Por Marina Martinez em Mongabay |
“O nível de estresse pós-traumático das pessoas é altíssimo”, diz Rafaela Facchetti, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz). Ela se refere à condição de saúde da população de Petrópolis desde as chuvas torrenciais no início desse ano, que provocaram alagamentos e deslizamentos de terra em vários pontos da cidade, localizada na região serrana do Rio de Janeiro. Em apenas quatro horas, choveu o esperado para todo o mês de fevereiro na cidade.
Este desastre, entretanto, não ocorreu apenas em Petrópolis. Milhões de brasileiros em várias cidades ao redor do país foram impactados por chuvas torrenciais nos últimos anos, tendo perdido suas casas, seu sustento, entes familiares ou até mesmo a própria vida. Este ano é o mais letal da história recente – 457 mortes já foram provocadas pelas chuvas.
Em algumas regiões, outro evento climático extremo tem gerado alertas: a seca. O Pantanal, localizado entre Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, apesar de ser uma das maiores áreas úmidas do planeta, vem enfrentando a seca mais severa já registrada no local em décadas. Por causa dela, os incêndios florestais têm atingido dimensões sem precedentes e provocado grandes danos à vida humana, animal e vegetal.
Comunidades tradicionais pantaneiras, incluindo povos indígenas e ribeirinhos, são as principais vítimas da seca e incêndios recorrentes na região, conta André Siqueira, biólogo e diretor da ONG Ecoa. Segundo ele, esses povos estão tendo que lidar não só com a perda de bens de consumo, mas também com o trauma psicológico de seguir vivendo em um ambiente 26% carbonizado e com restos mortais de 17 milhões de animais – danos provocados pelos incêndios apenas em 2020.
Há décadas, inúmeros cientistas e organizações da sociedade civil vêm alertando autoridades públicas sobre as consequências das mudanças climáticas e a importância de políticas de mitigação e adaptação. Uma das consequências é o aumento na frequência e intensidade de eventos climáticos extremos, como fortes chuvas e secas, os quais podem gerar impactos desastrosos para a população, meio ambiente e economia.
Segundo um levantamento feito pela Confederação Nacional de Municípios (CNM), com base em dados do Sistema Integrado de Informações sobre Desastres do Ministério do Desenvolvimento Regional (S2ID/MDR), ocorreram mais de 50 mil desastres naturais no Brasil, principalmente de origem climática, entre 2013 e 2022. Parte desses dados estão agregados no Atlas Digital de Desastres no Brasil, um projeto da Universidade Federal de Santa Catarina, o qual mostra que desastres têm ocorrido em todas as regiões do país.
O levantamento da CNM indica que esses desastres impactaram cerca de 340 milhões de pessoas – alguns brasileiros foram afetados mais de uma vez nesse período – e geraram um prejuízo de mais de R$ 340 bilhões ao setor público e privado. Ou seja, os riscos de desastres climáticos e seus impactos são evidentes, porém, ignorados.
Em 2019, ao perceber que uma forte crise hídrica estava sedimentada no Pantanal e que isso poderia agravar os incêndios na região, a ONG Ecoa emitiu pareces técnicos às autoridades públicas para evitar uma “situação catastrófica” – mas os alertas foram ignorados. “Aí nós chegamos em 2020 com a maior tragédia ambiental que o bioma já viu”, diz Siqueira.
Segundo o biólogo, planos oficiais de combate aos incêndios não estavam preparados e os recursos públicos para essa finalidade eram e ainda são escassos. Aliás, a ONG Ecoa tem ajudado a treinar brigadas comunitárias voluntárias para que comunidades tradicionais pantaneiras possam se proteger e apoiar o combate aos fogos.
A falta de atenção e preparo do poder público em relação aos riscos de desastres climáticos também permitiu que a maior tragédia socioambiental da região serrana do RJ, onde morreram 947 pessoas, ocorresse em 2011. Mesmo assim, a lição não foi aprendida e o desastre se repetiu esse ano.
Segundo Facchetti, que além de pesquisadora da ENSP/Fiocruz é engenheira civil, a região serrana do RJ é propensa a deslizamentos de terra por causa do tipo de solo, entre outras condições ambientais. Ou seja, é “natural” que em dias de chuva forte haja deslizamentos, inclusive as autoridades competentes sabem desses riscos. O que não é natural é que recursos públicos sejam destinados apenas para reconstrução (pós-desastre), e não haja investimentos em prevenção (pré-desastre), diz Facchetti.
“O Governo Federal ainda não assiste de forma eficiente os municípios”, nem na gestão pré- e nem pós-desastres, diz Paulo Ziulkoski, presidente da Confederação Nacional de Municípios (CNM). Segundo ele, isso acaba obrigando as autoridades municipais a realizarem ações aquém do ideal, devido à falta de “suporte financeiro e técnico por parte da União.”
