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Mesmo proibidos no país, dispositivos são usados por uma parcela da população jovem, com idades entre 18 e 34 anos

Por Suzel Tunes em Pesquisa Fapesp | Em 6 de julho, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) manteve a proibição da importação e venda no Brasil dos chamados dispositivos eletrônicos para fumar (DEF), mais conhecidos como cigarros eletrônicos ou vapes. A interdição existe desde 2009, mas inúmeros sites na internet vendem esses aparelhos no país por preços a partir de R$ 50, além de camelôs e até lojas físicas. O consumo de cigarros eletrônicos é mais frequente entre os jovens brasileiros, ainda que em níveis mais baixos do que ocorre nos países que legalizaram a venda do produto para adultos, como Estados Unidos e Reino Unido.

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É o que constata estudo dos epidemiologistas Neilane Bertoni e André Szklo, do Instituto Nacional do Câncer (Inca), do Rio de Janeiro, publicado em julho de 2021 no periódico científico Cadernos de Saúde Pública. O trabalho analisou a prevalência de uso dos DEF nas 26 capitais brasileiras e no Distrito Federal e verificou que cerca de 80% das pessoas que já consumiram cigarros eletrônicos têm entre 18 e 34 anos. “Observamos que um em cada cinco jovens de 18 a 24 anos já fez uso desses dispositivos na vida. O público-alvo dos fabricantes não é o adulto. Aditivos com sabores adocicados são colocados no produto para atrair os jovens”, comenta Bertoni. “Entre os indivíduos de 35 anos ou mais, menos de três em cada 100 usam cigarros eletrônicos.” Nos Estados Unidos, os legisladores têm apertado o cerco contra os fabricantes com o intuito de proibir ou restringir a oferta de cigarro eletrônico com gosto de doces e frutas.

Os pesquisadores utilizaram dados coletados pelo Ministério da Saúde por meio da pesquisa telefônica Vigitel (Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico) de 2019. Foram entrevistados 52.443 indivíduos de 18 anos ou mais. Com base nesses números, eles estimam que 6,7% dos adultos nas capitais experimentaram os cigarros eletrônicos e 2,3% fazem uso atualmente do produto no país. No total, estima-se que 2,4 milhões de indivíduos tiveram contato com esses dispositivos e 835 mil fumam cigarros eletrônicos.

Os Estados Unidos respondem por pelo menos um terço do faturamento do mercado global de cigarros eletrônicos, um setor que deve movimentar cerca de US$ 22 bilhões neste ano. A partir de 2014, o vape se tornou o produto à base de nicotina preferido por alunos norte-americanos de 14 a 18 anos, de acordo com dados dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos. Nos dois últimos anos, o consumo entre os alunos das escolas do país começou a cair nessa faixa etária, embora ainda se mantenha em níveis expressivos, com mais de 2 milhões de usuários regulares. A mais recente pesquisa anual do CDC, realizada em 2021, sobre o consumo de tabaco entre os alunos do High School, correspondente ao ensino médio brasileiro, indicou que 11,3% dos estudantes usaram cigarros eletrônicos nos últimos 30 dias antes da entrevista. Em 2019, essa taxa representava 27,5% dos alunos e em 2020, 19,6%.

Como trabalhos realizados no exterior, o estudo feito por Bertoni e Szklo evidencia um detalhe preocupante: mais da metade dos indivíduos que experimentaram os DEF nunca tinha fumado cigarro convencional anteriormente. O dado indica que o cigarro eletrônico pode significar a entrada para o tabagismo de novas gerações de brasileiros. Além de viciar, a nicotina, ingrediente quase universal nos cigarros eletrônicos, pode afetar o desenvolvimento do cérebro, principalmente dos adolescentes. Isso sem falar nos possíveis malefícios que os outros componentes dos vapes podem acarretar.Alexandre Affonso

Um artigo de revisão sistemática, feito por outra equipe de pesquisadores do Inca e publicado em dezembro de 2021 na revista Ciência e Saúde Coletiva, confirma esse risco. O estudo reúne os resultados de 25 pesquisas internacionais realizadas entre 2015 e 2019 que avaliaram a associação entre uso de cigarros eletrônicos e a iniciação ao tabagismo. O resultado é preocupante: o uso desses dispositivos aumentou em quase três vezes e meia o risco de experimentar o cigarro convencional e em mais de quatro vezes o de se tornar um usuário do produto tradicional.

