Por UFRGS — Avaliar níveis de risco por contaminação química e de infecção por protozoários via água para consumo humano no estado do Rio Grande do Sul foram os objetivos de uma tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Engenharia Química da UFRGS. Os resultados apontam alto nível de contaminação por Giardia e Cryptosporidium – protozoários causadores de doenças intestinais encontrados em fezes de animais, principalmente gado bovino – nas águas de Porto Alegre. A água consumida pelos habitantes dos municípios de Viamão, Passo Fundo e Capão do Leão também apresentou alto índice de contaminação por esses microrganismos. A ideia é que os resultados do trabalho sejam usados como valores guias em parâmetros químicos ainda não previstos no Padrão Brasileiro de Potabilidade, visando reduzir os riscos à saúde da água consumida no Estado.
A partir de dados disponibilizados por outros estudos precedentes, foram utilizados dois tipos de avaliação de risco, uma química e outra biológica, feitas através de cálculos de probabilidade. Na primeira avaliação, o autor do trabalho, o engenheiro químico Luciano Zini, calculou os valores guias em 61 parâmetros químicos não listados no padrão brasileiro de potabilidade. Esses valores poderão ser usados como referência para avaliar a potabilidade da água.
Alguns parâmetros estudados ultrapassaram os limites toleráveis de risco infeccioso segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Dentre os resultados das amostras, alguns elementos não listados apresentaram altos índices. Um exemplo é o 17-alpha-etinilestradiol, hormônio sintético lançado no meio ambiente pela descarga de esgoto doméstico e efluentes não tratados, que apresentou concentração mais de 260 mil vezes acima do valor guia.
A segunda avaliação foi realizada a partir da ocorrência de protozoários nas estações de tratamento de água do Rio Grande do Sul entre os anos de 2016 e 2020. De 2.304 amostras de água não tratada, 223 apresentaram esses organismos, com concentração variando de 0,1 a 21,5 cistos de Giardia e/ou oocistos de Cryptosporidium por litro. Para alguns sistemas de abastecimento de água, o risco de infecção por Giardia ultrapassou o limite de tolerância definido pela OMS, que é de um caso a cada mil pessoas.
As hipóteses levantadas pela pesquisa sugerem que as contaminações químicas não previstas pela regulamentação brasileira se devem ao fato de o Padrão Brasileiro de Potabilidade não contemplar os contextos locais, mas, sim, parâmetros mais gerais. Por parte do risco biológico, o estudo apontou que, entre 202 mananciais superficiais do RS, 56 possuem alta concentração dos protozoários citados, com média geométrica anual de Escherichia coli superior a mil células por 100 mL. Isso significa que esses mananciais de captação de água estão altamente impactados, e a estimativa é que cerca de três milhões de pessoas tenham consumido água sujeita a ter a presença de protozoários.
Conforme Luciano, “a população de gado no RS é maior que a população humana: são mais de 12 milhões de cabeças de gado contra em torno de 11 milhões de humanos. Essa é a primeira evidência do risco desses protozoários estarem circulando no ambiente do Rio Grande do Sul e de forma muito intensa, devido ao nosso modelo econômico baseado na pecuária”.
O pesquisador avalia que o tratamento de esgoto no estado é escasso, com capacidade instalada de dez mil litros por segundo, mas apenas metade dessa capacidade está sendo utilizada, não atendendo nem a 30% de toda demanda do RS, além do tratamento comumente aplicado não eliminar esses protozoários.
Luciano conta que a pesquisa de doutorado deu continuidade à investigação realizada no mestrado, no qual estudou níveis de agrotóxicos na água para consumo humano. No doutorado, o pesquisador partiu de dois casos vividos por ele: um deles ocorreu em Porto Alegre, em 2016, quando foi detectada alteração no gosto e no cheiro da água potável. Mesmo com indícios de contaminações químicas na água para consumo humano, as análises de amostras dessa água detectaram níveis aceitáveis de acordo com o padrão de potabilidade vigente, permitindo o uso. Outra situação ocorreu em Santa Maria, em 2018, quando o engenheiro integrou uma investigação de um surto de toxoplasmose no qual foi detectado, pela primeira vez no Estado, uma variante do protozoário Toxoplasma gondii, causador da doença. Até então, esse havia sido o maior surto de toxoplasmose do mundo, com 748 casos confirmados. Além disso, outros motivadores foram pesquisas anteriores que demonstravam presença de Cryptosporidium e Giardia em amostras de água.
O objetivo do pesquisador é que o trabalho seja utilizado para melhorar os Padrões de Potabilidade, um conjunto de exigências que devem ser atendidas para que a água seja considerada adequada ao consumo humano e reduza os riscos à saúde. Luciano defende que seria necessário ter um esforço de regulamentação da qualidade da água em cada estado. No Rio Grande do Sul, por exemplo, a legislação prevê a análise de outros agrotóxicos, além dos exigidos pelo padrão nacional. “Além dos previstos no Brasil, devem ser analisados 46 parâmetros a mais que são aqui do Rio Grande do Sul. São necessárias novas ações das instituições competentes, como dos ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente, para que se pense em que atitudes poderiam ser realizadas para evitar que a contaminação de protozoários nos mananciais chegue à água”, completa Luciano. Ele também alega que o Governo Federal deve lidar de forma menos negligenciada com as questões sanitárias, citando como exemplo a extinção de cadeiras da área da saúde no Conselho Nacional do Meio Ambiente (em dezembro de 2021, uma decisão da ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber suspendeu a redução). Luciano acrescenta que o Brasil está distante de conseguir cumprir as metas da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, que prega uma economia sustentável e preza pela natureza local, por exemplo.
Luciano acredita que precisamos universalizar o saneamento básico no Brasil, pois “temos 35 milhões de brasileiros sem acesso à água potável – os cientistas já vêm alertando [sobre isso] há muito tempo, a classe política tem ignorado. O desafio é deixar as novas medidas se manterem num médio ou longo prazo com um consenso da classe política de olhar para essas questões ambientais e entender que saneamento básico não é um balcão de negócios, mas uma questão de saúde, e não apenas de uma geração”.
No setor industrial, ele afirma que quem deve determinar quais efluentes podem ser lançados em mananciais é o próprio meio ambiente. Uma das dificuldades para essa regulamentação são as referências desatualizadas que o Conselho mantém desde 2005, nas quais faltam novos indicativos de risco da água ao consumo humano, como os abordados no estudo de Luciano. “A perspectiva de risco à saúde de 2005 para 2022 já passou por um avanço muito grande no conhecimento científico. Novas metodologias analíticas de métodos in vitro para cálculo desses riscos já foram estudadas, então essa legislação está um tanto quanto defasada, e não contempla diversos parâmetros que têm sido quantificados na água para consumo humano”, completa o pesquisador.
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