Por UERJ | Um grupo de biólogos foi surpreendido quando viajava de madrugada pela Bacia de Campos, entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo, ao avistar duas baleias jubarte adultas e um filhote seguindo bem de perto a embarcação. O comportamento inédito, que nunca havia sido testemunhado à noite, foi relatado recentemente pelos pesquisadores na rede ResearchGate. O episódio também foi tema de reportagem na revista Science e de um artigo científico para a Aquatic Mammals, com publicação prevista para novembro.
O fato ocorreu em julho de 2020. Os biólogos foram acordados pelo capitão do navio, que estranhou a companhia inusitada. Guilherme Maricato, doutorando do Programa de Pós-graduação em Ecologia e Evolução (PPGEE) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), conta que, inicialmente, achou que não havia novidade na presença das baleias, que ele já costumava monitorar. Mas em seguida percebeu que havia algo diferente.
“Relembrando agora, foi um pouco assustador. Nós estávamos dormindo e o pessoal começou a bater na porta para nos chamar. Eu já acordei procurando o colete, pensei que o navio estivesse afundando. Quando abrimos a porta, avisaram que baleias estavam seguindo o barco. De início, achamos que não fosse nada demais. Ainda não tínhamos noção do que estava acontecendo. Quando chegamos na cabine de comando, na parte mais alta, detectamos duas baleias jubarte navegando próximo à popa (parte posterior da embarcação). Começamos então a observar mais de perto e registrar aquele comportamento. Foi quando conseguimos identificar um filhote junto. Para a nossa surpresa, havia dois animais gigantes e um filhotinho no meio, e os três estavam seguindo a embarcação muito de perto e por uma longa distância”, relata Maricato.
Mais três biólogos estavam a bordo: Israel Maciel, pós-doutorando da Uerj; Ana Luiza Mello, mestranda da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ); e Rodrigo Tardin, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Na ocasião, o grupo prestava uma consultoria offshore em alto-mar para a Petroleum Geo-Services (PGS), avaliando os impactos de atividades sísmicas sobre os cetáceos na região.
Os pesquisadores acharam a conduta das baleias muito curiosa. Começaram a questionar os motivos daquele evento e se ele já havia ocorrido antes. “Pesquisamos bastante e confirmamos que realmente aquele era o primeiro registro mundial. Ninguém havia ainda documentado esse comportamento noturno em baleias. E, a partir de então, começamos a discutir o porquê disso”, relata o biólogo.
Na análise do evento, chegou-se a duas hipóteses que podem explicar o ocorrido: a primeira, que possui um viés mais conservador, considera que o deslocamento das baleias poderia ser explicado como forma de garantir economia de energia durante a migração. Outra hipótese leva em conta a capacidade de memória dos animais.
A orientadora de Maricato, Maria Alice Alves, do Departamento de Ecologia da Uerj, ressalta algumas peculiaridades da espécie. “A migração da baleia jubarte é absolutamente incrível. É o animal que mais migra no planeta em termos de distância e elas fazem essa locomoção praticamente sem se alimentar”, explica.
De acordo com a professora, durante o verão brasileiro, as jubartes ficam próximas à Antártica e, quando chega o inverno, migram para o norte, para a costa da América do Sul — justamente a rota realizada pelo trio de baleias no momento do registro. Por serem viagens de longas distâncias entre áreas de alimentação e áreas de reprodução, os animais costumam precisar de estratégias que os façam economizar o gasto energético.
No episódio registrado, essa necessidade fica mais evidente por se tratar de duas baleias adultas, uma delas fêmea em período de lactação, além de um filhote. A migração requer muita energia e esses fatores maternais acabam tornando a viagem mais difícil. “O filhote está muito mais exposto a ameaças, porque é um indivíduo menor e mais frágil. Ele precisa subir mais vezes para respirar, estando sempre na superfície, o que aumenta, por exemplo, o risco de colisão com embarcações”, relata Maria Alice.
