Por Sônia Kaingáng, para a Mongabay.
Para além de sua relevância ecológica, o desaparecimento da araucária (Araucaria angustifolia) na região Sul ameaça também a sobrevivência de todo um povo: os Kaingáng, terceiro maior em população indígena no Brasil, com um contingente de 45 mil pessoas.
A mata de araucária, também chamada de floresta ombrófila mista, é um dos ecossistemas mais devastados do Brasil. No passado, chegou a cobrir 40% do território do Paraná, 30% de Santa Catarina e 25% do Rio Grande do Sul. Hoje está reduzida a 3% de sua extensão original, conforme dados do Ministério do Meio Ambiente (MMA).
“O [povo] Kaingáng precisa existir não só como pessoa, mas também como cultura produzida nesse ambiente da araucária, da floresta, do meio ambiente, sendo esta uma retomada cultural, de resistência”, diz Bruno Ferreira, historiador e doutor em Educação, além de integrante do povo Kaingáng.
A araucária ocupa espaço nobre na cultura Kaingáng, usada na alimentação, na educação formal, como matéria-prima para a produção de artesanato e como recurso para a manutenção da espiritualidade.
A semente colhida da araucária, o pinhão, por exemplo, é consumido de variadas formas: tostado, cozido ou socado no pilão e transformado em uma farofa chamada de pisé. Mas também as espécies vegetais que crescem sob a árvore servem como importante fonte nutricional, a exemplo do urtigão (pyrfér, em idioma Kaingáng); a samambaia (grỹ); o sinjir, uma espécie de trepadeira; e o cogumelo ka nĩgrẽg, retirado do tronco da árvore.
O descanso e as refeições geralmente acontecem debaixo da araucária, momentos em que são transmitidos oralmente os ensinamentos que promovem a manutenção da cultura Kaingáng.
A araucária também compõe os mitos Kaingáng e tem papel importante na composição das metades clânicas Kamẽ e Kanhru, os dois troncos familiares dos quais descendem todos os membros Kaingáng.
“[O pinheiro] traz ensinamentos para as famílias, para a população indígena e para o conhecimento espiritual dos kujá [líderes espirituais do povo Kaingáng], que foram sendo passados pelos nossos antigos”, conta o kujá Pedro Garcia, prestigiado pelo governo do Rio Grande do Sul com o prêmio Trajetórias Culturais em 2021.
O problema é que a maioria das Terras Indígenas onde habitam os Kaingáng não possui mais araucárias.
“Ao distribuir mudas de araucárias, um cacique procurou ajuda e nos contou que as comunidades não tinham mais pinheiro e não poderiam derrubá-lo para o rito anual Kaingáng”, diz Flávio Zanette, pesquisador da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e referência no estudo da araucária no país há quase 40 anos. O ritual a que Zanette se refere é o Kiki Koj, cerimonial de honra aos mortos, em que o tronco do pinheiro é elemento fundamental para sua realização.
Além do caráter cultural e religioso, a araucária e o povo Kaingáng compartilham também um histórico de degradação do território, com os indígenas sendo expulsos de suas terras tradicionais ao longo de décadas por invasões conjuntas do governo, de posseiros e de pequenos agricultores — os mesmos que, não por acaso, desmataram vastas extensões de matas de araucária.
“No final dos anos 1970 e início dos anos 1980, os pinheiros foram derrubados porque se tinha a ideia de que, no lugar onde havia um mato de pinheiros, poderiam ser produzidas outras plantas. E o espaço deu lugar à produção da monocultura”, pontua Bruno Ferreira. Áreas inteiras no Rio Grande do Sul foram nomeadas de fág kava, “pinheiro ralo” em idioma Kaingáng — um indicativo dos danos causados à mata de araucária nos últimos séculos na região.
Com o tempo, as terras exploradas foram devolvidas ao povo Kaingáng em seu histórico de luta por ocupação territorial. Ainda assim, a população atual hoje se espalha por Terras Indígenas de tamanho reduzido, em acampamentos ou reivindicações à beira do asfalto e em zonas urbanas do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e sul de São Paulo.
E mesmo as TIs oficialmente reconhecidas sofrem com uma prática que é nociva tanto à sobrevivência da araucária quanto da cultura Kaingáng. É o chamado arrendamento, uma parceria entre não indígenas e indígenas para alugar as terras dos povos originários ao agronegócio.
Expressamente ilegal de acordo com a Lei 6.001 de 1973, conhecida como Estatuto do Índio, o arrendamento foi introduzido pelo próprio governo brasileiro através do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e se mantém até hoje com o apoio da Fundação Nacional do Índio (Funai).
O recente dossiê Kanhgág Ga, que reúne informações sobre o arrendamento de Terras Indígenas do Rio Grande do Sul, enviado à Anistia Internacional e à ONU e protocolado em diversos órgãos de apuração competentes no Brasil, aponta a prática como a principal fonte de conflitos e violência nas TIs do estado, com cooptação e corrupção de lideranças indígenas pelas elites econômicas locais para promover crimes ambientais em prejuízo à saúde e à qualidade de vida do povo Kaingáng há décadas.
A erradicação do arrendamento vem sendo discutida de maneira a assegurar a subsistência das comunidades indígenas afetadas cultural e ambientalmente pela prática.
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Mesmo em um cenário difícil, a nobreza dos aspectos culturais e de valores do povo Kaingáng ainda resistem na figura da araucária. Um dos lugares onde isso é visível é na Terra Indígena Mato Castelhano/Fág Tỹ Ka, no norte do Rio Grande Sul, onde vive uma comunidade de cerca de 300 pessoas em uma área de 3.500 hectares.
A população de Fág Tỹ Ka possui um diferencial em relação a outras comunidades Kaingáng, que é o acesso à araucária pela Floresta Nacional de Passo Fundo, que se sobrepõe à TI — uma negociação que custou quase uma década para ser efetivada.
“Nossos antepassados passaram por aqui, meus avós moraram aqui e havia muitas araucárias. Nosso acesso foi difícil, houve bastante resistência de não indígenas e organizações, mas hoje colhemos o cipó, a taquara e o pinhão”, relata o cacique de Fág Tỹ Ka, Jonatan Pỹn Sá, citando diversos recursos da mata de araucária bem conhecidos pelo povo Kaingáng.
A reafirmação do uso ancestral da terra pelo povo Kaingáng a partir da araucária pode sinalizar uma intensificação da tomada de decisões responsáveis no sentido de evitar a perda da árvore nos próximos anos, como analisa Bruno Ferreira.
“A cultura Kaingáng precisa do pinheiro. É a nossa principal planta e seu desaparecimento traz consequências graves porque existe uma destruição da fonte cultural, de alimento e resistência do povo Kaingáng”, diz o historiador. “Esforços de revitalização da cultura Kaingáng devem estar alinhados à retomada do plantio da araucária nos territórios do povo Kaingáng.”
Embora o plantio e o desenvolvimento de araucárias venha ocorrendo nas terras Kaingáng, sua mensuração é dificultada pela informalidade da prática nos territórios indígenas.
Recentemente, notícias sobre plantios em maior escala envolvendo o povo Kaingáng foram registradas, e apontam um total de 10 mil araucárias plantadas em suas terras. A estimativa é de 2019, anterior à pandemia, e reflete ações dos Kaingáng com apoio de parcerias das universidades federais da região Sul.
Este texto foi originalmente publicado por Mongabay de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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