Pesquisadoras revelam os desafios das mulheres para fazer ciência

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No mundo todo, elas são maioria em sete áreas do conhecimento; na USP, são maioria na pós-graduação, mas a desigualdade de gênero permanece nas publicações e citações

ideia de produzir uma pesquisa hermética, inacessível para o público que a patrocina e desfruta de suas eventuais contribuições, foi uma realidade da ciência até o início da Era Moderna. Falando para si e seus pares, a “ciência pura” e “fora de qualquer intervenção do mundo social”, como apontou o sociólogo francês Pierre Bourdieu, expandiu seu circuito de comunicação com o surgimento das publicações científicas.

Apesar de ter ampliado a rede de contatos dos cientistas, a distribuição do capital científico nunca foi equânime entre os gêneros. Mesmo no Ocidente, as mulheres permaneceram excluídas do acesso à educação formal por muito tempo. Tempo suficiente para afetar a representatividade delas até os dias atuais.

Como meta para o desenvolvimento sustentável, a Assembleia Geral da ONU definiu o dia 11 de fevereiro como o Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, buscando incentivar o acesso e a participação feminina de forma igualitária. Mas ainda assim, apenas 30% das estudantes que ingressam na universidade escolhem carreiras relacionadas ao STEM – sigla em inglês para ciência, tecnologia, engenharia e matemática.

“Ser mulher implicou que eu tivesse uma profissionalização mais tardia. E como mulher e mãe, minhas experiências internacionais foram limitadas, tornando minha carreira uspiana e brasileira. Fui a segunda titular da história da Sociologia, muitos anos depois da primeira, que era a professora Eva Blay, uma militante feminista. E a pergunta que fica é: por que as mulheres não chegaram lá? Isso tem uma profunda relação com o gênero. A sociologia, como as carreiras, no geral, nas universidades, são masculinas. Quando aparece uma mulher dirigindo uma instituição dominantemente masculina, aquilo vira um exemplo de celebração. Mas é preciso ver quantas chegaram lá! Temos que ter consciência de que são exceção, não pode ser usado como um índice de ascensão feminina.” — Maria Arminda do Nascimento Arruda, socióloga, coordenadora do Escritório USP Mulheres.

Participação x representatividade

Um relatório da Elsevier intitulado “A jornada do pesquisador através de lentes de gênero” foi atualizado em novembro do ano passado pela empresa, que domina o cenário mundial das publicações científicas. O estudo examinou a participação em pesquisas, progressão na carreira e percepções em 26 áreas temáticas de toda a União Europeia e em 15 países, incluindo o Brasil.

De acordo com o levantamento, embora a participação das mulheres na pesquisa esteja aumentando em geral, a desigualdade permanece entre os países de origem e em áreas temáticas em termos de resultados de publicações, citações, bolsas concedidas e colaborações. Em todos os países, a porcentagem de mulheres que publicam internacionalmente é menor do que a de homens.

Em termos de citações – que apontam o quanto uma publicação é relevante para os pares – também há uma diferença de gênero sobre como são acumuladas: trabalhos de autoria de mulheres são citados com menos frequência do que de homens. Eles são mais bem representados entre os autores com uma longa história de publicação, enquanto as mulheres são altamente representadas entre os autores com uma curta história de publicação. Isso afeta o chamado “índice h” do pesquisador.

“Se um pesquisador publica muito, mas é pouco citado, ou se recebe muitas citações, mas publica um número limitado de artigos, terá um índice h baixo”, explica Elisabeth Dudziak, doutora em Engenharia de Produção e especialista em Ciência da Informação da Agência USP de Gestão da Informação Acadêmica (Aguia). A partir do relatório da Elsevier, a Aguia destaca as áreas temáticas em que as mulheres do Brasil são maioria.

