Transformar resíduos em recursos, substituir matérias-primas tóxicas por insumos saudáveis, migrar de processos impactantes para produção sustentável: estas são algumas das metas que norteiam as reflexões mais avançadas no campo da atividade agroindustrial. São também diretrizes do Projeto Temático “Agroindustrial wastes and their potential use as appropriate materials for housing and infraestructure (Agrowaste)”, coordenado pelo engenheiro Holmer Savastano Junior, professor titular da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos da Universidade de São Paulo (FZEA-USP), em Pirassununga, SP.
Fruto de um acordo de cooperação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) com a Agence Nationale de la Recherche (ANR), da França, o projeto reúne pesquisadores da USP e do Departamento de Química da Université des Antilles (UA), instalada no departamento ultramarino francês de Guadeloupe (Guadalupe), no Caribe.
“Desenvolvemos duas linhas de pesquisa: uma com compósitos de matriz inorgânica, explorando o acréscimo de cinzas de queima de biomassa e de fibras de biomassa em matriz de cimento Portland, para a produção de placas planas ou onduladas de fibrocimento; outra com compósitos de matriz orgânica, explorando a utilização de fibras e partículas de biomassa aglomeradas por resina vegetal, para a produção de placas destinadas à fabricação de embalagens, paletes e mobiliário”, disse Savastano à Agência Fapesp.
Na “linha inorgânica”, a solução pesquisada visa obter um produto alternativo ao cimento-amianto. E, na “linha orgânica”, o objetivo é buscar alternativa aos aglomerados baseados em resinas fenólicas. Ambas as matérias-primas – o amianto e as resinas fenólicas – são consideradas cancerígenas. Especialmente no caso da fibra de amianto, existe hoje uma tendência mundial à proibição, já acatada por 69 países, em atendimento a recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS). No Brasil, vários estados e municípios vetaram o uso, mas o processo de proibição em todo o território nacional se arrasta no Supremo Tribunal Federal (STF).
Proibidas em diversos países, mas ainda não no Brasil, as resinas fenólicas também estão, por assim dizer, com seus dias contados. E, neste caso, deve-se considerar, além da toxicidade do produto, também a insustentabilidade da produção, petróleo-dependente.
“O cimento-amianto foi utilizado durante décadas. E, ao longo desse período, a indústria se adaptou perfeitamente a ele. Parecia uma solução técnica imbatível, principalmente pelo baixo custo. Mas o impacto sobre a saúde exige agora a busca de outras fibras de reforço menos tóxicas. Nosso projeto já gerou resultados com potencial de transferência tecnológica para empresas. O fibrocimento pode se prestar à fabricação de telhas onduladas, placas planas para divisórias e outros componentes para a construção civil. O que fizemos não foi a simples substituição da fibra. Foram necessários e realizados vários ajustes ao processo produtivo, em parceria com empresas fabricantes de fibrocimento no Brasil. Por exemplo, em relação a métodos específicos de cura do cimento”, afirmou Savastano.
O estudo da tecnologia de cura do fibrocimento, conduzido pelo pesquisador, também é objeto de apoio da Fapesp por meio do Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (PITE).
Para produzir as placas de fibrocimento, foi empregada uma mistura de cimento, fibras plásticas e polpas vegetais. “Nossa perspectiva é utilizar cada vez mais cinzas de biomassa em substituição ao cimento Portland convencional e fibras vegetais em substituição às fibras plásticas”, sublinhou Savastano.
Isso configuraria um produto de terceira geração. A primeira geração foi constituída pelo cimento reforçado com fibras minerais. A segunda geração, já viável, é esta com cimento, fibras plásticas e polpas vegetais. A terceira, a ser alcançada passo a passo, com ajustes incrementais, é substituir progressivamente o cimento e as fibras plásticas por cinzas da queima de biomassa e fibras vegetais, tornando o material menos impactante e mais sustentável, de acordo com expectativas ambientais que começam a se disseminar na sociedade.
“Quanto mais vegetal, mais sustentável”, definiu Savastano. “Por isso, um próximo passo, como sequência do projeto atual que está em fase de encerramento, é exatamente fazer análises de sustentabilidade, calculando como o uso progressivo de fibras vegetais influiria em variáveis como consumo de energia na produção e durabilidade do produto final”.
