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Moradores do Arquipélago do Bailique, na foz do Amazonas, instituíram um Protocolo Comunitário para promover a autogestão por meio do fortalecimento da identidade sociocultural. O caminho escolhido foi investir na cadeia produtiva de açaí

  •  Em 2016, o açaí coletado pela Amazonbai, cooperativa local que integra mais de 2 mil pessoas, tornou-se o primeiro do mundo — e até agora único — a obter a certificação FSC.
  • Desafios da produção incluem o crescente processo de salinização das águas que banham o arquipélago, resultado de uma combinação de fatores climáticos e interferência humana na paisagem da região.

Por Carolina Pinheiro, da Mongabay | Dentro da mata de múltiplos verdes, as plantas se tocam carregadas de um frescor denso. Ao som da saracura a sinalizar a maré alta — ou lançante, como chamada aqui —, Josilene Ferreira Lopes debulha os cachos de açaí sobre a lona estendida no chão. A atmosfera ainda quente de sol ilumina os rostos da parentada, reunida para mais um dia de coleta.

“Sou pai de três filhas e dois dos meus genros apanham açaí. Eu também o faço e tenho um filho que já está apanhando bem. Então, trabalhamos juntos. Aqui, a gente cria diversas plantas para manter a mata saudável e variada e, ao mesmo tempo, cultiva o filho do açaí. Cuidamos das mudas e acabamos formando viveiros dentro de cada propriedade”, comenta o marido de Josilene, Manoel Miracy dos Santos Filho, o Miro, agroextrativista e uma das lideranças de Arraiol, a comunidade mais organizada do Arquipélago do Bailique, no Amapá.

Nas 51 comunidades deste arquipélago localizado na foz do Rio Amazonas, os cerca de 10 mil habitantes vêm passando por um processo de retomada de seus territórios. O primeiro passo foi a interlocução entre os moradores na busca de soluções para os problemas locais. A salinização da água doce, a erosão causada pelo aumento dos rebanhos de búfalos, a construção de hidrelétricas e a mudança de curso do Rio Araguari, que deixou de desaguar no mar, tornando-se tributário do Rio Amazonas, são alguns dos impactos ambientais resultantes da intervenção humana sobre o meio.

Em 2013, agricultores, pescadores e extrativistas do arquipélago amapaense se reuniram para instituir o Protocolo Comunitário, cujo objetivo era o fortalecimento da identidade sociocultural como instrumento para a prática de autogestão. E o caminho escolhido para esse fortalecimento foi investir na cadeia produtiva de açaí.

“Estamos falando da conquista de autonomia financeira em regiões que sempre foram exploradas. De ativismo e resistência às mudanças climáticas e sociais em curso. De segurança alimentar e conscientização de que o trabalho precisa acontecer de dentro para fora. Tudo está na comunidade”, reitera o engenheiro florestal Amiraldo de Lima Picanço, presidente da Cooperativa dos Produtores Agroextrativistas do Bailique.

Casa de caboclo em beirada com açaizal integrado a outras espécies da flora amazônica ao fundo. Foto: Maurício de Paiva

Primeiro açaí certificado do mundo

O maior legado do protocolo foi a criação da Amazonbai, cooperativa que contou com a participação efetiva de 36 comunidades. “Na época, foram definidas quatro cadeias produtivas, entre elas as do pescado, óleos vegetais e plantas medicinais. A do açaí foi prioritária por movimentar maior renda, capacitações, boas práticas e manejo de mínimo impacto”, afirma Amiraldo.

Com 128 cooperados em uma dinâmica que integra mais de 2 mil pessoas em todas as comunidades do Bailique, a Amazonbai acumula reconhecimentos: em 2016, seu açaí tornou-se o primeiro do mundo — e até agora o único — a obter a certificação FSC (Forest Stewardship Council). Hoje, possui os selos FSC Manejo Florestal, Cadeia de Custódia e Procedimento de Serviços Ecossistêmicos. Além disso, tem o atestado de Produto Vegano, o Selo Amapá e está em processo de obtenção da certificação orgânica.