Um levantamento feito pela CNM revelou que o percentual médio de execução do orçamento da União para enfrentamento de desastres naturais foi de apenas 47% entre 2010 e 2022. Mesmo em situação de emergência, “a União raramente disponibiliza a verba necessária solicitada pela cidade afetada”, diz Ziulkoski. Ele aponta ainda outra falha: “a burocracia criada pelo Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil”, que torna o processo de solicitação de recursos e gestão de desastres extremamente moroso.
Facchetti observa que as falhas na reparação de danos, assim como a falta de investimentos em prevenção, aumenta a vulnerabilidade da população e os riscos de novos desastres. “As pessoas [em Petrópolis] estão voltando para as casas nas áreas de risco, porque não têm outra opção” – seja porque ainda não receberam o aluguel social ou não encontraram imóveis disponíveis para alugar. Até mesmo as vítimas do desastre de 2011, muitas ainda não receberam “a devida assistência do poder público”, diz a pesquisadora.
“Ontem, caiu uma chuva [moderada] de noventa milímetros em 24 horas e a cidade ficou um caos. Isso porque as obras de contenção onde houve deslizamentos ainda não foram feitas, então a lama voltou para a rua. Houve alagamentos, porque os bueiros continuam entupidos. Eu não sei o que vai ser de Petrópolis nesse verão se tiver chuva forte”, contou Facchetti.
No Pantanal, a reparação dos danos provocados pela seca e incêndios também não foi feita ainda. Segundo Siqueira, são as organizações da sociedade civil que estão fazendo “aquilo que podem”. A ONG Ecoa, por exemplo, angariou recursos para instalar uma estação de tratamento de água e levar profissionais de saúde para as comunidades mais atingidas pelos incêndios no Pantanal sul-mato-grossense em 2020, porque “não esteve sistematizado nenhum programa de atendimento a esses grupos.”
Pior ainda, “manobras políticas” foram feitas para culpabilizar grupos sociais vulneráveis pelos incêndios no Pantanal, inclusive pelo atual presidente da República – como forma de isentar o governo da responsabilidade sobre o desastre –, contou o biólogo.https://datawrapper.dwcdn.net/LeQPO/3/
Ivo Poletto, sociólogo e assessor nacional do Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental, uma rede formada por diversas organizações da sociedade civil, observa que o agravamento dos desastres climáticos no Brasil nos últimos anos é fruto da “irresponsabilidade” do Governo Federal, pela “falta de políticas coerentes” de preservação ambiental e cuidados à população vulnerável, que é mais afetada pela crise climática. Segundo ele, essa irresponsabilidade vem desde governos passados, mas “no atual governo tem se agravado muito.”
É evidente que o governo do atual presidente e candidato à reeleição, Jair Bolsonaro (PL), desenvolveu ações que não contribuíram para a redução de riscos de desastres climáticos – algumas, inclusive, podem ter agravado os riscos. Os drásticos cortes de verbas de órgãos vinculados ao Ministério do Meio Ambiente, por exemplo, dificultaram a prevenção e combate a incêndios, entre outros riscos ambientais. O Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) foi outra instituição federal que teve o trabalho dificultado devido ao recebimento de verbas insuficientes nos últimos anos.
O plano de governo de Bolsonaro para reeleição apresenta propostas vagas em relação à agenda climática. Uma delas é o “fortalecimento do controle e da fiscalização das queimadas ilegais, do desmatamento e dos crimes ambientais”, compromisso que evidentemente não foi adotado no primeiro mandato. Há menção sobre melhorar a capacidade de adaptação – do agronegócio, apenas – às mudanças climáticas.
O plano de governo do candidato Lula da Silva (PT), que está na liderança da intenção de votos à presidente, também não apresenta propostas específicas. São citados planos de fortalecimento do Sistema Nacional de Meio Ambiente e de instituições vinculadas à Ciência, Tecnologia e Inovação para “o enfrentamento das mudanças climáticas e das ameaças à saúde pública”. Compromissos para reduzir emissões de gás carbônico e ampliar a conservação da biodiversidade são prometidos, mas não há nenhuma menção sobre adaptação climática.
Entretanto, no segundo mandato do ex-presidente Lula, foi instituída pela primeira vez no país uma Política Nacional sobre Mudança do Clima (2009) e o Sistema Nacional de Defesa Civil (2010). Na transição para o governo de Dilma Rousseff (PT), em 2011, foi criado o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, para monitorar e gerar alertas sobre riscos de desastres – embora muitos desses alertas tenham sido ignorados.
Ao que tudo indica, nessa disputa eleitoral está em jogo um plano de governo mais e outro menos “irresponsável” em relação à prevenção e gestão de riscos de desastres climáticos. Resta saber quantos mais desastres ocorrerão até a responsabilidade ser de fato tomada.
Este texto foi originalmente publicado por Mongabay de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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