Por Tabita Said, do Jornal da USP | Estes são assuntos de investigações científicas que já trouxeram a público algum entendimento sobre fauna, flora e eventos de extinções em massa. Mas quem lê pesquisa, não vê pesquisador! E as três pesquisas científicas descritas acima são desenvolvidas na USP por pesquisadores negros e de origem periférica.
Para registrar a presença de negras e negros em espaço de produção de conhecimento, o Programa de Pós-Graduação em Ecologia do Instituto de Biociências (IB) da USP lança o projeto Narrativas e Experiências Negras na Ecologia. A iniciativa é das cientistas Natalia Vieira e Mariana Inglez, duas biólogas negras “que ansiavam compartilhar as vivências e narrativas das suas e dos seus, tão poucas vezes ouvidas em ciências ambientais, tendo a oportunidade de celebrá-las em vida”.
Com vídeos e textos, o material resgata diferentes trajetórias de personagens representando, cada um, recortes temporais e a passagem de gerações que acessaram a Universidade, apesar das adversidades. A princípio, uma professora, um pesquisador e uma estudante de graduação retratam os eixos: ancestralidade, identidade e legado. Mas os registros visam a compor uma trajetória imagética afrocentrada com foco em discentes, docentes e também funcionários do IB.
Mais do que discorrer sobre os inúmeros desafios que estes cientistas enfrentaram e enfrentam durante sua formação acadêmica, os vídeos evidenciam a contribuição que visões não dogmáticas podem agregar ao pensamento científico.
É com base na simbologia Sankofa que esse projeto se estrutura. Sankofa representa uma ave que tem a cabeça voltada para trás e carrega em seu bico um ovo. “O ovo simboliza o novo, o afrofuturo que estamos construindo. É urgente que pessoas negras possam criar imagens positivas para si, subvertendo o lugar de dor e de não pertencimento”, explicam as idealizadoras.
Abrindo os caminhos para novas gerações, o projeto entrevista a pesquisadora, mãe e professora do Instituto de Geociências (IGc) da USP Adriana Alves, que inaugura a série de vídeos reconstruindo o ambiente acadêmico segundo sua própria história. A geóloga de formação é quem tem a ambiciosa e criativa pesquisa que busca compreender a relação entre vulcanismo e eventos de extinção em massa.
Na USP desde 1999, Adriana conta que nesta época não havia negras e negros suficientes para tensionar o ambiente, como vem ocorrendo atualmente. O que, para ela, é natural e positivo. “Por um lado, porque estimula o debate, estimula a USP a sair daquele lugar confortável em que ela se encontrou por décadas.” Para a pesquisadora, pessoas de diferentes estratos raciais e econômicos trazem consigo uma experiência muito distinta de vida e novas possibilidades de ver o mundo. “Por outro lado, isso é feito à custa de muito sofrimento dessas pessoas que chegam”, lembra. Coordenadora de uma das diretorias da nova Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento da USP, Adriana diz que busca um “middle ground“; uma vivência que seja boa para todos. “Não é o mesmo espaço ocupado por novas pessoas, não. O espaço também tem que se recriar, tem que se moldar”, afirma.
Antigo residente da região de Embu-Guaçu, extremo da Zona Sul da Grande São Paulo, Lucas Nascimento, o Taio, ingressou como estudante na USP em 2011. A caminhada que o trouxe até aqui, hoje no doutorado, começou aos 14 anos. “Meu sonho era ser carteiro, mas eu sempre fui apaixonado pela vida. Eu fazia gaiola no meu primeiro trampo, mas eu tentava esquecer para que elas eram feitas. Odiava passarinho na gaiola, mas era o que eu tinha pra ajudar em casa”, conta o doutorando que, não por acaso, estuda a evolução da coloração de aves frugívoras; ou seja, como a dieta das aves influencia em sua coloração. No mestrado, a pesquisa de Taio apontou que interações entre palmeiras e grandes mamíferos extintos podem explicar a relação entre tamanho de frutos e espinhos nas linhagens de palmeiras.
Após quatro anos de cursinho e vivenciando o deslocamento na nova comunidade, o biólogo acredita que sua vivência periférica pode fazer nascer uma nova ciência. “Por exemplo, como é viver sem água na periferia de São Paulo? A galera quase não pensa nisso porque não conhece esse problema.” O pesquisador atenta para o fato de a diversidade na academia refletir um “Brasil de verdade”, e salienta que esta representatividade pode influenciar a capacidade da academia de fazer divulgação científica. “Quando a gente se reconhece, a gente ouve melhor; quando ouve melhor, conseguimos discutir melhor. E assim a gente avança”, afirma.
