Por Ana Paula Orlandi em Pesquisa Fapesp | Em 2009, a menina Luciane, sobrinha do antropólogo João Paulo Lima Barreto, da etnia Tukano, foi picada por uma cobra venenosa na comunidade onde vive, no interior do Amazonas. A princípio, a dor e o inchaço no pé da criança, então com 12 anos, foram controlados por meio de práticas medicinais indígenas, como o uso de plantas. Por sugestão do agente indígena da saúde local, ela foi levada para um posto de saúde em Pari-Cachoeira, no município de São Gabriel da Cachoeira, para continuar o tratamento. “Lá, ela foi atendida por uma enfermeira que estava no período menstrual, como minha família soube posteriormente, ao indagar a equipe médica. Em nossa cultura, uma pessoa que sofreu picada de cobra venenosa não pode ter contato algum com mulheres menstruadas”, recorda Barreto. “Isso fez piorar o quadro de saúde de Luciane.”
A menina foi transferida para um hospital em Manaus, onde a equipe médica sugeriu a amputação de seu pé esquerdo. A família se posicionou contra. “Meu pai e dois tios garantiram que não era necessária a amputação. Bastava fazer o tratamento com práticas indígenas aliadas à medicina alopática. Mas nossa proposta foi rejeitada pelos médicos daquele hospital”, conta Barreto. Com apoio do Ministério Público Federal, a menina foi levada para outra unidade de saúde e passou a ser atendida por uma equipe médica que aceitou trabalhar em conjunto com os especialistas indígenas. “O tratamento deu certo. Hoje Luciane está bem, embora tenha ficado com leves sequelas, como a diminuição dos movimentos do pé”, relata o pesquisador.
O episódio inspirou Barreto a investigar o tema em seu doutorado na área de antropologia que resultou na tese “Kumuã na kahtiroti-ukuse: Uma ‘teoria’ sobre o corpo e o conhecimento prático dos especialistas indígenas do alto rio Negro”, defendida em 2021, na Universidade Federal do Amazonas (Ufam). No estudo, Barreto postula a revisão de conceitos usualmente adotados nos campos da saúde coletiva e da antropologia. Além disso, propõe o uso de categorias e termos em língua indígena. No ano passado, o trabalho foi escolhido como a melhor tese de arqueologia e antropologia pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e tornou-se livro, lançado pelo Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB).
Um dos termos costumeiramente usados de modo genérico é “pajé”, segundo o antropólogo. “O pajé costuma ser imaginado como um velhinho que tem poder de transitar entre o universo dos deuses ou dos mortos, que conversa com os animais, plantas ou minerais para adquirir poderes sobrenaturais. É um imaginário muito exotizante que a mídia, os livros didáticos e a própria ciência difundem na sociedade não indígena”, escreveu, em artigo de 2017. De acordo com Barreto, a palavra, mesmo que em língua tupi-guarani, não consegue traduzir a diversidade de funções dos especialistas indígenas da saúde. “No caso tukano, eles são três: yai, kumu e baya”, diz a Pesquisa FAPESP. “Todos dividem a mesma base de formação, mas cada um tem sua especialidade de cura. Em linhas gerais, yai é o responsável pelos diagnósticos, enquanto o kumu realiza os tratamentos. O baya, além de mestre de festas e danças, é também kumu.” Além disso, segundo Barreto, é preciso decolonizar a tradução do termo pelo viés da religião. “Categorias ou conceitos como sagrado, fé, espíritos, rezador, benzedor, bem e mal são importados de um modelo teológico cristão e colonizador. As práticas de cuidado com a saúde e cura dos povos indígenas não estão no campo da religião, da teologia. Os kumuã, plural de kumu, portanto, não são religiosos.”