Por enquanto, devido à disponibilidade comercial, as fibras vegetais utilizadas na pesquisa ainda são constituídas por polpa de celulose. “Mas, em um país como o Brasil, temos perfeitas condições de utilizar diversos vegetais fibrosos como fonte de polpa. Uma alternativa, importante no Estado de São Paulo, que é o maior produtor de cana-de-açúcar, poderia ser, por exemplo, o bagaço e a palha da cana, utilizável tanto como fonte de fibras quanto como fonte de cinzas. Se considerarmos o território nacional como um todo, há muitas outras alternativas de biomassas não madeireira: sisal, banana e bambu, para mencionar apenas alguns exemplos”, lembrou o pesquisador.
A substituição da polpa de celulose pelo bagaço de cana, por exemplo, atenderia à diretriz de transformar resíduo em recurso, contribuindo para a otimização do processo agroindustrial. “O que chamamos hoje de rejeitos não podem, de fato, receber essa definição. São matérias-primas mal aproveitadas. Um dos objetivos de nosso projeto é levar este tipo de consideração ao segmento empresarial”, comentou Savastano.
O fato de a ilha de Guadalupe localizar-se na zona tropical, como boa parte do território brasileiro, foi um importante fator para a sinergia das equipes de pesquisadores da USP e da Université des Antilles. A agricultura é o motor da economia de Guadalupe. E a cana-de-açúcar, seu principal produto agrícola, juntamente com a banana. A semelhança climática faz com que certas soluções construtivas, especialmente aquelas que se servem da biomassa, estejam incorporadas às culturas tradicionais de lá e daqui. Por outro lado, a complementaridade das aptidões possibilitou que a interação entre os dois grupos não se resumisse a mais do mesmo. “Eles são mais fortes em química, e nós, mais fortes em engenharia”, resumiu Savastano.
“Ainda estamos em uma curva de aprendizado”, ressalvou o pesquisador. “Por uma questão de escala, não conseguiríamos hoje disponibilizar para a indústria um material produzido exclusivamente a partir de rejeitos agrícolas. O volume da demanda industrial é muito maior do que seríamos capazes de atender. A menos que fosse para suprir as necessidades de uma indústria de pequeno porte. Por isso o emprego de soluções intermediárias, como a incorporação de fibras plásticas.”
Na “linha orgânica”, voltada para a produção de placas ou painéis de material aglomerado, os pesquisadores também dependem da compra da resina vegetal utilizada, constituída por óleo de mamona. “Estamos mais focados na biomassa. E há um bom motivo para isso, porque a biomassa compõe pelo menos 85% da massa do material, enquanto a resina compõe apenas 15%. Adquirimos uma resina que atende a todas as especificações técnicas. Mas ainda não dominamos sua produção. Para que nosso projeto tenha futuro, será preciso, na próxima etapa, agregar uma competência em relação a isso, mediante a associação com grupos que dominem essa tecnologia”, ponderou Savastano.
Recentemente, o grupo da USP foi procurado por pesquisadores da North Carolina A&T State University, da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, que estão utilizando dejetos da criação de suínos para produzir um aglomerante orgânico. E este é apenas um exemplo das muitas possibilidades a serem exploradas no tocante à resina.
No que se refere à biomassa agregada, os pesquisadores da USP já trabalharam com casca de coco verde, bagaço de cana, sisal e até sacos vazios de cimento, descartados após o uso. Esses materiais compõem a massa agregada pela resina. Uma utilização bem concreta poderá ocorrer na indústria moveleira, mediante o recobrimento das placas de material aglomerado com lâminas de madeira ou a aplicação de uma película impermeabilizante.
“O potencial desses painéis é muito grande. Eles poderão ser produzidos em múltiplas camadas, cada qual atendendo a uma demanda específica: mecânica, térmica, acústica, estética e assim por diante. E diferentes tipos de placas poderão ser concebidos para usos específicos: construção civil, movelaria, embalagens etc. Aqui, entra toda um aporte da engenharia, considerando fatores como resistência mecânica, impermeabilização e durabilidade. Dada a escala de produção, a adoção de materiais alternativos não é algo que se faça em um estalar de dedos. Qualquer ajuste no processo industrial tem que ser muito pesquisado para atingir consistência suficiente e confiabilidade por parte da indústria e dos usuários”, finalizou Savastano.
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