A produção mundial de biocombustíveis para transportes, como o biodiesel, o etanol celulósico e o óleo vegetal hidratado (HVO, na sigla em inglês), deve cair este ano pela primeira vez em duas décadas por força do impacto da pandemia da COVID-19 na atividade econômica, na circulação de pessoas e no preço do petróleo.
Os incentivos à rápida recuperação e aceleração do setor, que foi um dos mais afetados pela crise, podem contribuir para a retomada do crescimento econômico mundial, criar milhões de empregos e conter as emissões globais de dióxido de carbono (CO2).
As estimativas são de um plano de recuperação sustentável do setor, elaborado pela Agência Internacional de Energia (IEA) em parceria com o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Algumas projeções do plano foram apresentadas por Paolo Frankl, líder da divisão de energias renováveis da IEA, durante um evento on-line realizado no dia 15 de outubro pela Plataforma Biofuture – consórcio formado por 20 países, incluindo o Brasil, com o objetivo de fomentar soluções de transporte de baixo carbono e a bioeconomia. O evento teve o apoio do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (BIOEN) e integra a programação da Brazilian Bioenergy Science and Technology Conference (BBEST) 2020.
“Estimamos que a produção mundial de biocombustíveis para transporte registre uma queda de dois dígitos este ano, a primeira em duas décadas”, afirmou Frankl.
De acordo com dados da IEA, a produção global de biocombustíveis para transporte atingiu em 2019 o recorde de 162 bilhões de litros, ou 2,8 milhões de barris por dia. Para 2020, estima-se que a produção tenha uma queda de 20 bilhões de litros (13%), voltando aos níveis de 2017.
Antes do início da pandemia de COVID-19 era previsto que a produção aumentasse em mais de 5 bilhões de litros (3%) este ano. A retração da atividade econômica, no entanto, atingiu fortemente o setor de transporte, resultando em queda da demanda e, por conseguinte, no barateamento da gasolina e do diesel.
“A queda de preço do petróleo, em razão do aumento da oferta e da diminuição da demanda, está impactando a competividade dos biocombustíveis”, afirmou Frankl.
A implementação do plano de recuperação sustentável do setor pode impulsionar o crescimento econômico global em uma média de 1,1% ao ano. Além disso, poderia salvar ou criar cerca de 9 milhões de empregos por ano, apontou o especialista.
“A bioenergia é uma das indústrias de energia mais intensivas em mão de obra e emprega cerca de 3 milhões de pessoas em todo o mundo. Além disso, registra o segundo maior número de empregos criados por milhão de dólares gastos, particularmente em economias emergentes, as mais atingidas pela crise causada pela pandemia”, afirmou Frankl.
A recuperação da produção de biocombustíveis para transporte também pode fazer com que o pico das emissões globais de CO2, atingido em 2019, não seja superado, avaliou o especialista.
Um relatório da IEA divulgado em fevereiro apontou que as emissões globais de CO2 permaneceram estáveis em 2019 em, aproximadamente, 33,3 bilhões de toneladas – o mesmo valor de 2018.
“Focar apenas na descarbonização do setor de energia não é suficiente para atingir as metas climáticas porque corresponde só a um terço do que precisa ser feito para chegar a zero a emissão líquida de CO2 em 2050 ou um pouco mais tarde, em 2070”, disse Frankl.
A solução para a descarbonização do setor energético também não é única. É preciso adotar um grande portfólio de tecnologias de energia limpa e triplicar o uso da bioenergia moderna, combinando com soluções de captura e armazenamento de carbono. Dessa forma, seria possível reduzir em 20% as emissões anuais, ponderou Frankl.
“É necessário aumentar rapidamente o uso de biocombustíveis e de biogás. No setor de transportes, o aumento do uso de biocombustíveis líquidos tem sido fenomenal, mas ainda é necessário quadruplicar e ampliar muito o uso no setor de transporte marítimo e na aviação”, avaliou.
As projeções da IEA indicam que os biocombustíveis, o hidrogênio e combustíveis sintéticos à base de hidrogênio podem atender até 20% da demanda global de energia em 2070, particularmente em áreas onde a eletrificação direta é difícil.