Áreas da ciência em que as mulheres do Brasil são maioria

Área da ciência Mulheres (%) Homens (%)
Imunologia e Microbiologia 57.7% 42.3%
Enfermagem 73% 26.9%
Bioquímica 52.7% 47.2%
Medicina 52.7% 47.2%
Farmacologia 57.6% 42.3%
Odontologia 52.4% 47.5%
Neurociência 54.3% 45.6%
Fonte: Elsevier Gender Report Nov. 2020 p. 158

Medicina e Bioquímica mudam a rota das mulheres a partir de 2009, quando passam a ter mais primeiros artigos do que homens. No período de 2009 a 2013, as cientistas brasileiras publicaram até dez vezes mais o primeiro artigo de suas carreiras do que em anos anteriores. A área médica teve 11.911 primeiras publicações entre mulheres, contra 10.956 entre homens.

De acordo com o relatório, o maior aumento na proporção de mulheres entre os autores foi visto na enfermagem e na psicologia, e o menor foi nas ciências físicas.

“Um dos maiores desafios da pesquisa acadêmica, para mim, está na maternidade. A Luisa nasceu no final do meu doutorado e eu tive vontade de parar. Acho que um dos grandes incentivos para a participação da mulher na ciência é um meio familiar propício. Hoje em dia, eu também tenho buscado a participação de meninas no meu laboratório. Mais de 80% dos alunos que estão sob minha supervisão são meninas e mulheres.” — Ana Carolina Takakura estuda os processos de respiração em doenças neurodegenerativas.

Patentes

A análise de dados da Aguia sobre o estudo da Elsevier revela ainda o número médio de pedidos de patentes (direitos de propriedade sobre uma invenção) por mulheres e homens inventores e cessionários no Brasil.

A Agência USP de Inovação disponibiliza um banco de patentes para promover e divulgar tecnologias desenvolvidas na Universidade. A USP, assim como o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi), não faz separação por gênero dos inventores.

No entanto, entre as inventoras uspianas, a agência destaca a atuação da professora Maria dos Prazeres Barbalho Simonetti na criação da simocaína – um anestésico local com menos efeitos colaterais. A comercialização do produto é, hoje, a segunda maior receita em royalties (quantia paga pelo direito de uso de um produto) da USP.

Também destaca a atuação de Zilda de Castro Silveira, professora da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da USP, no protótipo de um dispositivo que utiliza papel descartado como matéria-prima para impressões 3D. As peças deverão ser utilizadas para fabricar material didático.

Elas na Ciência

A partir de dados indexados na base Scopus – um dos maiores bancos de dados de resumos e citações da literatura revisada por pares – a Agência USP de Gestão da Informação Acadêmica identificou os 500 autores USP com maior número de publicações entre 2015 e Janeiro de 2021. Os dados sobre a produção científica são obtidos por meio do número total acumulado de itens publicados no período.

Entre os 500 top autores 131 são mulheres

Marisilvia Donadelli é a mulher com o maior índice de produção acadêmica da lista, ficando atrás apenas do primeiro colocado da lista geral, Marco A. Lisboa Leite. Já a pesquisadora com maior número de citações, no período, é Isabela Judith Martins Benseñor, citada em um recorde de quase 37 mil publicações.

No ano de 2020, as cinco autoras mais citadas em artigos científicos foram das biológicas, na área da saúde

Em primeiro está Ludhmila Abrahão Hajjar, da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), com o artigo Efeito de doses altas versus baixas de difosfato de cloroquina como terapia adjuvante para pacientes hospitalizados com síndrome respiratória aguda grave Infecção por Coronavírus 2 (SARS-CoV-2): um ensaio clínico randomizado. A pesquisadora foi uma das duas uspianas premiadas na nona edição do prêmio Para Mulheres na Ciência, uma parceria da L’Oréal com a Unesco e a Academia Brasileira de Ciências (ABC).

De acordo com Elisabeth Dudziak, publicações de áreas como a medicina em geral recebem mais citações, se comparadas às Ciências Sociais e Humanidades, pela característica das próprias áreas.