Já Maricato explica a provável estratégia traçada pelas baleias a fim de fazerem um trajeto mais tranquilo. “A embarcação, quando navega, tem um fluxo, como se fosse um vácuo. A gente vê muito isso, por exemplo, nas corridas de Fórmula 1 e no ciclismo, quando os competidores vão pegando o vácuo um do outro. O barco estava exatamente a zero grau, indo para o norte. Então, é bem provável, até por conta do filhote no meio, que elas estivessem aproveitando esse vácuo para economizar energia”, esclarece o doutorando.
A segunda possibilidade aponta para uma questão de memória. Embora seja uma hipótese mais limitada do que a primeira, não deve ser desconsiderada, segundo os pesquisadores. Guilherme Maricato reconhece que não há como se apegar muito aos fatos, mas relembra que outros estudos levaram pesquisadores a perceberem que, durante o período de migração, os animais estavam evitando determinadas rotas onde havia muitas embarcações.
“Temos um trabalho com baleias azuis em que os autores notaram que, durante a migração, os animais evitaram certas áreas onde aconteciam muitas colisões de embarcações. De alguma forma, eles se comunicavam e percebiam a situação. As baleias tiveram uma memória do ano passado, ou até mesmo de cinco anos atrás, de que passar por ali representava perigo e então elas começaram a desviar dessa rota”, relata. Baseado nessa pesquisa e na capacidade das baleias azuis, o biólogo começou a questionar se esse comportamento também não poderia acontecer com as jubarte.
“Começamos a pensar se isso poderia ocorrer aqui também. É uma hipótese um pouco mais fraca, mas não menos curiosa. Pensando com mais cuidado, a gente estava passando pela bacia de Campos, entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo, um pouquinho mais para a área oceânica. Ali é uma região com muito movimento de embarcações e plataformas, a indústria do óleo e gás é muito forte naquela região. Será que, por um momento, a nossa embarcação, uma vez estando na rota das baleias, poderia protegê-las de outras embarcações sem que elas precisassem ir para outra rota?”, questiona Maricato.
A professora Maria Alice defende a importância de se investir também em outras perspectivas a respeito do percurso feito pelas baleias, para o avanço da ciência. “Essa é uma hipótese alternativa, porque a primeira tem mais sustentação com o que se tem até então. E, sendo algo completamente inédito, é mais fácil e melhor você ser conservador e junto tentar investigar uma segunda linha. É sempre bom na ciência você lançar outras hipóteses para abrir novas questões. Assim, a ciência caminha para não ser mais do mesmo, naquela acomodação de ideia única. Porque a natureza é muito complexa, ainda mais com animais desse tipo”, ressalta.
Estudos sobre animais marinhos exigem o emprego de algumas técnicas de monitoramento. Maricato explica que há duas grandes linhas bem estabelecidas nesse processo. A primeira, segue uma estratégia mais visual, em que são utilizados binóculos e câmeras para fazer o primeiro reconhecimento e registro do animal. Segundo Maricato, as baleias jubarte possuem uma característica diferencial pois apresentam um tipo de impressão digital, o que auxilia muito os pesquisadores.
“Essas baleias têm um padrão de mergulho específico. Dão três ou quatro borrifadas, que é essa expiração na superfície, e, quando vão dar a última, mergulham mais profundo e acabam colocando a cauda para fora. Na parte debaixo da cauda, há um padrão quase todo branco ou quase todo preto. Ao fotografar esse padrão, percebemos que ele é único; é o que a gente chama nessa espécie de foto-identificação. Com essa técnica, conseguimos mapear e saber onde essas baleias estão aparecendo, e em que épocas e em qual frequência”, explica.
Outra linha de monitoramento que vem crescendo bastante é o estudo da acústica dos oceanos. “A gente trabalha com microfones subaquáticos adaptados com gravadores. Com esse equipamento, é possível gravar e ouvir em tempo real para saber se tem algum indivíduo vocalizando e, se sim, quem está ali. Existem padrões específicos de voz que, dependendo da espécie, a gente consegue identificar. Existem, por exemplo, alguns dialetos entre populações de baleias que conseguimos detectar pelas curvas acústicas sinalizadas no espectograma”, explica Maricato.
