O projeto Poço de Carbono Florestal Peugeot-ONF, implantado há mais de 20 anos no noroeste do Mato Grosso, vem demonstrando resultados significativos de restauração ecológica e sequestro de carbono no meio do Arco do Desmatamento
Por Marina Martinez em Mongabay Brasil | Com a proposta de restaurar 2 mil hectares de pastagem degradada, o projeto foi certificado pela Verra para redução de emissões de carbono, já tendo sequestrado 394.400 toneladas de CO2 até o momento, o equivalente a 85 mil carros retirados das estradas por um ano. Essa redução está sendo negociada como crédito de carbono no mercado online Pachama.
Hoje, a Fazenda São Nicolau, no município de Cotriguaçu, sede do projeto, é um laboratório vivo que documenta a dinâmica de restauração florestal e captura de carbono na Amazônia. A fazenda também oferece ecoturismo, treinamento e oportunidades educacionais.
Entretanto, o contexto sociopolítico volátil do Brasil apresenta grandes riscos para o projeto. As ameaças incluem uma onda crescente de crimes florestais na região, além de regulamentações ambientais enfraquecidas e propostas controversas de desenvolvimento para o bioma amazônico.
Em 1999, um grupo de organizações francesas e brasileiras se uniram para enfrentar o avanço do pasto e da monocultura nas bordas da Amazônia. A ideia: um projeto inovador de reflorestamento e sequestro de carbono em uma antiga fazenda de gado no município de Cotriguaçu, no Mato Grosso, no coração do Arco de Desmatamento, introduzindo práticas ambientalmente corretas de uso da terra.
Apesar dos contratempos ao longo do caminho, o projeto Poço de Carbono Florestal Peugeot-ONF hoje está prosperando, e tem muitas lições – além de métodos científicos consistentes – a oferecer como exemplo a outras iniciativas. Desde sua criação, 2 mil hectares de pastagem degradada foram reflorestadas com cerca de 50 espécies de árvores amazônicas.
A implantação do projeto foi financiada pela fabricante de automóveis francesa Peugeot e pelo Escritório Nacional de Florestas da França (ONF, na sigla em francês), uma empresa estatal. Esta iniciativa de 23 anos é gerenciada hoje pela ONF Brasil, e recebe apoio técnico de cientistas da Universidade Federal de Mato Grosso, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e do Centro de Cooperação Internacional em Pesquisa Agronômica para o Desenvolvimento, entre outras instituições.
Testando o conceito
Inicialmente, o projeto Peugeot-ONF no Brasil tinha como objetivo testar o conceito de poço de carbono florestal, um Mecanismo de Desenvolvimento Limpo lançado pelo Protocolo de Quioto, primeiro acordo internacional a estabelecer compromissos para países desenvolvidos reduzirem suas emissões de gases de efeito estufa. Com seu amadurecimento, o projeto tornou-se um laboratório vivo para observar a dinâmica de restauração florestal e captura de carbono na Amazônia.
“É um experimento de regeneração florestal sem precedentes, e nós estudamos ele por isso”, diz Thiago Izzo, professor do Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Conservação da Biodiversidade da Universidade Federal de Mato Grosso. Izzo é acompanhado regularmente por outros professores universitários que ministram cursos de campo na Fazenda São Nicolau, onde está implantado o projeto.
A regeneração de florestas naturais pode ajudar a restaurar serviços ecossistêmicos vitais, como água potável e solos saudáveis; melhorar a biodiversidade; e criar empregos de qualidade em áreas rurais pobres — além de combater as mudanças climáticas. A Fazenda São Nicolau oferece exemplos reais desses benefícios.
Um estudo recente publicado na revista Nature revelou que a regeneração de florestas naturais pode capturar uma taxa ainda maior de emissões de carbono do que a estimada anteriormente pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da Organização das Nações Unidas (ONU).
Restauração ecológica
Na Fazenda São Nicolau, o esforço de duas décadas para reflorestar uma área do tamanho de quase quatro mil campos de futebol criou um novo habitat e um corredor ecológico para a vida selvagem amazônica.
“É nítido que a restauração da área está trazendo de volta a biodiversidade”, diz Izzo. “Várias espécies de polinizadores importantíssimos para a agricultura [como abelhas e vespas nativas] estão se restabelecendo lá, fazendo ninhos. Também já encontramos uma variedade incrível de mamíferos como macacos, antas e onças passando por lá.”
