Pesquisa em piscinões inicia mapeamento de microplásticos na Grande São Paulo

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Por Aline Vessoni, do Jornal da Unesp | Eles estão em todos os países, e também nos mares, no gelo da Antártica, no ar que respiramos, na atmosfera.  Os microplásticos – fragmentos de plástico com dimensões abaixo de 5 milímetros – são hoje virtualmente onipresentes, segundo pesquisas que vasculharam os mais diversos recantos do planeta.  E estudos recentes têm encontrado vestígios de pequenas partículas de plástico em células e tecidos de diversas espécies de animais, marítimos e terrestres, e também em placentas, no leite materno e no sangue humano. Segundo um estudo da Universidade de Wageningen, na Holanda, a ingestão diária de fragmentos de microplástico, escondidos nos alimentos que formam a dieta de adultos e crianças, pode chegar a 100 mil unidades. Ao longo de um ano, isso representaria o equivalente à massa de um cartão de crédito.

Essa onipresença do plástico no planeta reflete sua importância na cultura material das sociedades modernas. Segundo levantamento do Programa Ambiental das Nações Unidas, 400 milhões de toneladas são produzidas anualmente. Embora seja mais fácil associar o plástico a objetos como sacolas, garrafas e embalagens de comidas, ele é utilizado na produção de uma infindável lista de itens, de glitter a peças de automóveis. E justamente devido ao grande número de veículos que circulam pelas cidades, os fragmentos de pneus surgem como uma importante fonte de contaminação por microplásticos. Isso também vale para a cidade de São Paulo, segundo mostram estudos de um pesquisador da Unesp que analisou o conteúdo dos chamados “piscinões” encontrados na capital paulista e em sua área metropolitana.

Presença recorde de fragmentos de pneus

O engenheiro Rodrigo Moruzzi, professor do Instituto de Ciência e Tecnologia, no câmpus de São José dos Campos, pesquisa o universo dos microplásticos desde 2018. Sua metodologia de investigação envolve a análise criteriosa do material que fica depositado nos reservatórios de detenção de água pluvial, que são popularmente conhecidos como “piscinões”.

Com uma taxa de urbanização de 99,1%, a região metropolitana de São Paulo é uma das mais densamente povoadas do mundo. O crescimento e a ocupação desordenada da área urbana ocasionaram o aterramento de diversas várzeas e a canalização de rios e córregos em espaços diminutos. Uma das soluções encontradas para as temporadas de chuvas e enchentes foi a criação dos “piscinões”, uma espécie de margem de várzea artificial com a função de acumular o excesso de água da chuva.

Sequência de operação do reservatório. O reservatório vazio (a) recebe águas de escoamento da chuva (b) até o limite máximo (c) quando a água é bombeada para o rio (d) e o sedimento é retirado e levado para outro lugar (e). Fonte: Goehler et al. Crédito: Helena Trevizan/Equipe de Arte ACI.

Com a criação dos reservatórios, essa água passa a dispor de um lugar para onde pode escorrer e se acumular, até que posteriormente possa ser bombeada para o seu curso natural, evitando transtornos de toda sorte.

Ao escoar, essa água traz em suspensão todo tipo de material, inclusive microplásticos. Quando a água é bombeada, parte desse material fica depositada no próprio reservatório, enquanto o remanescente vai junto para o curso d’água.  Atualmente a cidade possui 48 reservatórios e, segundo dados da Autoridade Municipal de Limpeza Urbana de São Paulo, entre 2013 e 2020, foram retirados uma média de 191 mil toneladas de resíduos a cada ano.

Fonte: Relevance of tyre wear particles to the total content of microplastics transported by runoff in a high-imperviousness and intense vehicle traffic urban area, Goehler et al.

O primeiro dos estudos examinou o material residual de um reservatório na cidade de Poá, na Grande São Paulo. O artigo mais recente, que foi publicado online em setembro na revista Environmental Pollution, analisou o conteúdo remanescente de um “piscinão” que fica no bairro de Jardim Arize, na zona leste da capital paulista, responsável por reduzir o fluxo do rio Aricanduva durante as chuvas pela drenagem de uma área de cerca de 37 km². Este último estudo foi parte do mestrado da engenheira Luiza Goehler, do programa de pós-graduação em Engenharia Civil e Ambiental e contou com a colaboração do professor Fabiano Tomazini da Conceição, do Instituto de Geociências e Ciências Exatas, ambos da Unesp, e da pesquisadora Lais Speranza, da associação portuguesa Oceano Verde.

