Por Cristina Tordin, da Embrapa | Uma pesquisa, realizada com agricultores e consumidores de alimentos agroecológicos na cidade de São Paulo, durante a pandemia da Covid19, mostrou que houve mudanças na relação entre consumidores e seus fornecedores e nos valores compartilhados entre eles, no contexto das redes alimentares alternativas da cidade, que passaram a buscar alimentos mais saudáveis e a valorizar a proximidade com os produtores, em contraposição à impessoalidade que existe na relação com supermercados.
A avaliação, que contou com a contribuição de uma cooperativa de agricultores orgânicos sediada em São Paulo, evidenciou a urgência da transformação dos sistemas alimentares em direção a práticas mais sustentáveis na agricultura.
A pesquisa buscou compreender se a pandemia provocou mudanças qualitativas na relação de proximidade e nos valores compartilhados entre agricultores e consumidores nas redes de alimentos orgânicos da cidade. Além disso, analisou os impactos sociais e os caminhos escolhidos para o estabelecimento dessa proximidade, obtendo o perfil dos que buscam esses alimentos por meio de redes alternativas, as mudanças dos hábitos alimentares durante esse período e as motivações que os fazem optar por esse tipo de consumo.
“Detectamos que a pandemia da Covid-19 gerou mudanças do ponto de vista sociocultural e que a organização em redes alimentares alternativas tem potencial para redefinir as relações de produção e consumo, fortalecer os mercados locais e, ao mesmo tempo, contribuir para o desenvolvimento de novos valores ou princípios de troca ou comercialização com preços justos, equidade nas relações, ética e valorização do trabalho no campo”, explica Natália Cheung em sua dissertação de mestrado pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
De acordo com Cheung, depois dos meses mais críticos, o processo de reconexão entre consumidores e seus fornecedores mostrou que a pandemia foi um ponto fundamental para trazer mais consciência sobre a importância da alimentação saudável, sob a perspectiva da agroecologia e da relação com a preservação da vida no planeta.
Atualmente, um dos interesses pelo tema dessa pesquisa ocorre devido ao aumento da insegurança alimentar cada vez mais presente em mais de 58% dos lares brasileiros, o que representa cerca de 125,2 milhões de pessoas que não possuem acesso pleno e permanente a alimentos.
Dessas, estima-se que 33,1 milhões (15,5% da população) sofrem com insegurança alimentar em sua forma mais grave, isto é, não têm o que comer e convivem diariamente com a fome, de acordo com a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan). Isso representa um aumento de 73% em relação ao ano de 2021, isto é, novos 14 milhões de brasileiros em situação de fome.
Por outro lado, como explica a pesquisadora da Embrapa Meio Ambiente Lucimar Abreu, orientadora de Cheung, quem manteve sua renda, passou a se preocupar mais com uma alimentação nutritiva para fortalecer o sistema imunológico e a saúde, motivadas também por campanhas para incentivar o pequeno comércio e produtores locais.
Cooperativas como a Cooperativa Agroecológica dos Produtores Rurais e de Água Limpa da Região Sul de São Paulo (Cooperapas), fundada em 2011, com perfil heterogêneo dos integrantes, abriram novas possibilidades de troca de conhecimentos e união de esforços, buscando aprimorar os aspectos relacionados à comercialização dos alimentos orgânicos.
Outra iniciativa interessante foi a criação do Orgânicas para Todes, coletivo que articula venda e doação de orgânicos. Começou com a necessidade de apoiar agricultores e comunidades carentes durante a pandemia, em uma plataforma de vendas online via Instagram, Google Forms e WhatsApp. Quem pode pagar, compra 2 cestas de orgânicos: uma é entregue para quem pagou e a outra é doada para famílias em vulnerabilidade alimentar que residem em bairros periféricos.
“Isso representou uma resposta ao momento de crise, gerando renda a produtores que não tinham para onde escoar seus alimentos e distribuindo cestas para populações vulneráveis. Essa experiência contribuiu para fortalecer o mercado local e redefinir as relações de produção e consumo, guiando-se pela prática de preços justos, equidade, ética e solidariedade”, destaca Cheung.
Todos os agricultores da Cooperapas notaram um aumento expressivo nos custos de sua atividade de produção, alguns itens acima de 50%, decorrentes da Covid-19. O nível de renda sofreu redução por uma série de fatores, como queda nas vendas para canais indiretos (lojas especializadas, restaurantes), diminuição de clientes em seus outros canais de comercialização próprios por via direta (delivery, feiras orgânicas) e menor lucro devido ao forte aumento do preço dos insumos agrícolas.
Ademais, as fontes complementares que se originavam das visitas de turismo, da venda de orgânicos nos locais de produção e de convites para oficinas e palestras foram impactadas.
Do total de entrevistados, 67% afirmaram ter iniciado o consumo de alimentos orgânicos na idade adulta e 24% o fizeram em um passado recente, motivados pelo contexto da pandemia.
Quase um quarto dos respondentes mudou seus hábitos alimentares com a chegada da pandemia. Não somente devido às medidas de isolamento social, mas também por outras razões, sendo a maior parte das respostas (84%) concentrada em quatro motivos: preocupação com a saúde (32%), maior conscientização ambiental, social e política sobre os impactos dos agrotóxicos (24%), apoio e valorização da agroecologia e de práticas sustentáveis (14%) e aumento da oferta de estabelecimentos que vendem orgânicos (14%).
As demais respostas (16%) abordaram questões diversas, como a praticidade de iniciativas on-line que entregam orgânicos em casa, percepção de que os preços praticados pelas redes de alimentos orgânicos são mais acessíveis se comparados aos dos supermercados e maior disponibilidade de tempo para organizar a rotina diária de alimentação.
Para aqueles cuja motivação é a preocupação com a saúde (32%), os alimentos orgânicos representam uma forma de cuidado com a família. Alguns respondentes afirmaram seguir dietas alimentares por motivos médicos, enquanto outros afirmaram “não desejar ingerir veneno” e buscar “consumir menos agrotóxico”.
O segundo tema mais abordado (24%) refere-se à demanda por mais acesso a informações sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde humana, meio ambiente, clima e, consequentemente, maior conscientização sobre o assunto.
Ainda que em menor quantidade (14%), cabe destacar o grupo de pessoas que começou a incluir orgânicos na alimentação por terem vontade de apoiar e valorizar as “redes agroecológicas”, a “agricultura em pequena escala” e “práticas mais sustentáveis”, além de outras preocupações em suas escolhas de consumo, como a proximidade (geográfica ou relacional), além da possibilidade de conhecer e estar próximo de agricultores.
Todos afirmaram que não se alimentam exclusivamente de orgânicos. Um percentual significativo (91%) já era habituado a cozinhar e comer em casa antes da Covid-19, e mantem esse costume. Dos respondentes que não comiam em casa antes da pandemia (9%), todos relataram que passaram a fazer as refeições em casa. Nesse sentido, a procura por alimentos orgânicos com serviço de entrega a domicílio cresceu significativamente, assim como agricultores que começaram a comercializar desse modo.
Contudo, enfatiza Abreu, para que essas redes sejam viáveis, a longo prazo, e colaborem na transformação do sistema alimentar, é preciso se debruçar na análise dos entraves que limitam o seu desenvolvimento, que podem ser relacionados a questões fundiárias, organizacionais e de logística.
Este texto foi originalmente publicado pela Embrapa de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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