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Os resultados servirão de base para o desenvolvimento de novos testes de diagnóstico molecular para detecção da neurotoxina, já relatada em lagos e rios brasileiros e no exterior

Por Ivanir Ferreira, do Jornal da USP | Pesquisadores da USP e da Universidade da Califórnia, em San Diego, nos Estados Unidos, sequenciaram o genoma da guanitoxina, uma das mais letais neurotoxinas de água doce, produzida por cianobactérias. Ela já foi relatada em corpos d’água de países da América do Norte e do Sul, incluindo Brasil, da Europa e Ásia, a partir de amostras de cianobactérias prejudiciais (HABs) encontradas em florações de algas (que crescem desordenadamente) em ambientes aquáticos. Embora as agências de saúde monitorem a maioria das toxinas em águas para consumo humano, a guanitoxina não é detectada pelos atuais métodos analíticos e moleculares. Os resultados servirão de base para o desenvolvimento de novos testes de diagnóstico molecular mais precisos que consigam detectar a presença dela em água doce.

“Em contato com a pele ou ingestão de água contaminada, pessoas ou animais podem desenvolver desde sintomas leves como salivação excessiva, lacrimejamento e espasmos musculares até problemas mais graves, como comprometimento neurológico e insuficiência respiratória e, alguns casos, podem levar à morte”, relata ao Jornal da USP o professor Ernani Pinto, docente do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena), do campus da USP em Piracicaba.

Ernani é um dos pioneiros na identificação da toxina em cepas encontradas no Nordeste e Sul do Brasil. “A guanitoxina é um organofosforado natural [composto orgânico] de alta toxicidade e tem o mecanismo de ação semelhante aos inseticidas sintéticos agropecuários, o Paration, por exemplo, ou a uma arma química, como o Sarin, que foi utilizado em um atentado no metrô de Tóquio, no Japão, nos anos 1990”, diz.

“A biossíntese, o conhecimento das funções e dos papéis de cada gene da guanitoxina, irá permitir o desenvolvimento de ferramentas mais precisas para monitoramento de cianobactérias em água doce que, até o momento, em nenhum lugar, é realizada ambientalmente”, alerta a microbiologista Marli Fiore

O professor explica que toxinas de cianobactérias de diferentes classes foram encontradas em amostras de águas de várias regiões que sofreram eventos de florações de algas tóxicas no passado. Ele lembra do que ocorreu em Caruaru, Pernambuco, em 1996, quando 64 pacientes em hemodiálise de um hospital da região foram a óbito depois de serem contaminados por microcistinas, uma outra classe de toxinas produzidas por cianobactérias, que, provavelmente, estavam na água que foi utilizada durante o processo de hemodiálise.

Na época, Caruaru enfrentava um racionamento severo de água e os açudes apresentavam ambiente propício para a multiplicação de algas (alta luminosidade, calor e elevada concentração de nutrientes), o que deve ter favorecido a produção de cianotoxinas. “Depois desse lamentável episódio que teve repercussão mundial, a legislação de potabilidade de água para consumo humano brasileira e de outros países passou a ser mais rigorosa, com o estabelecimento de limite máximo permitido para microcistinas e recomendado que se monitorasse também a guanitoxina, que, até aquele momento, se sabia da existência, porém não havia o conhecimento de seu mecanismo de ação”, diz. 

A legislação atual vigente é a portaria do Ministério da Saúde GM/MS Nº 888 que dispõe de procedimentos de controle e de vigilância da qualidade da água para consumo humano e seu padrão de potabilidade. “Para que haja um controle preciso da potabilidade da água, é necessária a compreensão mais profunda da gênese das cianotoxinas, em especial da guanitoxina”, explica ao Jornal da USP a microbiologista Marli F. Fiore, orientadora da pesquisa no Brasil e também professora do Cena. 

“A biossíntese, o conhecimento das funções e dos papéis de cada gene da guanitoxina, irá permitir o desenvolvimento de ferramentas mais precisas para monitoramento de cianobactérias em água doce que, até o momento, em nenhum lugar, é realizada ambientalmente”, alerta.

Novos testes mais confiáveis

Segundo a pesquisadora, ainda não existe padrão analítico disponível no mercado que consiga detectar a toxina na água por sua instabilidade química e pelo fato dela se degradar facilmente depois que é retirada do meio em que se desenvolveu. Marli diz que há uma empresa australiana interessada em patentear a descoberta para desenvolver novos testes moleculares usando a sequência genética das enzimas de biossíntese da guanitoxina.

