Por Guilherme Gama em Jornal da USP – O Cerrado brasileiro é a savana mais biodiversa do planeta, mas também o segundo bioma mais ameaçado. A principal ameaça é a expansão das atividades agropecuárias, que, além de substituir a cobertura original do solo, introduziu espécies invasoras, como as gramíneas exóticas, que foram inseridas no Brasil como forragem na agropecuária. Essas espécies tomaram os ecossistemas savânicos e campestres e, além de competir com as espécies nativas, elas produzem grande volume de biomassa que, em períodos de seca, se torna combustível, aumentando o risco e a proporção de incêndios.
O pesquisador Henrique Sverzut Freire de Andrade analisou o efeito da presença do gado bovino para o controle das gramíneas com o objetivo de restaurar a biodiversidade do bioma com viabilidade ecológica e financeira. O estudo foi realizado em seu mestrado pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, em Piracicaba. Os resultados mostram que o animal pode atuar como uma “biorroçadeira seletiva”, isto é, assim como a roçadeira, ele apara a cobertura vegetal, mas seleciona apenas as gramíneas invasoras, o que permite o desenvolvimento das nativas.
“Esta pesquisa abre novos horizontes sobre a restauração de Reservas Legais no Cerrado, pois demonstra a viabilidade financeira e ecológica de se utilizar o manejo do gado como ferramenta de recuperação de ecossistemas savânicos”, afirma Pedro Henrique Brancalion, docente e orientador da pesquisa.
Andrade adverte que o trabalho reflete apenas a realidade do Cerrado e não pode ser extrapolada a outros biomas. Outro ponto é que a pesquisa não pode ser usada de justificativa para se manter o gado em qualquer espaço e sem controle, com pejorativo de restauração. A presença descontrolada e demasiada dos animais pode trazer mais prejuízos, como a erosão do solo, diz o pesquisador ao Jornal da USP.
A pesquisa Manejo de gado bovino para a restauração do Cerrado teve orientação do professor Pedro Henrique Santin Brancalion e está disponível para consulta na Biblioteca de Teses e Dissertações da USP neste link.
O trabalho reflete apenas a realidade do Cerrado e não pode ser extrapolada a outros biomas. Outro ponto é que a pesquisa não pode ser usada de justificativa para se manter o gado em qualquer espaço e sem controle, com pejorativo de restauração. A presença descontrolada e demasiada dos animais pode trazer mais prejuízos, como a erosão do solo.
A invasão biológica de gramíneas ocorreu no Cerrado brasileiro com a introdução de espécies de gramíneas mais produtivas para forragem. Aqui, as espécies africanas são consideradas as mais agressivas, porque encontram um ambiente propício, pelas semelhanças ecológicas com seu habitat de origem. Porém, diferentemente das savanas africanas, onde habitam manadas de antílopes, búfalos, zebras, girafas e elefantes, o Cerrado tem poucos animais predadores da vegetação, o que facilitou ainda mais o domínio do capim-braquiária (Urochloa decumbens) e do capim-andropogon (Andropogon gayanus) no bioma, explica Andrade.
“Com a entrada das espécies invasoras, cria-se uma situação que não existe naturalmente. O alto crescimento de biomassa das espécies exóticas deixa a área à mercê de um incêndio de proporções desastrosas”
O pasto exótico ganha a competição com as espécies nativas, o que descaracteriza a vegetação do Cerrado: reduz sua biodiversidade e pode levar à extinção de gramíneas nativas. Andrade alerta que essa não é a única preocupação quanto à conservação do bioma brasileiro: “Com a entrada das espécies invasoras, cria-se uma situação que não existe naturalmente. O alto crescimento de biomassa das espécies exóticas deixa a área à mercê de um incêndio de proporções desastrosas”.
O capim-andropogon, por exemplo, pode chegar a 2 metros de altura e, em períodos de seca extrema, esse aporte de biomassa aérea se torna combustível de dimensões não conhecidas na região, até então. “Por mais que o Cerrado seja resistente ao fogo, a vegetação não é adaptada para a intensidade e frequência das queimadas nessas condições”, completa.