Dezenas de estudos conduzidos por pesquisadores de instituições nacionais e internacionais foram realizados na fazenda ao longo dos anos. Um destes estudos mostrou que o reflorestamento de 2 mil hectares, feito com mais de 2 milhões de árvores de uma ampla gama de espécies amazônicas, atingiu, em apenas dez anos, um nível de biodiversidade muito mais parecido com o da floresta nativa que com a pastagem degradada que existia anteriormente.
Mas em algumas das parcelas, onde foram plantadas árvores de teca (Tectona grandis), a restauração da biodiversidade não correu tão bem, diz Izzo. É porque as árvores de teca são “alelopáticas”, ou seja, produzem uma substância química que impede que outras plantas cresçam ao seu redor. Além disso, por ser uma espécie exótica, a teca tem “uma característica incomum comparada às plantas amazônicas”; perdem folhas durante parte do ano, criando um ambiente muito seco, que não é ideal nem para a fauna endêmica nem para a resistência ao fogo, explica o professor.
Estelle Dugachard, agroeconomista e diretora da ONF Brasil, explica porque vários parceiros do projeto concordaram com o plantio de teca: o plano era testar se o cultivo e venda dessa espécie de madeira poderiam ser economicamente vantajosos, além de criar um experimento controlado para medir a diferença no armazenamento de carbono entre espécies madeireiras exóticas e nativas.
A teca, única espécie exótica introduzida na área do projeto, foi plantada separadamente das demais e em aproximadamente 150 hectares, menos de 10% da área total reflorestada. Após a colheita, novas árvores de teca ou outras espécies madeireiras serão plantadas nessas parcelas , diz Dugachard.
Combinar várias técnicas de restauração florestal dentro de uma mesma área, cada uma apresentando diferentes benefícios associados, é uma estratégia eficaz, segundo Mariana Oliveira, gerente do Programa Florestas, Uso da Terra e Agricultura do instituto de pesquisa WRI Brasil. A Regeneração Natural Assistida (RNA) é a técnica mais utilizada na área do projeto Peugeot-ONF. Ela consiste no plantio de árvores nativas do bioma local, com pouca intervenção humana posteriormente. Essa técnica gera enormes benefícios ambientais, incluindo uma grande quantidade de captura de carbono, com baixos custos de manutenção. Mas o retorno financeiro dessas terras restauradas também acaba sendo baixo.
Por outro lado, as técnicas silviculturais ou agroflorestais, que combinam a exploração de produtos madeireiros ou não madeireiros com a conservação florestal, podem gerar benefícios ambientais significativos, embora menores em relação a RNA, mas com maior potencial de retorno financeiro.
Esse aspecto financeiro é importante por dois motivos, diz Oliveira. Primeiro, porque a sustentabilidade financeira é um fator determinante para o sucesso e a longevidade dos projetos de restauração, além de ajudar a gerar empregos e apoiar as economias rurais locais. Em segundo lugar, porque ajuda a preservar florestas nativas, ao suprir a crescente demanda por madeira nos mercados interno e externo com árvores manejadas de forma sustentável.
Sequestro e comércio de carbono
O projeto Poço de Carbono Florestal Peugeot-ONF, como originalmente concebido, está previsto para durar pelo menos 40 anos, de 1999 a 2039. Em 2011, a iniciativa foi validada pela Verra, uma das certificadoras de compensação de carbono mais utilizadas e confiáveis do mundo, tornando-se elegível para comercializar créditos de carbono no mercado voluntário. Atualmente, está em sua terceira fase de verificação, que será conduzida por uma entidade de auditoria independente credenciada pela Verra.
O projeto mede o estoque de carbono das árvores plantadas utilizando a metodologia recomendada pelo programa Verified Carbon Standard (Padrão de Carbono Verificado, em tradução livre) da Verra e pela UNFCCC (Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, na sigla em inglês), diz Dugachard. “Temos mais de 400 parcelas permanentes, que existem desde o início da certificação do projeto, e medimos todas as árvores nessas parcelas (cerca de 40 mil no total) para monitoramento da biomassa.”