O passo adiante — o registro de Identificação Geográfica de Origem (IG) — conta com a parceria do Nutex – Núcleo de Desenvolvimento Territorial Sustentável da Universidade do Estado do Amapá (UEAP). Segundo Gabriel Araújo da Silva,  professor e coordenador geral do projeto Economias Comunitárias Inclusivas, a realização de estudo químico do açaí do Bailique e a organização de dados sobre a qualidade do produto tem como objetivo submeter ao Inpi (Instituto Nacional da Propriedade Industrial) o pedido de registro.

A IG designa um produto pelo seu nome geográfico como originário de uma área delimitada quando comprovado o vínculo do produto com o meio geográfico, pela qualidade ou pelas características atribuídas a esta origem geográfica.

Josilene Ferreira Lopes com cacho de açaí nas mãos durante dia de coleta no Arraiol, comunidade do Arquipélago do Bailique. Foto: Maurício de Paiva

“Fizemos a coleta de 600 amostras de açaí no Bailique, em ilhas do Pará e outras regiões do Amapá, e descobrimos que o perfil químico do açaí do Bailique é diferente. A composição de antocianinas muda e os teores de fenólicos é maior”, explica Silva, referindo-se a substâncias com poder antioxidante presentes no açaí, que atuam contra os radicais livres no organismo.

A área total de açaizais certificados no Bailique é de 2.970 hectares. Na de Miro e Josilene, a produção anual varia de oito a dez toneladas entre consumo e venda. “Eu faço o seguinte: tiro uma parte para a alimentação e vendo todo o açaí da minha área certificada para a cooperativa, o que corresponde a 90% da produção”, conta Miro, explicando que a Amazonbai paga R$ 25,00 a lata do fruto in natura com cerca de 14,5 quilos, mais um acréscimo de R$ 5,00 ao final de toda a operação.

Miro enfatiza também uma das diretrizes definidas pelo protocolo: um projeto político pedagógico de educação com base na alternância. No regime de mutirão realizado pelas famílias durante o manejo e a coleta do açaí, existe a ala dos aprendizes. São jovens e crianças que se dividem entre a escola e a vida na comunidade. “Estamos trabalhando a questão da educação, ou seja, 5% de toda a produção entregue para a cooperativa vai para o projeto da Escola Família. Um sonho que lutamos para realizar”, explica o agroextrativista.

Uma das bases estruturais da Amazonbai é o desenvolvimento local por meio do fortalecimento da educação na zona rural. Para tanto, foi criado um fundo com o propósito de promover a autossuficiência financeira das Escolas Famílias nas regiões em que a cooperativa atua — escolas mantidas pelas famílias da própria comunidade para inibir o êxodo rural. Os 5% das vendas por lata de açaí são destinados à construção das escolas. O trabalho é realizado pela Associação das Comunidades Tradicionais do Bailique (ACTB) em parceria com a Amazonbai. No arquipélago, a mantenedora do fundo é a Associação da Escola Família Agroextrativista do Bailique (Aefab).

Peconheira — como são chamadas as pessoas que escalam a palmeira para a retirada do açaí —coleta dois cachos em área produtiva do Arraiol. Foto: Maurício de Paiva

O mercado do açaí

A cadeia produtiva do açaí e derivados movimenta mais de US$ 720 milhões por ano no mundo, de acordo com boletim publicado pela Companhia Nacional de Abastecimento. O Brasil, considerado o maior produtor do fruto, conta com percentual de mais de 1,5 milhão de toneladas por ano. Nos últimos 6 anos, houve um aumento de 39% do volume de açaí produzido no país, um indicativo de crescimento de cerca de 6,5% ao ano.

É uma equação que beneficia cerca de 150 mil famílias de agroextrativistas e agricultores familiares em quase 200 empreendimentos comunitários na Amazônia, entre cooperativas e associações. A parcela que inclui o princípio da economia baseada na floresta em pé resulta na conservação ambiental e no desenvolvimento social das populações tradicionais – revelando um caminho para o futuro.

A Amazonbai opera de segunda a sábado, o ano todo, entre as regiões do Bailique e Beira Amazonas. Sua central de beneficiamento se localiza no porto de Matapi, em Macapá (AP), e foi inaugurada em dezembro de 2021. O presidente da cooperativa comenta sobre o volume de produção: “São 36 toneladas de açaí processado por mês e 480 por ano, em um total de 20 mil litros de polpa produzida durante a safra e entressafra”.

