Pesquisadores criam enzima mutante que digere plástico

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Descoberta de um grupo internacional de cientistas, que inclui dois brasileiros, pode contribuir para minimizar poluição causada pelo material

Um grupo internacional de cientistas, do qual participam dois brasileiros da Universidade de Campinas (Unicamp), conseguiu melhorar o desempenho da PETase, uma enzima capaz de se alimentar de polietileno tereftalato, o plástico PET. Depois que a PETase foi descoberta em uma nova espécie de bactérias, em 2016, o grupo de pesquisadores trabalhou para obter a estrutura da enzima e entender seu funcionamento. Nesse processo, por acidente, eles acabaram criando uma mutação da enzima que possui uma afinidade ainda maior com o PET – ou seja, um maior potencial para degradar plástico.

O trabalho tem um enorme potencial de utilização prática, já que estima-se que entre 4,8 e 12,7 milhões de toneladas de plástico são lançados todos os anos nos oceanos – número que só tende a crescer. Os plásticos, que se acumulam mesmo nas praia mais remotas do planeta, são tão utilizados justamente por sua resistência à degradação, que é o que mais ameaça o meio ambiente. Quando descartada, uma garrafa PET, por exemplo, pode permanecer no meio ambiente por 800 anos – além do crescente e alarmante problema dos microplásticos.

Com tudo isso, é fácil entender o grande interesse suscitado pela descoberta de uma enzima capaz de digerir o polietileno tereftalato. Essa enzima, denominada PETase, teve agora a sua capacidade de degradar o plástico incrementada. A novidade foi descrita em artigo publicado na Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America (PNAS).

Dois pesquisadores do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (IQ-Unicamp) participaram da pesquisa, em colaboração com pesquisadores do Reino Unido (University of Portsmouth) e dos Estados Unidos (National Renewable Energy Laboratory). São o pós-doutorando Rodrigo Leandro Silveira e seu supervisor, o professor titular e pró-reitor de Pesquisa da Unicamp Munir Salomão Skaf.

“Usado principalmente na fabricação de garrafas de bebidas, o polietileno tereftalato é também muito empregado na confecção de roupas, tapetes e outros objetos. Em nossa pesquisa, caracterizamos a estrutura tridimensional da enzima capaz de digerir esse plástico, a engenheiramos, aumentando seu poder de degradação, e demonstramos que ela é também ativa em polietileno-2,5-furanodicarboxilato (PEF), um substituto do PET fabricado a partir de matérias-primas renováveis”, disse Silveira à Agência FAPESP.

O interesse pela PETase surgiu em 2016, quando um grupo de pesquisadores japoneses, tendo à frente Shosuke Yoshida, identificou uma nova espécie de bactéria, a Ideonella sakaiensis, capaz de usar o polietileno tereftalato como fonte de carbono e energia – em outras palavras, capaz de se alimentar de PET. Trata-se, até hoje, do único organismo conhecido com essa capacidade. Ele, literalmente, cresce sobre o PET.

“Além de identificar a Ideonella sakaiensis, os japoneses descobriram que ela produzia duas enzimas que são secretadas para o meio ambiente. Uma das enzimas secretadas era justamente a PETase. Por ter certo grau de cristalinidade, o PET é um polímero muito difícil de ser degradado. Usamos tecnicamente o termo ‘recalcitrância’ para nomear a propriedade que certos polímeros muito empacotados possuem de resistir à degradação. O PET é um deles. Mas a PETase o ataca e o decompõe em pequenas unidades – o ácido mono(2-hidroxietil)tereftálico (MHET). As unidades de MHET são então convertidas em ácido tereftálico [por uma segunda enzima] e absorvidas e metabolizadas pela bactéria”, disse Silveira.

Todos os seres vivos conhecidos utilizam biomoléculas para sobreviver. Todos menos a Ideonella sakaiensis, que consegue utilizar uma molécula sintética, fabricada pelo ser humano. Isso significa que tal bactéria é resultado de um processo evolutivo muito recente, ocorrido ao longo das últimas décadas. Ela conseguiu se adaptar a um polímero que foi desenvolvido no início dos anos 1940 e só começou a ser utilizado em escala industrial nos anos 1970. Para isso, a PETase é a peça-chave.

“A PETase faz a parte mais difícil, que é romper a estrutura cristalina e despolimerizar o PET em MHET. O trabalho da segunda enzima, a que transforma MHET em ácido tereftálico, já é bem mais simples, uma vez que seu substrato é formado por monômeros aos quais a enzima tem fácil acesso por estarem dispersos no meio reacional. Por isso, os estudos se concentraram na PETase”, explicou Silveira.

A etapa seguinte foi estudar detalhadamente a PETase e nisso consistiu a contribuição da nova pesquisa. “Nosso foco foi descobrir o que conferia à PETase a capacidade de fazer algo que as demais enzimas não eram capazes de fazer com muita eficiência. Para isso, o primeiro passo foi obter a estrutura tridimensional dessa proteína”, disse.