A medição da biomassa é atualmente o método mais recomendado pelos cientistas para calcular o estoque de carbono, diz Paulo Nunes, agrônomo responsável pela estimativa dos fluxos de carbono na área do projeto em sua fase inicial. Ele explica que, antes da certificação do projeto, a medição era feita por meio de uma torre de fluxo de carbono instalada dentro da fazenda; ela media apenas os fluxos de CO2 na atmosfera e outras condições climáticas, fornecendo uma estimativa menos precisa do armazenamento de carbono.
Dugachard diz que a equipe da ONF Brasil monitora a biomassa das árvores plantadas e faz um inventário de carbono anualmente, embora o inventário só seja verificado a cada cinco anos pelos auditores. Este monitoramento anual é feito para “controle de qualidade”, menciona ela. “Afinal, muita coisa muda na floresta em cinco anos.”
Um total de 394.400 toneladas métricas de CO2 já foi sequestrado pelo projeto — o equivalente a 85 mil carros retirados das estradas por um ano — e emitidos como créditos de carbono. Segundo a diretora da ONF, o estoque de carbono aumentou significativamente após os primeiros 10 a 15 anos, à medida que as árvores plantadas atingiram a maturidade, e a regeneração natural da vegetação ganhou força.
Equipe da ONF Brasil medindo a biomassa e elaborando um inventário anual de carbono da área reflorestada, seguindo a metodologia aprovada pela Verra e recomendada pela UNFCCC. Foto: ONF Brasil/divulgação“A quantidade de carbono incorporado em uma área florestal restaurada aumenta à medida que a sucessão vegetacional avança”, diz Euler Nogueira, PhD em Ciências de Florestas Tropicais do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. Ele acrescenta, no entanto, que a capacidade de sequestro de carbono diminui gradualmente depois que o clímax é atingido. Outro ponto de atenção: se ocorrerem grandes perturbações humanas ou naturais na área restaurada, a floresta jovem pode começar a emitir mais CO2 do que sequestra. Um incêndio florestal, por exemplo, poderia desfazer o trabalho da iniciativa da noite para o dia, liberando o carbono armazenado para a atmosfera.
Os créditos de carbono do projeto Peugeot-ONF estão sendo comercializados por meio do Pachama, um mercado online de créditos emitidos por uma entidade certificadora — a Verra, neste caso. A Pachama avalia a integridade dos projetos de sequestro de carbono antes de entrarem em seu portfólio. “Nossa equipe de cientistas florestais usa dados de sensoriamento remoto para identificar quaisquer sinais de corte ou desmatamento e avaliar a adicionalidade de um projeto, declarações de emissões e outros fatores para que possamos determinar a qualidade do projeto”, disse a empresa à Mongabay.
Confirmar a “adicionalidade” de um projeto é fundamental para a integridade ambiental dos mercados de carbono. Se uma atividade de redução de emissões não ocorresse sem um incentivo financeiro, então ela é considerada adicional e elegível para o mercado. O projeto Peugeot-ONF, por exemplo, é adicional porque está usando mecanismos financeiros para recuperar terras degradadas e transformá-las em poço de carbono, o que não aconteceria de outra forma.
O Pachama se recusou a revelar as entidades que já adquiriram créditos de carbono do projeto por meio de seu marketplace. “Por uma questão de política, não divulgamos investimentos de clientes em projetos individuais.”
A receita obtida com a venda dos créditos de carbono está sendo 100% reinvestida na manutenção do projeto, diz Dugachard. Ela disse à Mongabay que essa fonte de receita é muito importante para a sobrevivência do projeto, e foi até essencial durante a pandemia. No período em que a covid-19 se espalhava pelo Brasil, a Fazenda São Nicolau teve que interromper suas atividades econômicas complementares, como o ecoturismo.
“Mas o preço do carbono no mercado internacional ainda não é suficiente para pagar, por si só, um projeto como o nosso”, diz a diretora da ONF Brasil, “até porque a nossa escolha é multiplicar o desenvolvimento de atividades e nosso impacto [social] no território.”
Envolvimento da comunidade
Embora o projeto Poço de Carbono Florestal Peugeot-ONF ainda não tenha a certificação SocialCarbon, a equipe do projeto vem trabalhando para promover impactos sociais positivos na comunidade rural.
