Os Estados Unidos e a antiga União Soviética conduziram, entre 1945 e 1963, centenas de testes nucleares em terra, ar e mar, para testar e ampliar o seu arsenal nuclear. Os elementos radioativos forjados nas explosões, ao serem ejetados à estratosfera, depositaram-se em toda a superfície. Em 1963, as duas superpotências assinaram um tratado banindo os testes nucleares de superfície, mantendo apenas aqueles subterrâneos, que confinariam a radiação no subsolo.
Mas se o banimento dos testes feitos durante a Guerra Fria eliminou a possibilidade de futuras contaminações, não havia como eliminar os efeitos dos testes nucleares realizados até o momento da assinatura do tratado. Seus elementos radioativos permanecem.
Ao longo de mais de uma década, pesquisadores do Instituto de Oceanografia da Universidade de São Paulo (IO-USP), em conjunto com colegas do Pará, Pernambuco, Paraná e Uruguai, coletaram em diferentes sistemas estuarinos amostras de sedimentos. Um dos autores da pesquisa no IO-USP foi Rubens Cesar Lopes Figueira, que contou com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) desde o início – em quatro projetos, com início em 2007, 2009, 2011 e 2014.
Foram feitas coletas na bacia do rio Caeté (Pará), na foz do rio Capibaribe (Pernambuco), no estuário de Caravelas (Bahia), nos sistemas Santos-São Vicente e Cananeia-Iguape (São Paulo), na bacia do Paranaguá (Paraná) e no estuário do rio da Prata (Uruguai).
Ao estudar a composição das amostras, os cientistas detectaram um dado comum: radionuclídeos (traços) do elemento químico césio, na forma do isótopo radioativo césio-137. Radionuclídeos são elementos que emitem vários tipos de partículas e que eventualmente se tornam estáveis.
Usado em radioterapias, o césio-137 é o mesmo do maior acidente radioativo ocorrido no Brasil, em 1987, em Goiânia. Mas a única fonte desse radionuclídeo artificial no Atlântico Sul até a década de 1960 resulta dos testes norte-americanos e soviéticos, destacam os autores em artigo publicado na revista Anthropocene.
Segundo os pesquisadores, a presença de radionuclídeos em matrizes ambientais é uma ferramenta importante para estudos oceanográficos, uma vez que esses elementos químicos registram processos em escalas espaciais e temporais de acordo com seus níveis e distribuição nos sedimentos.
“No caso do césio-137 dos estuários, foram coletadas mais de 30 amostras de coluna de lama na forma de cilindros com um a dois metros de comprimento, que chamamos de testemunhos”, disse Figueira.
Os testemunhos foram divididos em fatias com cerca de 2 centímetros, de acordo com o momento em que cada camada de sedimento foi depositada, as mais novas no topo. Com isso, foi possível estabelecer uma escala de tempo e saber em quais proporções o césio-137 – forjado nas explosões termonucleares americanas e soviéticas, alçado à estratosfera e transportado pelas correntes de ar – foi depositado no litoral sul-americano.
Os pesquisadores também conseguiram identificar com precisão nas amostras de lama coletadas o momento em que o césio-137 foi depositado no hemisfério Sul. Suas quantidades começam a ser perceptíveis a partir de 1954, com o início dos testes das bombas termonucleares de hidrogênio, milhares de vezes mais potentes que as bombas atômicas que destruíram Hiroshima e Nagasaki.
“As proporções de césio-137 se acentuaram ano a ano de 1954 até 1963, quando atingiram o pico. Em seguida, devido ao banimento dos testes, declinaram subitamente”, disse Figueira.
Segundo outro autor do estudo, o doutorando Paulo Alves de Lima Ferreira, colaborador do Laboratório de Química Inorgânica Marinha do IO-USP, embora o césio das explosões tenha sido detectado em todas as amostras, ainda assim o foi em quantidades muito menos significativas do que aquelas detectadas em testemunhos no hemisfério Norte, onde os testes nucleares foram realizados.
“A descoberta desse novo marcador ambiental de césio-137 é um exemplo do trabalho que desenvolvemos. Nosso trabalho consiste em achar marcadores químicos dos mais diversos tipos para estudar os efeitos da era industrial, ou seja, os últimos 250 anos”, disse.
Para estudar esses efeitos está a importância da detecção feita pelos pesquisadores: a possibilidade de o isótopo radioativo ser utilizado como marcador na geologia do Atlântico Sul.
Esse marcador, chamado de modelo estratigráfico, poderá validar a passagem do Holoceno ao Antropoceno – termo cunhado em 2000 pelo químico holandês Paul Cruitzen, ganhador do Nobel de Química, para definir a época geológica atual, dominada pelo homem, e que, segundo Cruitzen, seria fundamentalmente diferente de todas as anteriores.
Desde então, pesquisadores têm discutido o ideia e a Comissão Internacional de Estratigrafia (ICS), organismo responsável pela padronização da geocronologia mundial, passou a procurar marcadores que possam definir na geologia o momento em que teria se iniciado o Antropoceno.
Descobrir o momento é uma condição necessária para que a ICS possa um dia proclamar o término do Holoceno, a época atual, iniciada há 11.700 mil anos com o fim da mais recente Idade do Gelo, e inaugurar oficialmente o Antropoceno.
O artigo Using a cesium-137 (137Cs) sedimentary fallout record in the South Atlantic Ocean as a supporting tool for defining the Anthropocene (doi: http://dx.doi.org/doi:10.1016/j.ancene.2016.06.002), de Paulo Alves de Lima Ferreira, Rubens Cesar Lopes Figueira e outros, pode ser lido aqui.
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