Há ainda outros métodos utilizados no estudo desses animais, como a biópsia, técnica que retira um pedaço de pele com gordura do animal para observar fatores genéticos, hábitos de alimentação e possíveis contaminações, por exemplo. Drones subaquáticos são comumente utilizados para auxiliar uma visualização mais clara do comportamento e das dimensões do animal. E, em muitos casos, também são utilizados implantes geolocalizadores para auxiliar na captação de dados mais específicos.
A jubarte também é conhecida como baleia cantora. Maricato explica que a comunicação oral é importante para a espécie, inclusive na reprodução. “Essas baleias usam canções extremamente complexas como uma forma de seleção sexual. O macho ganha acesso à fêmea de acordo com o canto mais elaborado e os mais novos também vão aprendendo, para poder replicar aquele canto com suas adaptações particulares. Há toda uma divisão exata na canção, como se fossem as frases e as estrofes que formam aquele canto”, relata o pesquisador.
A professora Maria Alice também reforça a importância dessa comunicação. “Esse ritual de acasalamento e união de parceiros é uma questão vital. Os encontros entre os animais não são triviais. É preciso toda uma série de circunstâncias para encontrar parceiros adequados para poder reproduzir. Além, claro, da comunicação entre mãe e filhote, entre grupos durante uma migração. A sonoridade é um fator muito importante entre as baleias”, acrescenta.
Os pesquisadores alertam que o desconhecimento de fatos como esse podem acarretar sérias consequências para a espécie. Maricato alerta para o perigo que a poluição sonora gerada pelos navios traz à comunicação entre esses animais. “As baleias vocalizam em uma frequência baixa, que chamamos de sons graves, e é justamente o ruído que as grandes embarcações fazem. Chamamos isso de mascaramento acústico, ou seja, o ruído do navio possui a mesma frequência usada na comunicação entre os animais, e eles acabam não conseguindo se escutar direito e ficam desnorteados. Dependendo da intensidade de decibéis do som emitido, pode, inclusive, causar danos temporários ou permanentes no tímpano das baleias”, afirma Maricato.
A relação negativa entre o homem e as baleias é uma realidade a ser encarada com mais seriedade, segundo os pesquisadores. A poluição sonora é apenas uma das questões a serem observadas nesse cenário. Os biólogos alertam para outros problemas, como o aumento do fluxo de embarcações nos oceanos em áreas de migração, práticas de recreação e aproximação indevida de pessoas, fragmentos dos instrumentos de pesca nos mares, sem falar da poluição industrial. “O ser humano é o maior predador desses animais. Não tanto pela caça – isso reduziu bastante após a proibição. Mas os efeitos da poluição sonora, da poluição industrial e as questões dos instrumentos de pesca, como redes abandonadas que acabam ferindo os animais, ainda precisam ser observadas. Além disso, a pressão humana também vem pela recreação, porque as pessoas querem ver baleia e querem se aproximar muito, o que é um fator de risco em termos de colisões”, explica a professora Maria Alice.
Para a equipe de biólogos, um dos objetivos de estudar as duas hipóteses sobre o fenômeno observado é tentar entender o que está acontecendo e o que pode ser feito a respeito. “A contribuição deste trabalho é mais no sentido de abrir os olhos para o fato de as baleias estarem sob ameaça”, afirma Maricato.
A expectativa é poder levar o estudo adiante, em busca de novas respostas e técnicas de abordagem que expliquem e mapeiem a periodicidade desse comportamento, alargando os conhecimentos. “Temos que buscar novas abordagens e procurar saber se isso ocorre mais frequentemente do que a gente está detectando. Foi um acaso estar lá. De uma maneira geral, somos diurnos. Pode ser que isso esteja acontecendo de um modo mais frequente nesse ambiente de maiores mudanças provocada pela pressão humana? Não sei. É uma questão em aberto que precisa ser investigada também. Temos que começar a ter um olhar para análises noturnas. A questão da ciência é isso: tentar buscar respostas para algo interessante que é visto na natureza e que não era conhecido antes”, finaliza a professora Maria Alice.
Este texto foi originalmente publicado pela UERJ de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
Utilizamos cookies para oferecer uma melhor experiência de navegação. Ao navegar pelo site você concorda com o uso dos mesmos.
Saiba mais