Ao analisarem os microplásticos que estavam depositados no local, os pesquisadores se surpreenderam com a quantidade de partículas de pneus. Do total de 109.089 unidades/kg analisadas, com tamanhos que variaram entre 0,1 mm até 5 mm, 53% eram partes de pneus. Do restante, 30% foram classificados como fragmentos de plástico, 9% como fibras, 4% como  filme plástico e 4% como pellets, estes últimos provenientes sobretudo de produtos de higiene e de beleza.

No estudo feito em 2020, que analisou um reservatório em Poá, Moruzzi e seus colaboradores haviam encontrado um resultado bem menor, de 57.542 unidades/kg. Na ocasião, a maior parte do material era constituída de fragmentos (57%), seguida por pellets, ou pequenas partículas arredondadas de plástico (27%), fibras (9%) e filmes plásticos(6%).

“Nada parecido com esta proporção de fragmentos de pneus no conteúdo de microplásticos foi encontrado em estudos semelhantes feitos em outros países”, escreve o docente da Unesp no artigo sobre o reservatório do Jardim Arize.

A fragmentação dos pneus é causada pelo desgaste natural da borracha em contato com o asfalto. A água das chuvas que fazem a lavagem das áreas impermeáveis carrega as partículas, que, além dos reservatórios, podem ter como destino final os cursos d’água. Com base na quantidade de resíduos sólidos totais acumulados ao longo do ano, a pesquisa estimou que o reservatório estudado receba entre 43 kg e 205 kg de partículas de pneu por dia.  Do total, 79,1% se originam de carros, 15,74% de motos, 1,37% de caminhões e 2,99% de ônibus.

Uma das possíveis explicações para essa proporção tão grande de partículas está na alta densidade demográfica da região que ocupa a bacia do rio Aricanduva. Some-se a isso um tráfego intenso com uma média de circulação que varia entre 5.200 a 24.700 veículos por dia. Moruzzi explica que se trata ainda de um estudo inicial, e que um de seus resultados está em avançar na padronização dos cálculos para definir a quantidade de microplásticos em um dado reservatório considerando-se o comprimento das ruas que existem na região e a quantidade de área impermeável. Do total da área estudada, 26,6 km² – ou 73% – era impermeabilizados, com 640 km de arruamento.  “Uma conclusão importante é que, em áreas densamente povoadas, com grandes comprimentos de arruamento e altamente impermeabilizadas, é de se esperar que a contribuição desse material de pneu, em relação ao total de microplástico, seja bastante alta”, diz. 

Moruzzi também destaca que o estudo permite avaliar a quantidade de microplásticos depositada em ambiente urbano que as águas pluviais são capazes de carregar, lembrando que estas águas são uma das portas de entrada de contaminantes para o meio ambiente. Nesse caso específico, o “piscinão” está situado no meio do caminho entre a lavagem das ruas e o escoamento para os corpos d’água. Porém, uma vez que também retém uma boa quantidade desses poluentes, o professor crê que seria possível investigar o uso dos reservatórios para atuarem também como uma barreira contra a poluição, desde que isso não comprometesse sua função principal de atenuar as enchentes.

Poluição por microplástico pode ser mais intensa no Brasil

Estudos realizados em outros lugares no mundo encontraram valores bem diferentes. Pesquisadores da China encontraram um índice de 20 unidades/kg, e estudiosos da Nova Zelândia mediram 80 unidades/kg. Esses índices, segundo Moruzzi, devem variar de acordo com o espaço geográfico onde os estudos foram conduzidos e a finalidade do reservatório de água de onde procedia o material analisado. Porém, segundo as pesquisas citadas acima, reservatórios que recebem águas pluviais, assim como lagos e rios, tendem a reter mais microplástico.

Embora se trate de um problema mundial, a proporção que a contaminação pode tomar vai depender muito das ações locais.  “O microplástico é mais um contaminante introduzido pela ação do homem no meio ambiente. Países em que os resíduos sólidos são mal geridos e eventualmente vão parar nos córregos têm resultados piores. No Brasil, cerca de 50% da população sequer tem esgoto coletado, portanto o problema vai ser mais grave aqui”, diz o docente da Unesp.