De olho na pós-graduação

Na USP, há mais mulheres do que homens à frente da pesquisa científica – tanto na pós-graduação, quanto no pós-doutorado.

Elas ainda estão na graduação, mas já iniciaram sua participação no mundo científico. Pedrina e Gabriela são estudantes de engenharia na USP e desenvolvem pesquisas através de projetos de iniciação científica e tecnológica. As jovens sentem falta da presença de mais mulheres nos seus cursos, entretanto, ressaltam iniciativas na Universidade que buscam atrair mais meninas para a ciência, tecnologia, engenharia e matemática, além de um ambiente mais igualitário.

Pedrina Vitória Assis Correia

20 anos, 2º ano de Engenharia Civil na Escola Politécnica (Poli) da USP

A futura engenheira civil tem como linha de pesquisa a segurança viária na BR 116 – Rodovia Régis Bittencourt. A proposta é estudar formas de reduzir o número de mortes no trânsito da rodovia analisando as condições do pavimento em quatro trechos experimentais. O trabalho é orientado pela professora da Poli Cláudia A. Soares Machado.

Eu fiz o meu ensino médio no Instituto Federal de Alagoas, na cidade em que eu nasci, Palmeira dos Índios, e lá eu vi uma amiga e uma professora ganharem grande destaque e visibilidade com uma pesquisa que fizeram, e esse fato foi o meu primeiro grande incentivo.

Às vezes, fico em dúvida sobre qual carreira seguir por saber como a pesquisa é desvalorizada na sociedade brasileira. O número de mulheres que entram em carreiras de engenharia é cerca de 1/5 do número de homens. Sabendo disso, não consegui ficar tranquila com essa realidade, e assim que passei na Poli entrei no projeto social Elas pelas Exatas, que visa a trazer e manter mais mulheres nas carreiras de STEM.

“Contrariando as estatísticas, a minha trajetória na Poli, até hoje, tem sido, majoritariamente, ao lado de mulheres incríveis. Conheci meninas incríveis dentro e fora da Poli e dentro de casa, eu sempre tive todo o apoio da minha mãe para enfrentar qualquer dificuldade. Assim, eu acredito que criei uma rede de mulheres ao meu redor que não me deixa ter dúvidas em seguir na carreira de engenharia, apesar do machismo que ainda resiste.”

Gabriella Arbulu Cury

18 anos, 2º ano de Engenharia Mecatrônica na Escola Politécnica (Poli) da USP

Ela participa de um projeto de pesquisa que busca elaborar um robô hospitalar para ser utilizado no Hospital Universitário da USP, em São Paulo. O robô realizará o transporte de exames e o acompanhamento de pacientes entre locais do hospital, direcionando e mostrando o trajeto. O estudo é orientado pelo professor da Poli Leopoldo Rideki Yoshioka.

Apesar de já saber da predominância masculina na engenharia, fiquei chocada com a quantidade tão pequena de meninas na sala e corredores. Na Poli, só 17% das alunas são mulheres, e em Mecatrônica – curso que eu faço – essa porcentagem diminui para cerca de 10%. É muito legal ver que essa presença feminina na engenharia aumenta a cada ano e quebrando o estereótipo de exatas ser “coisa de homem”.

Apesar de já ter vivenciado algumas situações de machismo lá dentro, é um ambiente mais conscientizado do que eu imaginava. Essa conscientização é fruto, em grande parte, de iniciativas das minorias lá de dentro. Por exemplo, todos os centros acadêmicos possuem sua CCO (Comissão Contra Opressão), composta de mulheres e membros da comunidade LGBTQI+. Essas comissões buscam se posicionar contra atos de preconceito e possuem ouvidoria para denúncias.

“Já no projeto, apesar de eu ser a única mulher, só tive experiências boas. Nunca duvidaram da minha capacidade ou me privaram de tarefas. Mas sinto falta de mais garotas no projeto, adoraria ver mais pesquisadoras na faculdade!”