Para incentivar a implementação de políticas e programas de recuperação e aceleração da bioeconomia pós-COVID-19, os 20 países-membros da plataforma Biofuture propuseram cinco princípios.
Um deles é que os países não devem retroceder em relação às metas estabelecidas antes da pandemia de promover os biocombustíveis e a bioeconomia em suas economias. Outro princípio é reavaliar os subsídios aos combustíveis fósseis.
“Agora, com os preços do petróleo em baixa, é o momento ideal para fazer reformas e eliminar gradualmente os subsídios aos combustíveis fósseis”, avaliou Frankl.
Os princípios não são obrigatórios e prescritivos e os países-membros da plataforma podem implementá-los de acordo com iniciativas de sustentabilidade e programas de recuperação econômica mais amplos.
“Os princípios não são vinculantes, o que significa que não são tratados formais e a aplicação não é obrigatória. A intenção deles é orientar políticas para indicar direções que os países devem seguir ou evitar para diminuir os efeitos negativos da pandemia de COVID-19, especialmente no setor de bioenergia, e tirar o melhor proveito disso”, explicou Renato Godinho, chefe da divisão de promoção de energia do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.
Vários países, contudo, já implementaram ou estão considerando efetivar novas políticas alinhadas com os princípios. Entre eles, estão o Brasil, com o programa RenovaBio, e o Canadá, com o programa Clean Fuels Standard.
“O governo do Canadá considera a bioenergia um componente-chave do plano para atingir as metas climáticas do país para 2030 e atingir zero emissões líquidas de CO2 em 2050, mas ainda temos muito trabalho a fazer”, disse Devin O’Grady, gerente da divisão de combustíveis limpos do Departamento de Recursos Naturais do Canadá.
“Menos de 5% da energia utilizada no país hoje é proveniente de bioenergia ou de outras fontes de combustíveis de baixo carbono, que estimamos que podem abastecer 60% da nossa economia”, afirmou O’Grady.
Outros países, como a Índia, também estabeleceram metas ambiciosas. O país planeja expandir o uso de bioenergia, incluindo 10% de etanol na gasolina até 2022 e 20% até 2030.
“Há uma alta demanda por energia na Índia por conta do crescimento do transporte e do setor petroquímico. Mas estabelecemos o compromisso de crescer por meio de energia limpa. Queremos reduzir as importações de carvão substituindo-o por energia renovável”, disse KK Jain, diretor executivo do Centro para Altas Tecnologias do Ministério do Petróleo e Gás Natural da Índia.
Já a França anunciou um pacote de apoio econômico para o setor de aviação que incorpora metas sustentáveis de combustível para aviação.
“O objetivo do pacto é apoiar a pesquisa e inovação na indústria aeronáutica no país de modo que a França continue a ser um dos líderes em tecnologias aeronáuticas ‘verdes’”, explicou Robert Mauri, vice-diretor de transporte aéreo sustentável do Ministério da Transição Ecológica da França.
A América Latina e a África também apresentam grandes oportunidades de expansão da produção de bioenergia, conforme indicou um estudo sobre a sustentabilidade da bioenergia global elaborado por pesquisadores vinculados ao BIOEN para o Comitê Científico para Problemas do Ambiente (Scope, na sigla em inglês – agência intergovernamental associada à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) – destacou Glaucia Mendes Souza, professora do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP) e membro da coordenação do Programa BIOEN.
“A América Latina e a África podem se beneficiar muito da produção de bioenergia e passar a fornecer biocombustíveis e outras opções de energia renovável”, avaliou.
Integrar mecanismos de recompensa de sustentabilidade em estruturas políticas, que incorporem externalidades positivas na produção e uso de biocombustíveis, produtos químicos e materiais, é fundamental para estimular o mercado de bioenergia, apontou IIkka Räsänen, relações públicas da petrolífera finlandesa Neste.
A Alemanha e a Suécia, por exemplo, estabeleceram cotas de redução de gases de efeito estufa. Já a Finlândia estabeleceu alíquotas de impostos mais baixos para biocombustíveis obtidos a partir de resíduos.
“O regime tributário finlandês estabeleceu um imposto mais baixo para biocombustíveis de base lignocelulósica”, explicou Räsänen.
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