Reportagem científica traz estudo da pós em Psiquiatria que identifica, além das condições socioeconômicas, fatores de risco à solidão: transtornos mentais e consumo de álcool. Atividade física, sono de qualidade e relacionamentos saudáveis são aspectos de proteção
Durante a pandemia da covid-19, a solidão emergiu como uma questão central para a saúde mental em todo o mundo. No Brasil, a percepção desse fenômeno ainda era pouco explorada cientificamente até que o psiquiatra e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria e Ciências do Comportamento da UFRGS Thyago Antonelli Salgado começou a investigar os fatores de risco e de proteção associados à solidão no país.
Após acompanhar 473 pacientes por dois anos, a equipe liderada por Thyago detectou que sintomas depressivos e ansiosos, abuso de álcool e uso de cannabis são fatores de risco para o isolamento. Outro achado chamou a atenção dos pesquisadores: no Brasil, pessoas com maior poder aquisitivo se sentem mais solitárias, algo que não se observa em outros países. Por outro lado, o estudo aponta que atividade física, relacionamentos saudáveis e sono de qualidade são aspectos de proteção. O artigo com os resultados foi publicado em dezembro na Journal of Psychiatric Research.
A solidão em um país de forte identidade coletiva
Thyago já havia estudado a temática da solidão no mestrado, em que descobriu que ela é um forte fator de risco para pensamentos suicidas. Na pandemia, quando relatos de aumento da solidão começaram a surgir na Europa, o pesquisador quis aprofundar a análise do fenômeno no contexto brasileiro. Assim, no doutorado, ele liderou um estudo longitudinal para avaliar como a solidão evoluía e quais fatores contribuíam para seu desenvolvimento.
A pesquisa utilizou a metodologia da coleta de dados conhecida como “bola de neve”, em que os participantes são incentivados a compartilhar a pesquisa com suas redes. Isso possibilitou um alto número de respondentes, mas também trouxe desafios. Para equilibrar a representatividade, a equipe utilizou um sistema de ponderação, garantindo que os dados refletissem melhor a população brasileira.
Os pesquisadores constataram que, apesar de o Brasil ser um país com a cultura da coletividade, uma parcela significativa da população se sente solitária (cerca de 26% dos respondentes). Sinais clínicos como depressão, ansiedade e uso de álcool e cannabis foram identificados como fatores de risco para a solidão, enquanto atividade física, sono de qualidade e bons relacionamentos familiares foram associados a uma menor incidência.
Entre os fatores de risco identificados, chamou atenção dos pesquisadores o impacto do status socioeconômico. Diferente do que ocorre em outros países, no Brasil pessoas com maior poder aquisitivo apresentaram maior tendência a sentir solidão.
Esse isolamento, no entanto, não significa falta de interações sociais superficiais. Apesar de a cultura brasileira ter um forte senso de pertencimento em grupo, isso nem sempre proporciona conexões profundas e significativas. Além disso, o estudo apontou que as mulheres, pessoas com menor escolaridade e indivíduos não heterossexuais eram mais propensos a desenvolver solidão.
Um paradoxo moderno
A pandemia acelerou o uso do meio digital como ferramenta de socialização. No início, houve um aumento da conexão entre as pessoas por meio da internet, e, em alguns países, a solidão chegou a diminuir temporariamente. Entretanto, a longo prazo, as redes sociais não supriram a necessidade de relações interpessoais. “Se alguém tem fome e recebe apenas petiscos, em breve sentirá fome de novo. O mesmo ocorre com a interação social superficial proporcionada pelas redes sociais”, compara o psiquiatra.
Se, por um lado, fatores como transtornos mentais e uso de substâncias aumentam o risco de solidão, a pesquisa também apontou elementos que ajudam a combatê-la. Três fatores se destacaram como protetores: a prática regular de atividade física, a boa qualidade do sono e relações interpessoais positivas. “A prática esportiva promove o convívio com pessoas que, em geral, têm hábitos mais saudáveis e níveis reduzidos de transtornos psíquicos”, ressalta. Da mesma forma, o sono adequado melhora a função cognitiva e aumenta a capacidade de interação social de qualidade.
No âmbito das relações interpessoais, a pesquisa reforça que não basta ter familiares ou amigos por perto – é fundamental cultivar conexões significativas e enriquecedoras. “Uma boa relação não depende apenas da presença de alguém, mas do esforço mútuo para construir laços profundos”, afirma o pesquisador.
O futuro da pesquisa sobre solidão
Diante dos resultados obtidos, Thyago planeja aprofundar sua pesquisa sobre o impacto da atividade física na solidão, investigando não apenas seu efeito na socialização, mas também os mecanismos biológicos envolvidos. Estudos indicam que a solidão está associada a uma maior resposta inflamatória no organismo, enquanto a atividade física pode ter um efeito anti-inflamatório e redutor do estresse.
O psiquiatra também comenta que a pesquisa o transformou pessoalmente. “Passei a avaliar melhor minhas próprias relações sociais e a importância de investir nelas. Compreendi que a solidão pode afetar profundamente a vida das pessoas e que conexões significativas são essenciais para o bem-estar”, reflete.
O pesquisador participa de um grupo internacional de pesquisa que discute medidas para combater a solidão. Ele aponta que, enquanto países como Reino Unido, Japão e Austrália já possuem políticas públicas para o tema, na América do Sul ainda não há iniciativas governamentais nesse sentido. “Existem medidas como a criação de espaços públicos para esporte e lazer, mas ainda há pouca conscientização sobre a importância do sono e da construção de relações sociais de qualidade”, observa. O pesquisador defende que é necessário um investimento maior em campanhas educativas e na detecção de populações mais vulneráveis à solidão.
Este texto foi originalmente publicado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.