As novas descobertas foram descritas no artigo Biosynthesis of Guanitoxin Enables Global Environmental Detection in Freshwater Cyanobacteria, publicado no Journal of the American Chemical Society, em maio de 2022. A primeira autora do artigo é Stella Lima, ex-aluna de doutorado da USP, orientada por Marli Fiore. O mapeamento foi realizado na Scripps Institution of Oceanography, da Universidade da Califórnia, em San Diego, envolvendo pesquisadores da própria instituição, da USP e da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz. A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) é uma das instituições que financiaram o trabalho.

“A guanitoxina está sendo produzida ativamente em florações tóxicas de cianobactérias ao redor de todo o mundo nos últimos anos, no entanto, nenhuma agência ou órgão responsável tem em mãos as ferramentas corretas para detecção. O trabalho aponta principalmente para a importância de desenvolver métodos de monitoramento precisos e específicos para melhor informar e proteger o público desta potente neurotoxina”, alerta Stella Lima.

Descobertas brasileiras

Em 2014, a então aluna de mestrado da professora Marli, Stella Lima, iniciou as investigações genômicas da guanitoxina, uma vez que, até aquele momento, se sabia apenas de sua existência, porém, não se conhecia a biossíntese dela ou como ela era sintetizada dentro da cianobactéria. Mesmo depois de muito trabalho e levantamentos, o mestrado finalizou e não foi possível encontrar no genoma a região responsável pela síntese.

Somente no doutorado, iniciado em 2016, e após intensas pesquisas no Laboratório de Biologia Celular e Molecular coordenado pela professora Marli, elas finalmente encontraram a região no genoma onde era produzida a toxina, a partir de uma cepa isolada do reservatório Tapacurá, em Pernambuco.

 “Utilizando outros genes biossintéticos, relacionados à biossíntese de um antibiótico produzido por Streptomyces (grupo especial de bactérias) como referência de busca, foi possível localizar três genes envolvidos na biossíntese de guanitoxina que eram responsáveis pela montagem do esqueleto químico de um dos intermediários mais importantes da toxina: a enduracididina, um aminoácido. A partir daí, foi possível mapear e explorar os genes ao redor, identificando todas as peças necessárias para montar o quebra-cabeça da síntese desta neurotoxina”, explica Stella.

Mapeamento validado no exterior

Entre os anos de 2018 e 2019, ainda no doutorado e com bolsa da Fapesp, Stella realizou seu estágio de pesquisa no exterior e, em parceria com pesquisadores do Scripps Institution of Oceanography, da Universidade da Califórnia, em San Diego, confirmaram e validaram in vitro e in vivo a descoberta brasileira, ou seja, o agrupamento de genes proposto que codifica enzimas capazes de realizar a biossíntese da guanitoxina através de nove etapas de modificações enzimáticas, que ocorrem a partir de um único aminoácido, a arginina, explica Stella.

Testes ambientais

Após validar as enzimas biossintéticas da guanitoxina, os pesquisadores usaram os genes envolvidos na biossíntese como guia para buscar a presença dela em amostras ambientais de alguns lagos e rios dos Estados Unidos (Lago Erie, em Ohio; Lago Mendota, em Wisconsin; Rio Columbia, em Oregon) e também do Rio Amazonas, Brasil. Além de confirmar a presença de guanitoxina nesses reservatórios, também foi constatada a ocorrência de eventos tóxicos com a superpopulação de algas em diferentes anos nessas regiões.

Segundo Stella, “o trabalho mostrou que a guanitoxina está sendo produzida ativamente em florações tóxicas de cianobactérias ao redor de todo o mundo nos últimos anos, no entanto, nenhuma agência ou órgão responsável tem em mãos as ferramentas corretas para detecção”, alerta a pesquisadora. “O trabalho aponta principalmente para a importância de desenvolver métodos de monitoramento precisos e específicos para melhor informar e proteger o público desta potente neurotoxina”, conclui.

Atualmente, Stella Lima segue suas investigações como pesquisadora contratada na University of North Carolina at Greensboro, nos Estados Unidos. “Desejamos sucesso para a Stella nessa nova jornada. Infelizmente não conseguimos financiamento brasileiro para mantê-la em nossos quadros”, lamentam seus orientadores, Marli Fiore e Ernani Pinto.

Mais informações: e-mails ernani@usp.br, com o professor Ernani Pinto, fiore@cena.usp.br, com a professora Marli Fiore, ou sdelimacamargo@gmail.com, com Stella de Lima Camargo

Este texto foi originalmente publicado pelo Jornal da USP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.


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