A Universidade veio costurar memórias e desejos, até então paralelos na vida de Jady Millan. A proximidade e o amor pelo mar, a estudante de 23 anos herdou do avô, morador de uma região litorânea. A curiosidade pela natureza a levou por um caminho de busca até a realização do sonho que, segundo ela, levou mais tempo para se concretizar do que a maioria dos colegas de curso. “Quando eu descobri que existia um curso de biologia, desde então eu quis ser bióloga”, diz. Para a estudante da graduação em Biologia, questões raciais e ambientais são indissociáveis. E é essa abordagem que Jady pretende estudar em sua carreira acadêmica.
A temática ambiental, inclusive, está presente na formação atual da estudante. Jady participa de um laboratório que estuda as mudanças climáticas globais atreladas às potencialidades da educação ambiental. Segundo ela, as vivências das pessoas negras podem contribuir para o amadurecimento da discussão e para elaboração de políticas públicas mais efetivas. A estudante estende a reflexão para o ambiente acadêmico: “Para mim, as políticas públicas são importantes justamente por causa do acolhimento, para sentir mais pertencente ao lugar. Quando eu entrei na USP, não tive que sofrer tanto quanto as pessoas que já estavam aqui antes, já pude ser acolhida por outras pessoas negras”, afirma.
O projeto Narrativas e Experiências Negras na Ecologia nasceu no primeiro programa de pós-graduação da USP a adotar ações afirmativas, fora das ciências humanas. O Programa de Pós-Graduação em Ecologia (PPGE), do Instituto de Biociências da USP, passou a adotar a reserva de vagas para grupos socialmente marginalizados em 2021. Mantendo o conceito 7 no nível de avaliação da Capes – grau de excelência internacional e representando uma referência na área – o programa vem assistindo ativamente ao processo de mudança no perfil do alunado. “Um processo muito interessante, porque foi convocado por coletivos, em especial o Coletivo Negro Bitita, do IB, com quem construímos coletivamente. Não teríamos conseguido fazer a reserva de vagas sem eles”, conta Paulo Inácio Prado, coordenador do programa e apoiador do projeto, que teve coordenação da professora Renata Pardini.
Na vanguarda da inclusão, o PPGE também adotou internamente uma banca de heteroidentificação, por meio de uma Comissão Permanente de Ações Afirmativas, para pessoas autodeclaradas negras (pretas ou pardas). Para ajudar as pessoas que se candidataram às vagas reservadas e supranumerárias, o PPGE criou, ainda, um cursinho preparatório para o exame de ingresso no mestrado e no doutorado em Ecologia. Somando-se à reserva de 50% das vagas para pretos, pardos e indígenas (PPI), o programa destina, ainda, vagas adicionais a pessoas com deficiências, pessoas trans e pessoas de comunidades tradicionais que tenham sido aprovadas com nota que não garanta sua classificação dentre as vagas iniciais.
Dia 29 de setembro, o PPGE fez o lançamento e apresentação do projeto. O evento foi realizado no Anfiteatro Geral da Botânica, no IB, às 17 horas, com transmissão ao vivo pelo youtube. Estavam presentes a professora e pesquisadora Najara Costa e a cofundadora do Movimento Negro Unificado, Regina Santos. O evento é promovido pelo PPG Ecologia, Comissão de Extensão, Comissão IB Acolhe, IB Mulheres e GT de Inclusão e Pertencimento, todos do IB.
“O projeto traz luz às vivências, sonhos e desafios enfrentados dentro do ambiente acadêmico e também representa a nossa forma de homenagear pessoas negras que pavimentaram o caminho que trilhamos anos depois, além de nos provocar a refletir sobre o legado que estamos construindo para as gerações seguintes”, explicam Mariana e Natalia.
Doutoranda no Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva do IB e coordenadora do projeto Evolução para Todes, Mariana tem investido em atividades de divulgação científica multimídia para redes sociais. Seu objetivo é popularizar a ciência e torná-la mais inclusiva e atrativa.
Formada em Ciências Biológicas, Natalia Vieira tem atuado como educadora em tempo integral. Atualmente tem pesquisado sobre o ensino de Ciências a partir de uma perspectiva afrocentrada e das relações étnico-raciais. É cofundadora do Coletivo Negro Bitita, do IB, com experiência de ensino também em espaços de educação não formal.
Este texto foi originalmente publicado pelo Jornal da USP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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