Alunos de escolas de ensino fundamental costumam visitar a Fazenda São Nicolau para aprender sobre questões ambientais e o projeto de reflorestamento. Agricultores de comunidades vizinhas também são convidados à fazenda para aprender sobre agroecologia e práticas florestais sustentáveis. Segundo a ONF, cerca de 10 mil pessoas das comunidades locais já participaram dessas atividades.
“Essas atividades de educação ambiental tiveram um impacto muito grande na região. Deram uma oportunidade para as pessoas terem acesso ao conhecimento especializado, o que é raro na região”, diz Nunes, engenheiro agrônomo que vive há anos no Mato Grosso, próximo à Fazenda São Nicolau.
Oliveira, do WRI Brasil, ressalta que, para projetos de restauração funcionarem a longo prazo, é importante que atuem para “melhorar a qualidade de vida nas áreas rurais”, o que caminha lado a lado com garantir que “a população local esteja sendo envolvida e escutada”.
O Assentamento Juruena, uma comunidade formada por agricultores sem-terra, é um dos vizinhos mais próximos da Fazenda São Nicolau. A ONF Brasil estabeleceu um acordo de cooperação com esses agricultores, permitindo que eles coletem castanha-do-brasil na fazenda para complementar sua renda – um gesto incomum na região, mas positivo. Em troca, esses trabalhadores ajudam nas tarefas de manutenção da terra e na vigilância de incêndios, diz Dugachard.
“Inicialmente fizemos um mapeamento do castanhal dentro da fazenda, envolvendo agricultores do assentamento vizinho nesse processo. Depois eles criaram uma associação [Associação de Coletores de Castanha-do-brasil do P.A. Juruena] e agora são eles que fazem o manejo do castanhal na fazenda”, diz Nunes, que atualmente coordena uma rede de apoio a coletores de castanha de pequena escala na região, chamada Sentinelas da Floresta.
Mantendo-se em pé
Embora o projeto Poço de Carbono Peugeot-ONF esteja claramente alcançando resultados bem sucedidos, a iniciativa não é isenta de riscos.
Embora o projeto Poço de Carbono Florestal Peugeot-ONF esteja claramente alcançando resultados bem sucedidos, a iniciativa não está isenta de riscos.
Nos últimos anos, houve um aumento de crimes ambientais no noroeste do Mato Grosso, onde a fazenda está localizada, tal como a invasão de propriedades rurais por madeireiros e garimpeiros ilegais, diz Nunes.
Tudo indica que esse aumento dos crimes foi facilitado pela redução drástica no financiamento das agências de fiscalização ambientalfederais, primeiro sob o presidente Michel Temer, depois com cortes ainda mais drásticos na gestão de Jair Bolsonaro. O orçamento do ano passado para essas agências foi o mais baixo em 17 anos.
Os esforços de proteção ambiental em nível estadual também diminuíram. Nos últimos cinco anos, as autoridades mato-grossenses garantiram impunidade a dois em cada cinco infratores ambientais, inclusive em casos de infrações graves, mostrou um estudo recente. Somente neste ano, 1 milhão de hectares de Floresta Amazônica já foram devastados por incêndios ilegais no estado do Mato Grosso.
“Nossa colaboração com os atores locais nos protege”, diz Dugachard, quando questionada sobre os riscos apresentados à fazenda pela crescente onda de crimes ambientais na região. “Mas são terras onde o próprio poder público tem dificuldade com o comando e controle, então é desafiador.”
Izzo mencionou outra ameaça potencial: há planos para a instalação de uma grande hidrelétrica no Rio Juruena. Se aprovada e construída, a barragem provavelmente inundará Terras Indígenas e áreas produtivas às margens do rio – incluindo partes da Fazenda São Nicolau.
Essas ameaças apontam para um problema inerente a todos os projetos de sequestro de carbono: embora consigam sequestrar uma grande quantidade de carbono ao longo do tempo, esse carbono armazenado pode retornar à atmosfera devido a perturbações ambientais causadas, por exemplo, por instabilidade sociopolítica.
Também há o problema da escala. Para que essas iniciativas capturem quantidades realmente significativas de emissões de CO2 em nível global, reduzindo a ameaça existencial imposta pelas mudanças climáticas, elas precisarão ser ampliadas massivamente – e rapidamente. A esperança é que as lições oferecidas pelo projeto Peugeot-ONF possam ser aplicadas em todo o país e ao redor do planeta.
Este texto foi originalmente publicado pela Mongabay Brasil de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.