Petrópolis: não foi um desastre natural!

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Por Eliane da Fonseca Daré em Jornal da Unicamp — Ao acompanhar as últimas notícias sobre Petrópolis é inevitável questionar se a tragédia poderia ter sido evitada ou amenizada. Mais de 100 mortes já foram confirmadas pelo Corpo de Bombeiros, que trabalha incessantemente em busca de vítimas soterradas e pessoas desaparecidas. O conceito de “desastre natural” vem sendo usado de forma recorrente, mesmo por autoridades públicas, para justificar a tragédia na cidade fluminense. Mas se considerarmos que há pouco mais de 10 anos a cidade passou por situação semelhante, podemos descrever o que aconteceu como um desastre natural, provocado unicamente pela chuva intensa?

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Como explica Raul Amorim, docente do Departamento de Geografia do IG, um desastre só é deflagrado quando um fenômeno natural atinge pessoas. Petrópolis está localizada em uma região serrana, com encostas muito íngremes e rios entre elas. A probabilidade de ocorrência de chuvas concentradas ali é alta. Quando há movimentos de massa, e se o evento tem maior magnitude, isso contribui para a elevação das águas dos rios e alagamentos nas áreas impermeabilizadas. Dificilmente ocorre só movimento de massa ou só a inundação. A chuva que cai na encosta desce para o fundo do vale. Em 16 de fevereiro choveu muito em todo o Primeiro Distrito, onde fica o Alto da Serra, e a água acabou se acumulando no fundo do vale, causando o transbordamento em diversos pontos da cidade.

Crescimento da população levou a ocupação das encostas na cidade de Petrópolis. Crédito: Flávia Rocha

RELEVO E OCUPAÇÃO – Isabelle Alves, aluna de pós-graduação em Geografia, explica que a formação histórica da cidade é problemática. No período colonial, a população se estabeleceu às margens dos rios, mantendo o padrão europeu do uso de pontes. “A população foi se estabelecendo no fundo do vale e agora ocupa as encostas. Desde década de 1950 até 2010 a população triplicou. Eles não estão ali porque querem, mas por não terem para onde ir”.

Há ali uma interação de fatores importantes na deflagração do processo de movimentação de massa: chuva, relevo, rocha, solo e vegetação. Do ponto de vista técnico, seria possível prever deslizamentos de terra. “Mas para isso é preciso conhecer as características das encostas, sua topografia, a profundidade dos solos, o maciço rochoso que existe sob o solo, as características geológico-geotécnicas desses materiais, a profundidade do nível d´água na encosta, se há depósito de lixo antigo encoberto por vegetação, se a água de chuva se infiltra com facilidade pelos materiais que compõem o terreno, etc. É um tipo de levantamento que demanda investimentos, mas de posse dessas informações é possível realizar cálculos e avaliar se a encosta é estável ou se ela pode romper em pouco tempo”, explica Ana Elisa Abreu, professora do Departamento de Geologia e Recursos Naturais (DGRN) do IG.

Ana Elisa Abreu, professora do Departamento de Geologia e Recursos Naturais (DGRN) do IG

Ainda de acordo com a docente, os deslizamentos podem ser evitados por meio de obras de engenharia. “Terraplenagem, drenagem e obras de contenção são medidas que chamamos de estruturais. Outra forma de atuar nessa área, e que está entre as principais ações do sistema brasileiro de defesa civil, é mapear os riscos relacionados a deslizamentos e implantar medidas não-estruturais. Por exemplo, sistemas de alerta antecipado. Eles permitem evacuar as áreas onde estão os habitantes e eventualmente também os bens em risco, antes que sejam atingidos por um escorregamento”, explica a docente que tem pesquisas em parceria com o Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT) para incorporar sistemas de alerta de deslizamentos no contexto de Cidades Inteligentes e internet das coisas (IoT).

Isabelle é de Petrópolis e uma sobrevivente de deslizamentos de terra. Em 2013, a casa onde morava foi atingida. Ela e a família saíram às pressas. Isso a motivou a pesquisar a vulnerabilidade socioambiental de áreas com alta ocorrência de movimentos de massa e inundações. A pós-graduanda vem mapeando as áreas com maior probabilidade desses eventos nos municípios da região serrana do Rio.

REGIÃO AFETADA – A pós-graduanda mapeou todas as áreas atingidas no Primeiro Distrito de Petrópolis, onde ocorreu a tragédia de 16 de fevereiro. O ponto vermelho representa área de alta vulnerabilidade social, o que abarca diversos aspectos, como estrutura da família, renda e educação, aspectos populacionais, habitação e entorno. A área mais afetada (Alto da Serra) é também uma das mais suscetíveis a inundações e movimentos gravitacionais, como desplacamento, deslizamento, desmoronamento e rolamento de bloco rochoso.

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O professor do DGRN/IG, Jefferson Picanço, explica que as chuvas intensas que caíram na semana passada provavelmente encontraram um solo já muito encharcado por precipitações anteriores. “A intensidade dessas chuvas representa um problema em qualquer lugar. No entanto, a cidade não estava preparada para enfrentar mais essa chuva. Os bombeiros e a Defesa Civil do Estado e da cidade estão fazendo um grande sacrifício para socorrer as vítimas, enquanto os administradores culpam a chuva, como sempre. Na verdade, regredimos muito em gerenciamento de riscos nos últimos anos, e a população acaba sendo vista como a culpada de suas próprias tragédias”, lamenta o docente, que também é membro do Centro de Apoio Científico em Desastres (CENACID).

