Por Sarah Schmidt em Revista Pesquisa Fapesp – Ao ser despejado nos rios, o esgoto doméstico e hospitalar pode carregar o vírus Sars-CoV-2 e resíduos de medicamentos e pôr em risco anfíbios e peixes de água doce, conforme apontam estudos recentes. Assim como já foi detectado em outras cidades mundo afora, a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) encontrou índices elevados do novo coronavírus no esgoto da capital, mesmo em regiões nas quais os casos reportados da doença não estavam especialmente altos.
Diante desse cenário, pesquisadores das universidades de São Paulo (USP), Estadual Paulista (Unesp) e federais de Goiás (UFG), do Ceará (UFC), de Alfenas (Unifal) e do Instituto Federal (IF) Goiano, simularam um ambiente aquático contaminado e avaliaram como pequenas concentrações de fragmentos (peptídeos) da proteína spike (S) do Sars-CoV-2, a principal responsável pela infecção do novo coronavírus em humanos, poderiam afetar a fisiologia desses animais. Os impactos foram avaliados em dois estudos conduzidos pelo mesmo grupo, um com girinos – considerados bons termômetros para observar efeitos nocivos em animais aquáticos – e outro com larvas do mosquito Culex quinquefasciatus, o pernilongo. Ambos apontaram resultados semelhantes. “Os fragmentos de proteína sintetizados em laboratório causaram um estresse oxidativo nesses animais, aumentando a produção de moléculas de radicais livres de uma forma que eles não conseguiram combater”, explica o coordenador dos experimentos, o biólogo Guilherme Malafaia, da UFG e do IF Goiano, campus Urataí.
Com pouco tempo de exposição aos peptídeos, os dois experimentos detectaram alterações. Em um deles, 100 girinos de rã-cachorro (Physalaemus cuvieri) foram mergulhados por 24 horas em diferentes concentrações de fragmentos do novo coronavírus, definidas com base em coletas que o grupo fez entre julho e agosto de 2020 na rede de esgoto de São José do Rio Preto, interior de São Paulo. Em todas as concentrações testadas, os pesquisadores notaram que a exposição aumentou a atividade de enzimas antioxidantes em comparação com animais que não tiveram contato com partes do vírus. Os resultados foram publicados em junho deste ano no periódico científico Journal of Hazardous Materials. Em setembro, o estudo ficou entre os 10 mais baixados do periódico.
Em larvas dos pernilongos, a exposição de 48 horas aos mesmos peptídeos do Sars-CoV-2 causou, além do desequilíbrio oxidativo, mudanças comportamentais. O padrão de locomoção dos insetos foi alterado: ora flutuavam por mais tempo do que costumam, ora ficavam imóveis. Além disso, o sistema olfativo, usado pelas larvas para desviar de substâncias químicas, parece ter sido prejudicado – sinal de alterações neurossensitivas. O estudo aponta que uma das causas pode ser o aumento na atividade da enzima AChE, essencial na transmissão dos impulsos nervosos. “O comportamento animal é importante para a sobrevivência das espécies, e alterações como essas podem afetar sua reprodução, alimentação e habilidade de perceber predadores”, pondera Malafaia. O estudo foi publicado em julho deste ano na revista científica Environmental Pollution.
Apesar dos indícios dos danos, mais estudos são necessários para avaliar se eles permaneceriam no longo prazo. “Não sabemos se o efeito neurotóxico sugerido é reversível ou mesmo transitório”, pondera o farmacologista Ives Charlie-Silva, pesquisador em estágio de pós-doutorado no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, que participou dos experimentos.
O estresse oxidativo visto nos dois modelos animais, ressalta Malafaia, talvez seja o indício mais relevante das pesquisas, porque estudos anteriores já relataram que o Sars-CoV-2 também causa esse tipo reação em seres humanos. Apesar de os girinos e as larvas não serem hospedeiros do novo coronavírus, o patógeno também parece afetar a saúde desses animais. Ainda não se sabe, no entanto, como os peptídeos se ligaram às células dos bichos: se foram absorvidos pela pele, pelos órgãos respiratórios ou ingeridos com a água na qual foram mantidos durante os experimentos.
Além dos impactos causados pelo Sars-CoV-2, o mesmo grupo de pesquisadores investigou outro possível efeito indireto da pandemia da Covid-19 na fauna aquática: o aumento no uso de medicamentos como a azitromicina e hidroxicloroquina – ambos sem eficácia comprovada contra a doença –, cujos resíduos acabam, igualmente, na rede de esgoto. Seguindo o mesmo modelo dos outros experimentos, eles observaram os efeitos dos medicamentos sobre o peixe paulistinha, também conhecido como zebrafish (Danio rerio), e verificaram que os animais expostos por 72 horas aos fármacos, sozinhos ou combinados, sofreram de estresse oxidativo. As concentrações eram seis vezes mais altas em relação às encontradas em estudos anteriores em rios de Portugal e da Nigéria, para simular o aumento do uso dos medicamentos durante a pandemia. “A combinação das duas drogas foi a mais perigosa, indicando potencial dano ao sistema nervoso”, observa Charlie-Silva. Esse conjunto, frequentemente somado à ivermectina, ficou conhecido no que se convencionou chamar de “kit-Covid”, uma forma de tratamento ou prevenção da doença que não se mostrou eficiente. “É inevitável pensar que, para o ser humano, ainda não se sabe quais são os efeitos dessa combinação”, pondera Charlie-Silva. O experimento foi detalhado em um artigo publicado em maio deste ano na revista científica Science of the Total Environment.