O pai do pesquisador, Ovídio Lemos Barreto, e dois de seus tios paternos, Manoel Lima e Durvalino Moura Fernandes, são kumuã e coorientaram a tese com o antropólogo Gilton Mendes dos Santos, da Ufam. “Os kumuã são reconhecidos detentores de conhecimentos indígenas no alto rio Negro. Barreto, Fernandes e Lima foram imprescindíveis para a pesquisa de João Paulo, para suas inquietações, descobertas e formulações”, explica o orientador. Segundo Santos, a inclusão deles como coorientadores foi exclusivamente decisão do doutorando e dele, e não foi submetida a nenhuma instância formal do programa ou da universidade, que, “lamentavelmente, como em outras, não admite lugar a esses sujeitos e seus saberes em suas estruturas institucionais acadêmicas”.
Outro conceito abordado por Barreto no trabalho é bahsese – “um recurso terapêutico e de comunicação com os waimahsã. Segundo nossa cosmologia, na origem do mundo um grupo de waimahsã foi escolhido para se transformar em humano, enquanto os demais, preteridos, passaram a habitar a água, a terra e o ar. Até hoje costumam se vingar por terem sido excluídos e trazem doenças aos humanos”, conta Barreto, que é também um dos fundadores do Centro de Medicina Indígena Bahserikowi, em Manaus, onde realizou a pesquisa etnográfica. “No meu entender, a palavra ‘benzimento’, com seu viés cristão, não dá conta de expressar o sentido epistemológico do termo como é compreendido pelos Tukano.”
Barreto utiliza o termo “medicina indígena” no lugar de expressões como “saberes ancestrais” e “conhecimento tradicional”. “Esses rótulos precisam ser questionados, porque passam a ideia de que os indígenas têm uma forma de conhecimento menos legítima, inferior, por não ser científica. O trabalho de João Paulo mostra que são outras formas de conhecimento e devem ser respeitadas como tal”, observa o antropólogo João Pacheco de Oliveira, professor da Ufam e do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Pesquisadores indígenas têm grande dificuldade para publicar trabalhos e participar de eventos de saúde coletiva, diz Machado
A médica sanitarista Sofia Mendonça concorda. “É possível falar, sim, em medicinas indígenas e no plural, pois se constituem como sistemas sofisticados com práticas de prevenção e de cura que variam muito entre as etnias. A terminologia também costuma mudar e a palavra ‘pajé’, por exemplo, pode fazer sentido e ser utilizada por alguns grupos indígenas, como aqueles do Xingu”, diz Mendonça, coordenadora do Projeto Xingu, programa de extensão universitária da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Porém, independentemente de rótulos, o importante é valorizar esse conhecimento, que pode, inclusive, ampliar nosso olhar sobre o processo de adoecimento.”
“Não é possível dizer que a biomedicina é melhor do que a medicina indígena e vice-versa, porque ambas têm limitações. O ideal é que sejam feitas de forma integrada”, acrescenta o oftalmologista Rubens Belfort Junior, professor titular da Unifesp. Ele lembra que essa concepção norteou a criação do Projeto Xingu, em 1965, idealizado por Roberto Geraldo Baruzzi (1929-2016), da mesma universidade, e pelo sertanista Orlando Villas-Boas (1914-2002), então diretor do Parque Indígena do Xingu, localizado no Centro-Oeste brasileiro. “Assim, o médico que pratica a medicina ocidental e o especialista em medicina indígena aprendem um com o outro”, diz Belfort Junior, que ingressou no Projeto Xingu nos anos 1970 e desde a década de 1980 realiza projetos de saúde ocular na região Norte do país, que contemplam indígenas e outras populações locais.
A discussão não é nova. De acordo com Oliveira, o antropólogo, médico e radialista Edgard Roquette-Pinto (1884-1954) escreveu em “O exercício da medicina entre os indígenas da América”, título de seu trabalho de conclusão de curso em 1906 na então Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (hoje unidade da UFRJ), que as sociedades indígenas produziam conhecimento sobre doenças e esse conhecimento deveria ser objeto de investigação e de incorporação à sociedade não indígena. “Ele registra, inclusive, que existiam técnicas para lidar com doenças psicológicas, isso em um momento em que a psicanálise fazia seus primeiros voos no mundo”, conta Oliveira, um dos pioneiros em estudos pós-coloniais no Brasil.