No ano passado, o governo federal mudou a regra de concessão de bolsas de iniciação científica, excluindo projetos de ciências humanas, sociais e artes. As novas regras afetam também projetos interdisciplinares. O Programa de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) do CNPq, órgão do MCTIC, contempla cerca de 25 mil bolsistas. De acordo com o portal Direto da Ciência, ao menos 7.625 dos contemplados em 2019 eram das humanas. A medida pode desestimular o ingresso de jovens na carreira acadêmica.

“Na educação de meninas, ainda há uma antiga ideia de que as meninas não servem para matemática ou filosofia. Basta ver a Filosofia da própria Universidade: são duas professoras entre quase 40 homens. Isso tem que mudar! Essa data é importante, porque marca um processo de educação. As humanas, por exemplo, são tratadas como dispensáveis mas os fenômenos que vemos hoje com a pandemia, apenas as ciências humanas e estudos interdisciplinares conseguiram explicar: as desigualdades sociais, o efeito da pandemia sobre o coletivo, formas de preconceito, a questão do gênero. Na biologia, os estudos entre os primatas observavam conflitos e disputas de território. Quando as mulheres começaram a entrar em massa, passou-se a observar cuidado com a cria, relações afetivas. A mulher cientista tem um enorme compromisso com o mundo, com a ruptura da desigualdade; este é um lugar a partir do qual ela pensa todas as outras desigualdades.” — Maria Arminda do Nascimento Arruda, socióloga, coordenadora do Escritório USP Mulheres.

A professora conta que as ações do Escritório USP Mulheres devem apoiar a construção de políticas, entre elas os impactos da pandemia para as mulheres, o protocolo de atendimento para casos de violência de gênero e a parceria com outras instituições ligadas à igualdade de gênero, dentro e fora das faculdades.

Elas na pandemia

Por trás dos dados de participação delas na ciência, há um cenário de disparidade de gênero na carreira acentuado pela pandemia. Um levantamento do Parent In Science mostrou que a pandemia de covid-19 afeta mais a produtividade acadêmica de mulheres negras (com ou sem filhos) e mulheres brancas com filhos (principalmente com idade até 12 anos).

Além de passarem mais tempo que os homens cuidando de tarefas domésticas e dos filhos, as mulheres dão rosto e voz à linha de frente do combate à covid-19.

As mulheres no cenário internacional

Akiko Iwasaki

Virologista, professora da escola de medicina de Yale e divulgadora científica. Publicou recentemente sobre maior taxa de mortalidade por covid-19 entre os homens (akiko.iwasaki@yale.edu). Mantém a página no twitter: twitter.com/virusesimmunity.

Kizzmekia Corbett

Virologista do Centro de Pesquisa de Vacinas (VRC) do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (NIAID), parte do National Institutes of Health (NIH). É líder científica para vacinas contra coronavírus e ajudou a desenvolver a vacina da Moderna. Mantém as páginas twitter.com/kizzyphd e www.instagram.com/kizzyphd.

Katalin Karikó

Bioquímica, vice-presidente sênior da BioNTech, que desenvolveu a vacina da Pfizer. Trabalha com o RNA mensageiro desde o início de sua carreira, na Hungria, há 40 anos, e nos anos 1990 recebeu inúmeras cartas de rejeição por insistir no método.*

* As vacinas da Pfizer e da Moderna utilizam a informação genética do vírus codificada em uma molécula de RNA – a cópia de um pequeno trecho do DNA que é enviado para fora do núcleo da célula. Ele carrega uma mensagem do DNA dando instruções para produção de determinadas proteínas. O estudo de Katalin Karikó, publicado em 2005, conseguiu visibilidade porque encontrou uma forma de estabilizar o RNA mensageiro, encapsulando-o em uma camada de gordura.



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