“Os cigarros eletrônicos começaram a ser divulgados no exterior como uma alternativa para interromper o tabagismo convencional, mas eles estão sendo usados de forma recreativa”, diz o pneumologista Felipe Marques, do Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo, que atendeu um dos primeiros casos suspeitos registrados no Brasil de uma nova doença pulmonar associada ao consumo de cigarros eletrônicos, a Evali (ver reportagem).

Criados na China nos anos 2000, os cigarros eletrônicos foram divulgados como uma possível alternativa menos danosa ao hábito de fumar. Por não promoverem a queima de tabaco, eles não produzem fumaça nem liberam monóxido de carbono e alcatrão, dois dos ingredientes mais nocivos à saúde associados ao tabagismo convencional. Esses dispositivos apresentam formatos variados. Podem lembrar um cigarro, uma caneta, um pen drive ou um tanquinho (ver ilustração). Uma característica comum aproxima as diferentes gerações de DEF, algumas de uso único, outras recarregáveis: todos os aparelhos têm uma bateria interna para aquecer uma mistura fluida armazenada em seu interior e, assim, gerar um aerossol, uma nuvem de partículas em suspensão no ar, semelhante a um gás ou vapor.

Estima-se que 2,4 milhões de brasileiros já experimentaram cigarros eletrônicos

A composição do aerossol inalado pelo usuário deriva dos ingredientes usados nesses e-líquidos, como são chamados os fluidos, e varia de acordo com a versão do produto e fabricante. Em geral, os ingredientes principais são água, nicotina, glicerina vegetal, propilenoglicol e substâncias que conferem um sabor específico ao cigarro eletrônico. Mas há também líquidos que usam canabinoides (CBD e THC), substâncias derivadas de plantas do gênero Cannabis, em vez da nicotina. Embora oficialmente destinados ao público adulto, os cigarros eletrônicos costumam adotar flavorizantes açucarados, de frutas ou doces, uma isca que os torna mais atrativos para crianças e jovens.

“O termo vapor é enganoso. O cigarro eletrônico não produz apenas vapor-d’água, como se chegou a difundir”, afirma o pneumologista Paulo Corrêa, da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e coordenador da Comissão Científica de Tabagismo da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT). “O aquecimento do líquido no dispositivo produz um aerossol no qual já foram detectadas quase 2 mil substâncias, muitas tóxicas e a maioria desconhecida. Alguns desses aditivos, quando inalados, podem provocar quadros de irritação e lesão pulmonar aguda.” Além de ser uma substância que gera vício e dependência, a nicotina aumenta a pressão sanguínea e produz disparos do hormônio adrenalina, o que pode elevar o batimento cardíaco. Há indícios de que o próprio processo de vaporização dos e-líquidos pode gerar substâncias tóxicas e cancerígenas.Alexandre Affonso

Além do pulmão
Não são apenas os pneumologistas que estão preocupados com o crescente consumo de cigarros eletrônicos. Um estudo de revisão sistemática publicado na revista European Urology Oncology, em outubro de 2021, reuniu 22 pesquisas que identificaram 63 biomarcadores urinários de vários compostos cancerígenos ligados a tumores de bexiga em concentrações mais altas em usuários de cigarros eletrônicos do que no grupo de controle.

Dentistas também já estão em alerta com a chegada desses dispositivos eletrônicos, que podem afetar a mucosa bucal e provocar anomalias celulares – com o consequente risco de câncer bucal –, semelhantes às provocadas pelos cigarros convencionais. Essa é a principal conclusão de um artigo publicado em abril do ano passado pela equipe da dentista Janete Dias Almeida, do Departamento de Biociências e Diagnóstico Bucal da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de São José dos Campos.

No trabalho, divulgado no periódico Oral Surgery, Oral Medicine, Oral Pathology, and Oral Radiology, foram comparadas células da mucosa bucal de 91 voluntários divididos em quatro grupos: 20 fumantes de cigarro eletrônico, 22 fumantes de cigarros convencionais, 22 ex-fumantes e 27 não fumantes. Diferentes tipos de anomalias foram encontradas no núcleo das células da mucosa de fumantes de cigarros convencionais e eletrônicos, em quantidade significativamente maior do que em ex-fumantes e não fumantes. O trabalho é um dos resultados de um projeto de pesquisa de Almeida com apoio da FAPESP. De acordo com a pesquisadora, as substâncias químicas resultantes do aumento da temperatura dos líquidos mantidos nesses dispositivos eletrônicos, que superam 300 graus Celsius (ºC), podem ser as responsáveis pelos danos celulares na mucosa dos usuários.