Raul Amorim, professor do Departamento de Geografia do IG

Para Raul Amorim, “já se sabe que a região fica numa área suscetível em que o fenômeno de precipitação tende a aumentar durante o verão. O que falta, portanto? Implantar políticas públicas eficientes para evitar desastres desse tipo. Por exemplo, em uma área, com muitas crianças e idosos é preciso um plano de retirada rápida dessas pessoas. Uma região de baixo indicador de renda terá uma população com dificuldades de se reestabelecer após esses eventos e precisará de uma política pública forte para ajudá-las. Com relação às habitações, é preciso verificar se elas têm água, alvenaria, qual a fragilidade de sua infraestrutura, como a Defesa Civil e demais órgãos irão atuar nessa área para salvar as pessoas após o evento, se há planos de fuga. Áreas com alta vulnerabilidade social devem ser priorizadas pelo poder público antes, durante e depois dos desastres”, explica.

A tragédia de 2011, que assolou a região da Serra Fluminense, mudou os rumos do enfrentamento dos desastres climáticos no Brasil. Segundo Picanço, “alteraram-se as leis para instaurar sistemas de gerenciamento proativos e não somente reativos. Petrópolis foi uma das cidades escolhidas para ser um modelo de ação preventiva de tragédias desse tipo no projeto GIDES, que envolveu um intenso treinamento das defesas civis locais por técnicos japoneses especialistas em desastres. No entanto, o projeto foi extinto em 2018 por falta de interesse do governo brasileiro em renová-lo”. Ainda de acordo com o docente, com a extinção do Ministério das Cidades, que centralizava as ações de prevenção, tem havido falta de articulação com os governos locais. “Muitos deixam de aplicar recursos assegurados para o gerenciamento de risco, comprometendo os resultados de medidas preventivas”, aponta.

Chuvas intensas que caíram na semana passada encontraram um solo já muito encharcado por precipitações anteriores. Crédito: Flávia Rocha

As inundações em Petrópolis são um fenômeno recorrente, que vêm se intensificando em razão de mudanças ambientais globais, com as chuvas se concentrando em curtos períodos de tempo. Para Jacques Manz, que fez um levantamento das inundações na cidade serrana, é fundamental implementar políticas a partir desse histórico de informações para reduzir a possibilidade do desastre ou para diminuir seus danos. “Infelizmente, por mais que as políticas públicas estejam presentes, a gestão de risco está longe de ser efetivada na prática. Entre 2012 e 2014, o Brasil investia cerca de R$2,5 bilhões anuais em prevenção de desastres. Em 2019 esse valor caiu para R$300 milhões, sendo que apenas R$99 milhões foram liquidados e nada foi utilizado na prevenção das inundações”, revela Jacques que concluiu seu doutorado em Geografia no IG no final de 2021.

Jacques Manz concluiu seu doutorado em Geografia no IG no final de 2021

NÃO É DESASTRE NATURAL – Para ele, no momento em que o desastre é classificado como natural, culpa-se a natureza. “Não se pode descartar a importância dos componentes naturais, mas quando o discurso do poder público se apoia unicamente no desastre ‘natural’, há um entendimento de que a gestão pública não é responsável, ele se exime da responsabilidade do desastre”, afirma o geógrafo, hoje docente do Instituto Federal do Piauí. Ele reitera a importância do monitoramento da região, dos mapas de risco e das sirenes, mas entende que o problema é mais complexo. “É preciso discutir a desigualdade social, o porquê de essas pessoas ocuparem esses espaços, que forças as empurram para as áreas de risco”, aponta. “O desastre é sobretudo político. Os eventos nos deixam assustados e comovidos, pela magnitude e pelo impacto. No entanto, os órgãos responsáveis só se fazem presentes quando o risco se transforma em tragédia. Então eles chegam com o socorro, comida, decretando estado de emergência ou de calamidade pública. Essa movimentação é importantíssima, mas não pode ocorrer só nesse último momento, porque, quando o desastre acontece, é muito mais danoso e vidas são perdidas”, lamenta Jacques.

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PAPEL DA ACADEMIA – Para Raul Amorim, muitas políticas públicas deixaram de ser implementadas ou o foram de forma parcial. “Elas poderiam ter feito a diferença não só para socorrer os que foram afetados no episódio anterior, mas também para evitar novos desastres. A culpa, portanto, não é da chuva”, afirma. De acordo com o docente de Geografia da Unicamp, o acesso à informação pode contribuir para a formulação de metodologias de prevenção e mitigação desse tipo de fenômeno. “Um banco de dados de informações permite desenvolver estudos, apontar problemas, elaborar ações, embasar políticas públicas, determinar as áreas vulneráveis e suscetíveis, e como elas respondem a esses fenômenos”, aponta. Por isso a necessidade de livre acesso a bancos de dados oficiais.

Para Jefferson Picanço, a ciência tem muitas respostas para esse tipo de problema, mas não pode, sozinha, evitar tragédias. “Estamos desenvolvendo modelos que assegurem alertas antecipados para escorregamentos, entendendo os processos de rompimento dos maciços de solo e rocha. Muitas soluções tecnológicas estão sendo pensadas nas universidades e centros de pesquisa, como o IPT e o CEMADEN (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais). A engenharia tem soluções para contenção de maciços e escoamento de água e solos. As ciências sociais fornecem dados sobre a dinâmica social e apontam problemas de governança”, afirma. Todos os especialistas ouvidos pelo Jornal da Unicamp concordam, no entanto, que em nada adianta a contribuição da academia se este conhecimento não for aproveitado pelos gestores públicos.

Equipe eCycle

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