Entre as opções para o controle das gramíneas, estão o arranquio manual, as técnicas mecanizadas, o sombreamento, a queima, o corte raso e o uso de herbicidas químicos, como o glifosato. Mas, com base na observação empírica do manejo do solo e dos protocolos pecuários estabelecidos, Andrade apostou no uso do gado para acelerar a restauração natural do Cerrado – ao mesmo tempo em que proporciona renda para o produtor rural e reduz os custos envolvidos na restauração.
“Este estudo tem o diferencial de testar uma metodologia de restauração que é totalmente compatível com o a realidade da pecuária, que representa o uso dominante do solo no Brasil. Precisamos urgentemente de metodologias realistas e viáveis de restauração para atingir as metas ambiciosas de recuperação de ecossistemas nativos para o cumprimento da legislação ambiental, mitigação das mudanças climáticas e conservação da biodiversidade”, afirma Brancalion.
O experimento foi baseado em uma área controlada no Parque Sesc Serra Azul, município de Rosário do Oeste, em Mato Grosso, onde foram definidas quatro parcelas de tratamento: uma com a presença do gado bovino, outra apenas com tratamento químico com glifosato, uma parcela com ambos e outra sem nenhuma intervenção. As áreas foram estabelecidas com dois modelos de vegetação invasora: uma pastagem de capim-braquiária e outra de capim-andropogon. O experimento foi implantado em 2015 e analisado após cinco anos de monitoramento.
Em 2020, as parcelas cercadas, que não permitiram a entrada do gado, ainda apresentaram cobertura de 100% do solo com gramíneas exóticas – mesmo onde houve controle químico – e não havia presença de gramíneas nativas. Já nas parcelas onde foi permitida a livre circulação do gado, a espécie invasora sofreu uma redução de cobertura, e o recobrimento com gramíneas e ervas nativas foi maior.
“A camada de plantas apresentou-se com maior diversidade e abundância de regenerantes nativos na presença do gado. Sem os animais, a vegetação era muito menos diversificada”, afirma o autor do estudo. O pesquisador explica que os bovinos consomem a cobertura exótica, abrindo lacunas para o sucesso das nativas. Com o paladar mais adaptado às gramíneas africanas, os animais preferencialmente dispensam os regenerantes e podam as demais. “Em geral, com o gado, cria-se um cenário muito mais parecido com os ambientes naturais savânicos mato-grossenses, porque se reduz as espécies-tampão, que diminuem a diversidade”, completa Andrade.
Um ponto negativo da presença do gado na regeneração natural do solo foi quanto ao crescimento individual de árvores, na pastagem de capim-braquiária. “As árvores cresciam, porém em um ritmo menor”, afirma. Já para a pastagem de andropogon, o crescimento das árvores de maior porte foi similar tanto na presença como na ausência do gado.
Os dados apontam para um potencial econômico no uso do gado bovino na restauração das vegetações savânicas do Cerrado. O manejo de restauração com o gado e sem o controle químico foi o único rentável (R$ 2.374,68 por hectare, em cinco anos).
Um outro fator que não permite dizer que o gado seja o remédio para toda a doença do Cerrado é o histórico da área experimental. “A área foi desmatada em 1997, quando a vegetação foi removida para o plantio do capim para uso do solo como pastagem. Esse cenário é diferente de vastas extensões do Cerrado brasileiro, que já passaram por décadas de agricultura com maquinário pesado e defensivos agrícolas, por exemplo”, ressalta.
Henrique Andrade adianta que os próximos passos da pesquisa incluem avaliar o gado como técnica de manejo em áreas que foram afetadas por incêndios e buscar traçar uma metodologia prática para que os animais possam ser usados na região, de modo sustentável e que devolva a natureza do Cerrado.
Mais informações: e-mail henrique.sverzut.andrade@usp.br, com Henrique Sverzut Freire de Andrade
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