A pesquisadora Sandra Farsky, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (FCF-USP), estuda os eventuais impactos dos DEF sobre a artrite reumatoide em comparação aos efeitos do cigarro convencional, um conhecido fator de risco para o surgimento e progressão da doença. Trata-se de um trabalho experimental, com camundongos, realizado em colaboração com o Centro de Pesquisa em Doenças Inflamatórias (Crid), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP. Depois de induzidos quimicamente a apresentar artrite reumatoide, os animais foram expostos à fumaça de cigarros convencionais e às nuvens de aerossóis dos dispositivos eletrônicos.

Após 20 dias, ambos os grupos de roedores apresentaram níveis equivalentes de nicotina no sangue, embora os sintomas articulares tenham piorado nos animais que tiveram contato com a fumaça da queima do tabaco. “Mostramos que a exposição aos DEF não piora a artrite reumatoide, como ocorre com o cigarro. Isso indica que os componentes tóxicos que levam ao agravamento da artrite são liberados na combustão do tabaco”, explica Farsky. No entanto, os DEF prejudicaram as células de defesa do organismo. “Eles causaram imunossupressão em linfócitos [um tipo de glóbulo branco], como ocorre com a exposição ao cigarro convencional, e prejudicaram a produção de neutrófilos [células especializadas no combate a bactérias e fungos].” Esses primeiros resultados da parceria foram publicados no periódico Science of the Total Environment em fevereiro deste ano.

Prateleira nos Estados Unidos com cigarros eletrônicos: cores e formatos chamativosStephanie Keith / Getty Images 

Nesse projeto, a pesquisadora da FCF optou por trabalhar com um tipo específico de dispositivo eletrônico, os heat not burn tobacco, ou simplesmente HNBT. No lugar do e-líquido dos cigarros eletrônicos mais difundidos, esses aparelhos em forma de bastão carregam uma quantidade de tabaco em seu interior. O fumo é aquecido, mas não queimado, como ocorre com um cigarro convencional. Em vez de fumaça da combustão do tabaco, gera uma nuvem de partículas a serem inaladas por seu usuário.

Os fabricantes de HNBT dizem que ele é menos nocivo por não queimar o tabaco e atingir temperaturas de 360 °C, cerca de metade do calor gerado por um cigarro tradicional. Mas não foi por essa suposta menor toxicidade que os HNBT foram empregados no estudo. “Com esses pequenos bastões de tabaco aquecido, é possível ter um maior controle sobre a quantidade de nicotina liberada por esses dispositivos”, esclarece a pesquisadora. Nos vapes mais comuns, esse gerenciamento seria bem mais difícil, uma vez que eles trazem quantidades variáveis de nicotina e ainda têm modelos que podem ser personalizados pelo fumante.

A falta de controle sobre a quantidade e dosagem dos produtos químicos inalados, a começar pela nicotina, substância que cria a dependência química do tabagismo, é um risco adicional para quem usa os dispositivos eletrônicos. Mesmo aqueles produtos vendidos como livres de nicotina podem apresentar pequenas concentrações da substância. Em uma análise publicada em 2017 no American Journal of Public Health por pesquisadores dos CDC, foram detectados traços de nicotina em produtos rotulados como “zero nicotina”. Em outros dispositivos, as concentrações reais de nicotina diferiram daquelas relatadas em seus rótulos.

“Ninguém fuma nada se não tiver nicotina”, comenta Corrêa. Essa substância, derivada do tabaco, age no sistema mesolímbico dopaminérgico do cérebro, associado a mecanismos de recompensa. “É um sistema criado pelo organismo humano para garantir a sobrevivência da espécie, responsável por sentirmos prazer quando nos alimentamos, nos hidratamos, fazemos sexo ou atividade física.” No caso dos DEF, a combinação de propilenoglicol e glicerina vegetal, dois ingredientes presentes na maioria dos e-líquidos, produz acetaldeído, substância que, unida à nicotina, aumenta o potencial de dependência ao produto.