“Obter a estrutura tridimensional significa descobrir as coordenadas x, y e z de cada um dos milhares de átomos que constituem a macromolécula. Nossos colegas britânicos fizeram esse trabalho por meio de uma técnica bastante conhecida e utilizada, chamada difração de raio X”, explicou.

Enzima modificada se liga melhor ao polímero

Obtida a estrutura tridimensional, os pesquisadores começaram a comparar a PETase com proteínas aparentadas. A mais parecida é uma cutinase da bactéria Thermobifida fusca, que degrada a cutina, uma espécie de verniz natural que recobre as folhas das plantas. Certos microrganismos patogênicos utilizam cutinases para romper a barreira de cutina e se apropriar dos nutrientes presentes nas folhas.


Imagem: Estrutura da PETase, em azul, com uma cadeia de PET (em amarelo) ligada a seu sítio ativo, onde será degradado. Divulgação/Rodrigo Leandro Silveira.

“Verificamos que, na região da enzima onde ocorrem as reações químicas, o chamado ‘sítio ativo’, a PETase apresentava algumas diferenças em relação à cutinase. Ela possui um sítio ativo mais aberto. Por meio de simulações computacionais – e essa foi a parte em que mais contribuí –, pudemos estudar os movimentos moleculares da enzima. Enquanto a estrutura cristalográfica, obtida por difração de raio X, fornece informações estáticas, as simulações possibilitam ter informações dinâmicas, e descobrir o papel específico de cada aminoácido no processo de degradação do PET”, explicou o pesquisador do IQ-Unicamp.

A física dos movimentos da molécula resulta das atrações e repulsões eletrostáticas do enorme conjunto de átomos e da temperatura. As simulações computacionais permitiram entender melhor como a PETase se liga e interage com o PET.

“Descobrimos que a PETase e a cutinase têm dois aminoácidos diferentes no sítio ativo. Por meio de procedimentos de biologia molecular, produzimos então mutações na PETase, com o objetivo de transformá-la em cutinase”, disse Silveira.

“Se conseguíssemos fazer isso, mostraríamos por que a PETase é PETase, isto é, saberíamos quais são os componentes que lhe conferem a propriedade tão peculiar de degradar o PET. Mas, para nossa surpresa, ao tentar suprimir a atividade peculiar da PETase, isto é, ao tentar transformar a PETase em cutinase, produzimos uma PETase ainda mais ativa. Buscávamos reduzir a atividade e, em vez disso, a aumentamos”, disse.

Isso demandou novos estudos computacionais, para entender por que a PETase mutante era melhor do que PETase original. Com a modelagem e as simulações, foi possível perceber que as alterações produzidas na PETase favorecem o acoplamento da enzima com o substrato.

A enzima modificada se liga melhor ao polímero. Esse acoplamento depende de fatores geométricos, ou seja, do encaixe do tipo “chave e fechadura” entre as duas moléculas. Mas também de fatores termodinâmicos, ou seja, das interações entre os diversos componentes da enzima e do polímero. A maneira elegante de descrever isso é dizer que a PETase modificada apresenta “maior afinidade” pelo substrato.

Em termos de uma futura aplicação prática, de obter um ingrediente capaz de degradar toneladas de lixo plástico, o estudo foi um enorme sucesso. Mas a pergunta sobre o que faz a PETase ser uma PETase continua sem resposta.

“A cutinase possui os aminoácidos a e b. A PETase possui os aminoácidos x e y. Imaginamos que, trocando x e y por a e b, conseguiríamos transformar a PETase em cutinase. Em vez disso, produzimos uma PETase melhorada. Em outras palavras, não são os dois aminoácidos a explicação para o comportamento diferencial das duas enzimas. É outra coisa”, disse Silveira.

Evolução em curso

A cutinase é uma enzima antiga, enquanto a PETase é uma enzima moderna, resultante da pressão evolutiva que possibilitou à Ideonella sakaiensis se adaptar a um meio que contém apenas ou principalmente polietileno tereftalato como fonte de carbono e energia.

Dentre as muitas bactérias incapazes de utilizar esse polímero, alguma mutação gerou uma espécie que conseguiu fazê-lo. Essa bactéria começou a se reproduzir e crescer muito mais do que as outras porque tinha alimento à vontade. Com isso, ela se desenvolveu. Ao menos essa é a explicação fornecida pela teoria evolucionista padrão.

“O fato de termos conseguido uma enzima melhor fazendo uma pequena alteração sugere fortemente que essa evolução ainda não foi completada. Ainda há novas possibilidades evolutivas a serem compreendidas e exploradas, com vistas à obtenção de enzimas ainda mais eficientes. A PETase melhorada não é o fim do caminho. É apenas o começo”, disse Silveira.

Com vistas à aplicação, o próximo passo é passar da escala de laboratório para a industrial. Para isso, outros estudos, relacionados com engenharia de reatores, otimização dos processos e diminuição de custos serão necessários.



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