violências sofridas pelos povos indígenas e por defensores da causa desses povos.”
“Por um lado, é um momento especial para todos nós, pois começamos um novo ciclo de conferências em comemoração aos 95 anos da nossa instituição e também ao Bicentenário da Independência, efemérides comemoradas no dia 7 de setembro. Então essa é a nossa satisfação. Por outro lado, um contexto adverso e mesmo temerário do nosso país: em uma tensão de forças arcaicas e retrógradas que tramam diligentemente para que tudo permaneça como sempre foi, mantendo o modelo de exploração e destruição que marca o legado de uma sociedade ainda colonial, injusta e desigual como a nossa. Por outro lado, alimentamos crença de um futuro que nos aguarda em condições melhores, mais humanas, mais justas e mais dignas. É por isso que o início desta conferência e desta celebração não poderia ser realizado de outra forma, a não ser abrindo um espaço de reflexão aos povos originários a quem devemos tanto e que têm sido afetados pelo contexto atual e pela tensão que eu mencionei e que nos lembram da importância da nossa existência aliada a uma resistência contínua”, afirmou a reitora.
Pensamentos e ideias que inspiram
Uma das principais atividades da programação que comemora o aniversário de 95 anos da UFMG e o bicentenário da Independência, o ciclo de conferências Futuro, essa palavra será realizado mensalmente, até setembro, mês em que a Universidade foi fundada. Todas as atividades vão contar com a participação de lideranças e pensadores contemporâneos, das mais diversas áreas. As conferências vão abordar temas centrais para a sociedade contemporânea, que indicam como a UFMG projeta pensamentos e ideias que inspiram as novas gerações. Seu nome é inspirado na expressão Liberdade, essa palavra, presente no livro Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles: “Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que entenda.”
Este texto foi originalmente publicado pela UFMG de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.