Nos vapes de última geração, ainda há um agravante: a substituição da nicotina pura pelos sais ácidos de nicotina. Produzidos pela associação da nicotina com o ácido benzoico, os sais mascaram a sensação de aspereza e amargor na garganta produzida pela nicotina. Com essa mistura, os fabricantes de cigarros eletrônicos deixam o produto mais palatável e apto a conter mais nicotina no dispositivo. A quantidade de nicotina em um tanquinho, um pod, com menos de 1 mililitro de e-líquido da marca Juul, líder de mercado nos Estados Unidos, equivale à de um maço de 20 cigarros.Alexandre Affonso

Os resultados da maioria das pesquisas mais recentes contrariam o principal apelo de venda dos dispositivos eletrônicos, que foram anunciados pela indústria do tabaco como uma alternativa mais segura para ser empregada por pessoas que queriam parar de fumar ou reduzir o impacto negativo desse hábito. Em vez de usar os conhecidos adesivos de nicotina grudados à pele, os tabagistas recorreriam aos cigarros eletrônicos.

Hoje, porém, a história do próprio inventor desses dispositivos, o farmacêutico chinês Hon Lik, desmente esse argumento. Em diversas entrevistas à imprensa internacional, Lik relata que criou em 2003 os primeiros aparelhos que produzem aerossóis a partir do aquecimento de líquidos com nicotina como uma tentativa de encontrar uma forma de parar de fumar. Na época, ele consumia três maços de cigarro por dia e já havia perdido o pai, também fumante, em razão de um câncer de pulmão. Hoje, o chinês é usuário dos dois tipos de produto, o convencional e o eletrônico. Mas ele diz que fuma cigarro “apenas para checar os sabores que usará nos dispositivos”, segundo reportagem do jornal britânico The Guardian. Em 2013, Lik vendeu as patentes do cigarro eletrônico à Fontem Ventures, a subsidiária holandesa da Imperial Tobacco, do Reino Unido, por US$ 75 milhões. Hoje ele é consultor da empresa e continua defendendo o uso desses dispositivos para adultos que queiram deixar de fumar. “Pessoalmente, acho que os reguladores deveriam se concentrar mais em estabelecer limites de idade do que banir os sabores (dos cigarros eletrônicos)”, disse, em agosto de 2020, em material de divulgação no site da Imperial Tobacco.

835 mil pessoas fazem uso atualmente de vapes, segundo projeção do Inca

Na Inglaterra, o uso do cigarro eletrônico é regulamentado desde 2015 como um recurso farmacêutico alternativo aos adesivos de nicotina em tratamentos para pessoas com mais de 18 anos que tentam deixar o tabagismo. A Public Health England (PHE) considera o emprego dos cigarros eletrônicos como menos prejudicial à saúde do que os cigarros convencionais. Estudo publicado em 2019 no periódico New England Journal of Medicine aponta que os cigarros eletrônicos seriam mais efetivos do que a terapia de reposição de nicotina quando acompanhados por suporte comportamental.

O trabalho selecionou aleatoriamente 886 indivíduos de um total de 2.045 clientes de serviços que promovem tratamentos para abandonar o tabagismo e acompanhou os resultados das duas abordagens. Um ano após o início do experimento, a taxa de pessoas que estavam sem fumar foi de 18% no grupo do cigarro eletrônico e de 9,9% no que usou a reposição de nicotina, por meio de adesivos, chicletes, pastilhas ou outra forma escolhida pelo paciente. O trabalho, um dos poucos com resultados favoráveis ao emprego dos cigarros eletrônicos em programas para redução do tabagismo, foi realizado com patrocínio do National Institute for Health Research e do Cancer Research UK Prevention Trials Unit.

O pneumologista Paulo Corrêa, da Ufop, e a epidemiologista Neilane Bertoni, do Inca, discordam da estratégia britânica. Consideram que a liberação da venda de cigarros eletrônicos pode representar uma ameaça às políticas de saúde pública que têm combatido com sucesso o tabagismo no Brasil nas últimas décadas. Dados do Inca indicam que, em 1989, quase 35% dos brasileiros eram fumantes de cigarro convencional. Em 2019, essa taxa era menor que 13%.

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.


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