Mesmo com o aumento no número de casos de violência LGBTfóbica no Brasil, a subnotificação ainda é alta. A informação é do relatório LGBTQIA+ em pauta, produzido por pesquisadores do Observatório Interdisciplinar de Políticas Públicas Prof. Dr. José Renato de Campos Araujo (OIPP) e do Grupo de Estudos em Tecnologias e Inovações na Gestão Pública (Getip) da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP e orientado pelo Professor José Carlos Vaz.
A pesquisa mapeou a disponibilidade de dados e informações do governo federal sobre a população LGBTQIA+ e identificou vácuos informacionais que prejudicam a formulação e implementação de políticas públicas. No total, 43 lacunas em políticas no nível federal foram observadas. Além disso, o estudo buscou compreender as narrativas e discursos referentes à disponibilidade ou não de dados, elencar casos de referência em políticas públicas e elaborar recomendações em quatro áreas temáticas: assistência social e trabalho, educação, saúde e segurança pública.
Entre os dados observados pelo relatório, destaca-se que cerca de 60% das execuções de pessoas trans ocorreram em espaços públicos (tais como ruas e praças) e 65% dos homicídios foram contra pessoas trans em exercício da função de profissional do sexo.
Além disso, entre 2000 e 2017, houve o aumento de 2.700% de assassinatos de lésbicas e, em 2019, até 35% das lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais foram assassinados em suas casas. Em relação à educação, o documento aponta que aproximadamente 85% dos estudantes trans não concluem o ensino médio, e que professores LGBTQIA+ têm medo constante de perder seus empregos.
Considerando que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo e que a população LGBTQIA+ ainda tem que lutar diariamente pela garantia de seus direitos, os autores do documento apontam que é necessário reconhecer a violência sistêmica e estrutural contra pessoas LGBTQIA+. A premissa é de que violência só pode ser combatida ao se combater sua estrutura.
As pesquisadoras Caroline Gonçalves de Oliveira, graduanda em Obstetrícia e aluna pesquisadora na USP pelo Observatório de Atividades Educativas para Profissionais dos Sistemas Públicos de Saúde, e Daniela Salú Mateus da Silva, pesquisadora do OIPP e co-coordenadora do projeto Agenda Governamental em Pauta, ambas integrantes do projeto, apontam ao Jornal da USP que é preciso conhecer a fundo as falhas nas políticas atuais e os problemas que pessoas LGBTQIA+ enfrentam no dia a dia para atuar de forma estratégica a reverter esse ciclo estrutural de discriminação e preconceito como um todo.
Dados e informações ajudam a tornar as políticas públicas desenhadas eficazes. “Em nossa pesquisa, identificamos que o principal problema foi justamente a ausência de dados públicos sobre estas questões, em especial, aqueles produzidos pelo Estado, o que impacta diretamente nas políticas públicas a serem, ainda, implementadas”, ressaltam as pesquisadoras.
As pesquisadoras do OIPP apontaram que, apesar de haver propostas de políticas públicas para a melhoria das condições de vida da população LGBTQIA+, muitas delas ou não saem do papel ou têm efeitos apenas pontuais. “Ou seja, planejam-se ações e iniciativas, inclusive a realização de levantamentos estatísticos, porém essas não são realizadas e/ou consolidadas. Dessa forma, as políticas, até então implementadas, pouco atuam em relação ao combate a essas discriminações, tanto por agirem de maneira pontual em alguns municípios e/ou Estados, quanto por não serem coordenadas de forma federal e por não agirem em todas as dimensões do ciclo estrutural de marginalização e exclusão”, explicam.
Além disso, políticas públicas na esfera federal são muitas vezes políticas de governo, sem dotações orçamentárias próprias e sem garantia de continuidade. O que foi feito até então já foi ou está no processo de ser desmontado, enquanto outras proposições não chegaram a ser efetivadas. Segundo as pesquisadoras, “o ideal, nesse caso, seria a existência de diretrizes e respaldo legislativo para garantir que o governo federal, Estados e municípios atuem em conjunto para garantir a cidadania da população LGBTQIA+”.
Elas relatam ao Jornal da USP a existência de narrativas e discursos que, “baseados numa retórica supostamente ‘mais técnica’, alegam que a inexistência de coleta de dados se dá porque as questões são de ordem mais subjetiva”. Deste modo, o Estado não encara as questões identificadas pela pesquisa como públicas e que afetam o desenvolvimento de toda a sociedade, enxergando-as somente na escala do “identitarismo”. “Esses discursos são utilizados para apagar e diminuir as reais motivações, que neste caso são as religiosas e morais, e estão imbricadas em nossos representantes políticos – em sua maioria homens cisgênero, heterossexuais e brancos -, que negam os direitos fundamentais às populações LGBTQIA+ em nome do conservadorismo”, concluem.
