Por IPAM Amazônia — Áreas úmidas do Cerrado são regiões de alta relevância ecológica para a manutenção de recursos hídricos e para a mitigação das mudanças climáticas. Apesar de sua importância, não apenas para o bioma, mas para o Brasil todo, vêm perdendo espaço para a ação antrópica (pelo homem) a cada ano: entre 1985 e 2020, segundo dados do MapBiomas, o Cerrado teve 582 mil hectares de áreas úmidas subtraídos – o que representa cerca de 10% do total de áreas úmidas que existia em 1985. A maior parte, 61%, está relacionada ao uso agropecuário.
A região hidrográfica do Tocantins-Araguaia foi a mais afetada. Nos últimos 36 anos, perdeu 230.434 hectares de áreas úmidas, o equivalente a 40% de todas as perdas de áreas úmidas no Cerrado. Somente em 2021, a bacia do Rio Tocantins concentrou 23% de toda a área desmatada do bioma, conforme o MapBiomas.
“As áreas úmidas são importantes reservatórios de água. Essa abundância de água disponível para a irrigação teve papel importante na expansão agropecuária nas últimas décadas, e, consequentemente, na alta produtividade de grãos na região”, diz o pesquisador do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), Dhemerson Conciani.
Áreas úmidas são um tipo de vegetação do Cerrado com predominância de camadas de gramíneas e arbustos, e que está sujeita ao alagamento sazonal, como nos campos úmidos, ou sobre influência fluvial, como nos brejos. Em algumas regiões, essas áreas podem estar associadas às espécies de formação savânica ou palmeiras. São encontradas, principalmente, na região das bacias Amazônica e Araguaia/Tocantins e nas chapadas.
São fundamentais para o carregamento de reservatórios subterrâneos e rios que irrigam o país, além de oferecerem um grande volume de água em forma de lagoas temporárias e de espelhos d’água, responsáveis por abastecer a população local e a fauna do Cerrado. São, também, peça importante para o “funcionamento” do bioma, que depende de seus ciclos de inundação e de seca. Por isso, alterações na drenagem de áreas úmidas podem acarretar na perda de biodiversidade, na degradação do ecossistema e na alteração do abastecimento de lençóis freáticos.
Segundo a pesquisadora do departamento de Botânica da UnB (Universidade de Brasília), Cássia Munhoz, áreas úmidas “são globalmente entendidas como ecossistemas na interface entre ambientes terrestres e aquáticos, sujeitos a inundações por águas pouco profundas ou com solos sazonais a permanentemente encharcados. Existem diferentes tipos de vegetação que ocupam áreas úmidas dentro do bioma Cerrado, desde florestas a campos, formando complexos mosaicos paisagísticos.”
Cabe lembrar que o Cerrado é responsável pela irrigação da maioria dos cursos d’ água de oito das 12 grandes regiões hidrográficas brasileiras. “As áreas úmidas do Cerrado funcionam como filtros e reservatórios de água doce, garantindo a qualidade da água e de rios perenes na estação seca”, destaca Munhoz. “Além disso, as áreas úmidas armazenam quantidades impressionantes de carbono em solos orgânicos, podendo ultrapassar as florestas de terra firme amazônica no estoque total de carbono.”
Além de sua importância para a biodiversidade do Cerrado, as áreas úmidas também são importantes polos socioculturais para as comunidades tradicionais da região, que vivem, principalmente, do extrativismo. Ribeirinhos, pescadores artesanais, barranqueiros, fundo e fecho de pasto, por exemplo, dependem das reservas de água das áreas úmidas, que abastecem rios durante a seca.
“Essas áreas são importantes culturalmente e economicamente para as comunidades tradicionais do Cerrado. São fonte de água para essas populações e seus animais, além de permitir o acesso a produtos extrativistas, como o buriti e o capim dourado”, explica a pesquisadora do IPAM e coordenadora científica do MapBiomas, Julia Shimbo.
Com a crescente instabilidade no abastecimento, que causa secas cada vez mais severas, as comunidades dessas regiões são as primeiras a sofrerem as consequências. Segundo dados do projeto Tô no Mapa, 16% das comunidades tradicionais observadas enfrentam conflitos por água.
Desde 1985, 61% das perdas de áreas úmidas no Cerrado ocorreram para uso agropecuário, especialmente pastagem e agricultura, destaca o MapBiomas. Mesmo com a grande quantidade de água nessas regiões, a crescente demanda por irrigação tem secado espelhos d’água, interferindo no ecossistema.
“Com menos água disponível que a demanda, a viabilidade econômica de toda a cadeia de produção de grãos está ameaçada, seja a lavoura irrigada ou não. Isso coloca em risco não só a rentabilidade do próprio agronegócio, mas também a subsistência de pequenos agricultores, povos tradicionais e comunidades indígenas”, afirma Conciani.
A vegetação nativa desses ecossistemas vêm sendo suprimida e substituída pelo avanço de pastagens e de monoculturas: cerca de 32% das perdas de áreas úmidas no Cerrado foram para outros tipos de vegetação como campo, savana e floresta.
Conciani frisa que a supressão das áreas úmidas também tem consequências para o regime de chuvas. “Além do impacto no armazenamento da água, diminui-se também a evapotranspiração, isto é, a quantidade de água devolvida para a atmosfera em forma de vapor. Este é um processo que afeta diretamente a formação de nuvens, diminui o acumulado de chuvas ao longo das estações do ano e, consequentemente, ajuda a aumentar a demanda por irrigação.”
Tendo em vista a importância socioambiental do ecossistema de áreas úmidas do Cerrado, pesquisadores defendem o investimento na fiscalização e no monitoramento dessas regiões para a proteção da sociobiodiversidade, como um importante passo para garantir o abastecimento do Cerrado.
“Diante da crise hídrica que tivemos no ano passado e outros anos, aumento de temperatura, mudanças no regime de chuvas e eventos extremos, como de secas mais severas, as áreas úmidas do Cerrado são fundamentais para superarmos essas crises. Fiscalizar e monitorar a captação e a distribuição de água nessas regiões é fundamental”, destaca Shimbo. “O mapeamento e monitoramento contribuem para o entendimento da dinâmica dessas áreas. Ajuda a compreender suas possíveis ameaças e impactos”.
A pesquisadora acrescenta que além da fiscalização, é primordial que sejam criadas unidades de conservação: “Isso pode ter um papel importante na proteção das áreas úmidas e de serviços ecossistêmicos, como de abastecimento hídrico para as grandes e pequenas cidades e para a agricultura.”
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