O zebrafish, de apenas 3 centímetros (cm) de comprimento, tem uma similaridade genética de cerca de 70% com os humanos e é utilizado como modelo animal para testes de toxicidade de fármacos. “Esses testes são amplamente utilizados em animais do tipo selvagem, mas, para estudos de algumas doenças que afetam seres humanos, é necessário o recurso a animais transgênicos, que conseguem expressar determinadas proteínas humanas”, pondera o biomédico Rodrigo Ureshino, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), campus de Diadema, que coordena pesquisas no biotério de zebrafish e não participou dos estudos. Apesar de o experimento indicar que a combinação de azitromicina e hidroxicloroquina é nociva para os animais, os resultados ainda não permitem dizer se o peixe seria um bom modelo para avaliar a toxicologia de futuros remédios contra a Covid-19. Segundo Charlie-Silva, o vírus não se replica bem no zebrafish selvagem.
O pequeno peixe listrado, no entanto, tem se mostrado promissor como modelo animal experimental para testes de segurança e toxicidade de vacinas contra Covid-19, defende o pesquisador do ICB. Isso porque o zebrafish parece ser capaz de produzir anticorpos contra o Sars-CoV-2 em resposta à inoculação da proteína S, usada na formulação de algumas vacinas contra a doença aprovadas hoje. O peixe também sofre efeitos adversos em vários órgãos, resultado de uma intensa reação inflamatória produzida pelo próprio organismo, similar ao que é observado em casos graves da doença em seres humanos.
Em um estudo coordenado pelo farmacologista em parceria com pesquisadores de diversas instituições do país, eles desenvolveram uma vacina composta por fragmento recombinante da proteína S, que foi injetada em fêmeas adultas do peixe paulistinha. Elas desenvolveram anticorpos, a chamada imunidade humoral, em um intervalo de sete a 14 dias. Os pesquisadores também observaram alterações no sistema nervoso, rins, fígado e ovários de alguns animais, indicando um efeito adverso ao imunizante – quase metade dos animais morreu. A pesquisa foi publicada em outubro de 2020 em versão preprint (sem revisão por pares) no repositório BioRxiv. “Se fosse uma nova candidata à vacina contra a Covid-19, ela seria tóxica – o zebrafish se mostrou uma boa plataforma para essa avaliação”, afirma Charlie-Silva.
No experimento, os pesquisadores notaram que as fêmeas imunizadas passaram anticorpos para os ovos, sugerindo que os animais são capazes de desenvolver imunidade inata ao novo coronavírus. Em outra etapa da pesquisa, eles empregaram técnicas de bioinformática para comparar o receptor humano da enzima ACE2 – que facilita a infecção do vírus – com a proteína correspondente no zebrafish. Os resultados sugerem que o peixe tem uma proteína ACE2 que compartilha 72% de semelhança com a humana.
“Modelos animais podem ajudar a entender como o sistema imune responde à proteína S do novo coronavírus”, observa o biólogo Fausto Ferraris, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que participou do experimento com Charlie-Silva. “Como ele apresenta reação inflamatória e tem o sistema nervoso acometido, o zebrafish parece funcionar até melhor do que os roedores, porque, nesse caso, já apresenta alguns padrões de resposta inflamatória semelhante ao que se vê em pessoas”, conclui Ferraris.
Após a publicação do artigo, Charlie-Silva foi convidado pela editora Springer Nature a escrever um capítulo sobre o tema em um livro sobre vacinas contra Covid-19. “Nele, mostramos a semelhança entre os sistemas imunes adaptativo e inato do zebrafish e dos seres humanos”, conta ele, que elaborou o texto com o médico veterinário Marco Antonio de Andrade Belo, da Unesp, campus Jaboticabal, que também participou do estudo da vacina. O livro deve ser lançado este mês.
Na publicação, os pesquisadores também fazem uma revisão de outras vacinas que já foram testadas em zebrafish. “Existem testes com esses peixes para imunizantes contra tuberculose e zika”, ressalta Charlie-Silva. Antes da pandemia ele já estudava o peixe listrado como modelo para avaliar a toxicidade de substâncias contra o câncer. A ideia de lançar mão do animal como plataforma para combate à Covid-19 surgiu em abril de 2020, quando ele participou de um desafio de Hackathon virtual para o qual desenvolveu um aplicativo de celular que consegue ler testes de Covid-19, assim como um teste que detecta anticorpos retirados de extratos de ovos das fêmeas de zebrafish imunizadas.
“O zebrafish é muito versátil e se desenvolve rápido. Ele se reproduz em 24 horas e cada fêmea pode gerar 200 ovos”, informa o farmacologista. Ele ressalta que, ao adotar o peixe listrado como modelo animal, é possível economizar espaço, dinheiro – uma vez que são mais baratos de manter que camundongos – e acelerar os testes de segurança e toxicidade de vacinas, inclusive contra Covid-19.
Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original.
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