A pesquisa mapeou as políticas públicas e a disponibilidade de dados sobre a população LGBTQIA+ em quatro áreas temáticas:assistência social e trabalho, educação, saúde e segurança pública. Os pesquisadores também buscaram avaliar como os diferentes marcadores sociais da diferença, como raça e classe social, são operados e afetam a vida das pessoas LGBTQIA+.
Segundo as entrevistadas, apenas por meio de um sério levantamento de dados da população LGBTQIA+ e a sistematização efetiva destes, é que será possível elaborar políticas públicas que tratem de efetivamente reduzir tais disparidades em termos de acesso à plena cidadania. “A interseccionalidade deve ser a orientação metodológica para que sejam formuladas políticas públicas mais eficazes em torno das populações nas siglas LGBTQIA+, que, por sua vez, não podem ser tratadas de maneira generalizada, dadas as especificidades locais, regionais e com outros marcadores sociais que afetam diretamente a dinâmica e vivência social”, ressaltam.
A LGBTfobia no mercado de trabalho, a violência institucional no campo de assistência social, a inação e omissão do Estado perante as demandas da população LGBTQIA+ e a inexistência de políticas públicas e coordenação federativa para a garantia desses direitos ampliam o estigma social e a violência sofrida por pessoas LGBTQIA+.
Para que seja possível melhorar, de fato, as condições de vida da população LGBTQIA+, as pesquisadoras fazem algumas recomendações.
A violência contra pessoas LGBTQIA+ nesse contexto vai desde a formação docente até o preconceito durante a vivência escolar. Segundo as pesquisadoras, a falta de preparo dos professores e ausência da inserção da pauta no material escolar, este predominantemente heterocisnormativo, faz o conteúdo abordado dar continuidade ao tabu já existente em relação às pessoas LGBTQIA+. “Isto, por sua vez, possibilita espaços para situações de LGBTfobia, que provoca a evasão escolar e, logo, menos pessoas LGBTQIA+ no ensino superior”, concluem.
Entre as políticas públicas que podem causar efeitos dentro do contexto escolar, possibilitando a construção de um espaço em que não haja discriminação, as entrevistadas citam:
A vulnerabilidade social da população LGBTQIA+ em conjunto com os estigmas em relação à saúde sexual e reprodutiva, e a ausência de dados sobre a situação da população LGBTQIA+, principalmente no que se refere a pessoas em situação de rua, privados de liberdade, idosos e à população negra e indígena, são fatores que agravam o desamparo das pessoas LGBTQIA+ no acesso à saúde integral.
Um exemplo é o agravamento de questões de saúde mental. “Observamos que não há materiais que cruzem as interseccionalidades e apontem a gravidade na saúde mental dessas populações somadas às questões vulnerabilizadas das minorias étnico-raciais e socioeconômicas”, afirmam as pesquisadoras. “Ainda, identificamos serem poucas as produções que tratem os dados de forma interseccional da temática da população negra, LGBTQIA+ e/ou pobre.”
Fazem parte das recomendações citadas pelo relatório:
A violência contra pessoas LGBTQIA+ não se manifesta em uma única forma, e as formas como ela se dá são interligadas, de maneira a alimentar e retroalimentar o ciclo de exclusão.
Além disso, o relatório aponta que apesar dos altos investimentos no Brasil na área de segurança pública, problemas recorrentes como a superlotação do sistema prisional e o alto índice de homicídios não tiveram respostas satisfatórias. E recomenda:
Por fim, as pesquisadoras reiteram a necessidade de durabilidade. “Precisamos de políticas consistentes, que vão além de governos, e sejam políticas de Estado”, afirmam. Segundo Daniela e Caroline, apesar de ser certo que até mesmo as leis podem ser revogadas a qualquer tempo, a importância já se dá pelo papel político presente em sua simples edição.
“Considerando que o Congresso Nacional representa, em tese, os interesses sociais, conseguir a aprovação de leis que conferem direitos à comunidade LGBTQIA+ pode indicar que as lutas sociais foram capazes de modificar o imaginário social em relação às pessoas LGBTQIA+.”
Uma mudança de paradigmas, onde corpos dissidentes possam existir com dignidade e com o reconhecimento da humanidade que lhes é inerente, é o objetivo. “Nesse contexto, é preciso avançar no reconhecimento dos direitos à comunidade LGBTQIA+, de modo que se tornem um valor social e institucional inegociável e amplamente protegido”, concluem.
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