Muitas dúvidas quanto a potenciais riscos para a saúde

Ano passado, as duas principais revistas científicas do planeta, Nature e Science, trouxeram artigos especiais em que compilavam parte do estado da arte da pesquisa sobre microplástico. Em comum, ambas destacaram a necessidade de mais investigações que possam esclarecer, afinal, quais podem ser os efeitos causados por esses materiais minúsculos sobre o ambiente e a saúde da flora, da fauna e do ser humano. Já existem, no entanto, argumentos teoricamente embasados para sugerir que pode haver motivos para preocupação.

Um desses argumentos, apresentado no artigo publicado em Nature, se inspira nos estudos sobre os efeitos do material particulado associado à poluição do ar que é produzida por fenômenos como queimadas e motores a combustão. Sabe-se que, nas dimensões de 10 micrômetros (P10) e 2,5 micrômetros (P2.5), esse material particulado é capaz de se depositar em vias aéreas e pulmões, cruzar a membrana celular e causar estresse oxidativo e inflamações, resultando em danos ao sistema respiratório e até câncer.  No entanto, para que o material particulado oriundo de combustão possa causar algum efeito danoso ao sistema respiratório humano, é  preciso que ele esteja presente no ar em concentrações muito superiores àquelas em que já foram detectados nanoplásticos.

Já no caso dos fragmentos de maiores dimensões, o dano poderia estar associado aos efeitos tóxicos de substâncias químicas que são aplicadas a eles a fim de lhes atribuir propriedades como coloração, estabilidade etc. Ao se desprenderem das partículas, estas substâncias poderiam penetrar em nosso organismo e causar danos, num efeito do tipo “cavalo de Troia”. Com efeito, sabe-se que algumas substâncias presentes em plásticos podem interferir em aspectos como o sistema endócrino humano. Porém, a possibilidade de que algum efeito seja gerado vai depender da velocidade com que as moléculas dessas substâncias se desprendem dos fragmentos, e da velocidade com que esses fragmentos viajam pelo nosso corpo. Os pesquisadores ainda sabem muito pouco sobre esses dois aspectos.

Adaptação: Equipe de arte – Reitoria | Original: https://sci-hub.se/https://www.science.org/doi/10.1126/science.abe5041 (página 673)

O artigo publicado em Science cita estudos em células humanas in vitro e em espécies aquáticas e roedores que apontam o deslocamento de microplástico – com dimensões inferiores a 10 micrômetros – da garganta para o sistema linfático e circulatório. Partículas menores podem inclusive atravessar a membrana das células, placentas e do cérebro, mas ainda há muitas lacunas para afirmar as consequências no que tange à absorção, distribuição, metabolismo e excreção. Porém, partindo desse paralelo com os efeitos já conhecidos da poluição do ar sobre o organismo humano – que incluem também efeitos cancerígenos já bem determinados – os autores do artigo na Science defendem que é necessário adotar certa urgência no investimento em pesquisas, a fim de cobrir o mais rápido possível as lacunas em nosso conhecimento atual.

Muitos pesquisadores da área entrevistados pela Nature julgam que, nos níveis atuais, as concentrações de microplásticos encontrados no ambiente não chegam a constituir uma ameaça à saúde humana. Porém, esse cenário pode se alterar, e brevemente. O holandês Albert Koelman, da Universidade de Wageningen, responsável por tentar estimar a massa de microplástico que pode ser ingerida através da dieta de crianças e adultos, cunhou a expressão ”plastic time bomb”, ou a bomba-relógio do plástico.  Ele identifica as estimativas que dizem que, até 2050, a produção anual de plástico, atualmente na casa das 400 milhões de toneladas, experimente um crescimento explosivo, que pode passar dos 100%.

Segundo este cenário, o total de microfragmentos despejados no ambiente poderá passar de estimados 188 milhões de toneladas em 2016 para 380 milhões de toneladas em 2040. Deste total, 10 milhões de toneladas estariam na forma de microplástico. “No momento, não estou preocupado com os riscos à saúde [causados por microplástico]”, diz Koelman. “Mas estou preocupado com o que poderá ocorrer no futuro se não fizermos nada para mudar essa trajetória”, acrescenta.

Este texto foi originalmente publicado pelo Jornal da Unesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.

Thaís Niero

Bióloga marinha formada pela Unesp e graduanda de gestão ambiental. Tentando consumir menos e melhor e agir para alcançar as mudanças que desejo ver na sociedade.

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