Segundo a gestora ambiental Mariana Chaubet, do Instituto InterElos, o principal desafio em relação ao açaí foi, e ainda é, a comercialização e o acesso a mercados de maior valor agregado. “Existia uma expectativa de que o açaí de manejo certificado seria valorizado e isso não ocorreu conforme o esperado. Foi quando desenvolvemos, em 2020, estudos para entender e posicionar a marca da cooperativa no mercado e, na sequência, em 2021, a Amazonbai realizou o planejamento estratégico para os próximos 10 anos, o qual vai orientar todas as ações da cooperativa”, ratifica.

Amiraldo confirma: “Acabamos entrando em disputa com outras empresas, megacorporações, que não têm as certificações que a Amazonbai possui. Tudo está em conseguirmos um valor agregado ao nosso produto. Esta sempre foi a maior dificuldade. Precisamos criar meios de atingir redes de varejo e mercados de nicho, além de diversificar a produção. Avaliamos agora a viabilidade de fabricação do açaí liofilizado e do sorbet”, diz.

Mapa do Arquipélago do Bailique com as áreas certificadas. Imagem: Lab. Geoprocessamento/NUTEX/UEAP

Açaizais em risco na região costeira

No caso da Amazônia, a ideia de patrimônio natural não pode se separar da ideia de patrimônio cultural. Paisagem também é patrimônio – herança das práticas de manejo das populações tradicionais. Dentro de um cenário no qual as demandas referentes ao processo de degradação na floresta crescem, a problemática que gira em torno do aumento gradual de fluxo da água salgada no estuário do Rio Amazonas abriu debate entre comunidades locais.

Um estudo realizado pelo Núcleo de Desenvolvimento Territorial Sustentável da UEAP em parceria com a Amazonbai, ainda não publicado, levanta a hipótese de que a maior incidência de fenólicos no açaí do Bailique pode estar relacionada com a variedade existente nas ilhas e com a influência da água salgada. Comprovou-se que todas as amostras são da espécie Euterpe oleracea, mas há diversos tipos devido a mutações e melhoramentos que ocorreram nas palmeiras do território. Com o passar do tempo, a soma do manejo humano aos aspectos evolutivos que permeiam o ambiente amazônico gerou agroflorestas.

Silva esclarece que há um porém. “O fenômeno natural de salinização durante todo o período de formação da floresta nos trouxe ao contexto atual. No entanto, o processo de salinização abrupto que está em curso pode ser prejudicial porque as monções salgadas duravam uma semana, adubavam o solo e pronto. Hoje é diferente. No ano passado, durou quatro meses em algumas localidades. A salinização do mar tem chegado até Vila Progresso, algo absolutamente inédito”, afirma.

Coleta de açaí na comunidade do Arraiol, no Arquipélago do Bailique. Foto: Mauricio de Paiva

Entre os fatores que causam o desequilíbrio estão a diminuição da vazão do Rio Araguari e o consequente avanço da água do mar sobre o arquipélago, fenômenos provocados por um misto de alterações climáticas e interferência humana — como a construção de usinas no Araguari e a criação de búfalos.

A Geosat, empresa europeia que opera junto aos cientistas do Nutex – Núcleo de Desenvolvimento Territorial Sustentável, forneceu imagens de satélite, desde 1999, da área que engloba toda a foz no Amapá, de Macapá a Sucuriju. “Vamos analisar o quanto de sal entrou no Bailique nas últimas décadas e de que forma exerceu ação na copa dos açaizeiros”, explica Silva. “A pergunta é: a salinização vai acabar ou não com o açaí? Precisamos entender se o descontrole do fenômeno vai influenciar a cultura ou não. Se o resultado for positivo, buscaremos clones que sejam resistentes; se não, incentivaremos a manutenção do manejo da forma como ele já é feito pelas comunidades.”

De acordo com o relatório do The Science Panel for the Amazon (SPA), a formulação de estratégias de conservação florestal é prioridade para a manutenção e restauração dos 83% de Floresta Amazônica não perturbada que restam e das diversidades biológicas e culturais associadas. Os mecanismos incluem aplicação da lei dentro e fora das áreas protegidas, integração de Unidades de Conservação e sistemas agroecológicos em cadeias de abastecimento sustentáveis, incentivos para restaurar áreas degradadas, engajamento da sociedade civil, e novas formas de governança ambiental e de recursos.


Este texto foi originalmente publicado por Mongabay de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.


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