“Infelizmente há ainda grande resistência por parte dos profissionais da saúde em incorporar esses conhecimentos indígenas tanto na prática quanto na academia”, afirma o médico Douglas Rodrigues, coordenador do Ambulatório do Índio, vinculado à Unifesp. “É difícil, por exemplo, quebrar essa visão etnocêntrica que menospreza outros conhecimentos, como o indígena. Mas vale lembrar que se o médico que pratica a medicina ocidental cursa, em geral, seis anos de graduação e quatro de residência, a formação de um pajé do alto Xingu pode levar até duas décadas”, informa. Segundo Rodrigues, nos últimos 20 anos a discussão sobre o encontro de diferentes tradições médicas vem avançando no campo da antropologia por meio de conceitos como “intermedicalidade”, desenvolvido nos anos 1990 pelo antropólogo norte-americano Shane Greene. Para Greene, essa integração costuma resultar em uma forma de domínio da biomedicina sobre a medicina indígena. “A biomedicina e outras áreas da saúde precisam debater mais esse assunto”, observa.
“Desde os tempos coloniais, as práticas de cura não europeias eram atreladas à feitiçaria e à magia identificadas no dia a dia da população local e sobressaiam-se como próprias das culturas indígenas e africanas”, escreve a historiadora Diádiney Helena de Almeida, da etnia Pataxó, em um dos capítulos da coletânea Vozes indígenas na produção do conhecimento: Para um diálogo com a saúde coletiva (Hucitec, 2022). “No século XIX, os médicos não reconheciam a relevância e a existência de sistemas e práticas que, fora do âmbito científico da medicina, pudessem ser consideradas viáveis e eficientes no tratamento das doenças. Mas tal descrédito sempre esteve no âmbito da retórica, pois na prática eram observadores e experimentadores das práticas de curas socialmente reconhecidas, principalmente no que diz respeito ao uso das ervas.”
A publicação é fruto de parceria entre a Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP-Fiocruz) e um grupo de pesquisadores indígenas de diversas regiões do país. “Apesar de ter crescido o número de estudantes indígenas no ensino superior brasileiro a partir do início do século XXI, esses pesquisadores ainda têm grande dificuldade para publicar seus trabalhos e participar de eventos no âmbito da saúde coletiva”, constata o sociólogo Felipe Rangel de Souza Machado, investigador da escola e um dos organizadores da iniciativa. “Além do preconceito, alguns deles enfrentam questões decorrentes do fato de ter a língua portuguesa como segundo idioma e a falta de referenciais bibliográficos indígenas.”
O corpo editorial da publicação é composto por pesquisadores indígenas, a exemplo do próprio Barreto. Além disso, todos os 21 artigos têm como primeiro autor pesquisadores de etnias espalhadas pelo Brasil. “Há discussões sobre educação e território, por exemplo, já que a saúde é um conceito muito amplo dentro da perspectiva indígena. Trata-se de uma medicina em que o bem-estar humano está intrinsecamente ligado ao território e ao respeito ao meio ambiente”, relata Machado.
“Os povos indígenas estão mobilizados pelo direito a uma saúde que respeite suas especificidades culturais”, constata Almeida, doutora em história das ciências e da saúde pela Fiocruz e professora da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), na Bahia. Exemplo disso, segundo a estudiosa, é Hitupmâ’ax: Curar, produzido por estudantes da etnia Maxacali do curso de Formação Intercultural de Educadores Indígenas da Universidade Federal de Minas Gerais (Fiei-UFMG). “É um livro escrito para servir de manual aos profissionais da saúde que são enviados para aquele território. Entre outras coisas, os Maxacali denunciam as trocas constantes de equipe médica, o que acaba prejudicando o atendimento”, conta Almeida sobre a publicação lançada em 2008, pela UFMG e Núcleo Literaterras, da Faculdade de Letras daquela instituição. “São ideias que trazem uma experiência intercultural extremamente rica e que deveriam se tornar leitura obrigatória em cursos de formação de profissionais da saúde de forma geral”, finaliza a historiadora.
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