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Estudo investiga tradição centenária de pesca com apoio de golfinhos nariz-de-garrafa na região catarinense de Laguna

Por Letícia Naísa em Pesquisa Fapesp | Quase todos os dias, quando era criança, Safico tinha como tarefa levar almoço para o pai no trabalho. O menino, então com cerca de 12 anos, ficava observando o pai pescar. Com a tarrafa em mãos, um tipo de rede circular com pesos distribuídos nas bordas, o homem esperava um sinal para jogá-la na água e pegar os peixes. O sinal vinha de golfinhos – também chamados de botos em algumas regiões do país – na forma de movimentos especialmente vigorosos, como uma batida na água com a cabeça ou a cauda, ou um nado rápido seguido de um mergulho. Em resposta, o pescador lançava a tarrafa e conseguia capturar as tainhas. Há mais de 50 anos Safico, 71, pesca exatamente da mesma forma que o pai: com ajuda dos botos.

Pode parecer história de pescador, mas não aconteceu apenas com Wilson Francisco dos Santos – o Safico – e sua família. Boa parte das centenas de pescadores da região de Laguna, em Santa Catarina, pratica a pesca com botos. Segundo o relato das pessoas que vivem há muitos anos na área, a atividade ocorre há mais de 140 anos. A tradição é tão enraizada que os “animais ajudantes” são chamados de trabalhadores. “Temos entre 15 e 20 botos que trabalham”, conta o pescador. Todos esses botos trabalhadores recebem, inclusive, nomes. “Tem o Scooby, apelido que um dos nossos rapazes deu porque achou que o boto parecia com o personagem do desenho animado; tem o Figueiredo, que nasceu na época do presidente da República João Figueiredo, e outros”, relata.

Na água, pescadores esperam a chegada dos cardumesAlexandre Machado

Safico e seus colegas de trabalho sabem exatamente como diferenciar cada um dos animais pela coloração ou forma como eles emitem o sinal que autoriza a “tarrafada”. “Hoje tem tudo documentado, com foto e vídeo, então fica mais fácil”, diz. “Antes, era no boca a boca: um de nós identificava e contava para o outro.” As histórias soavam tão fantásticas e curiosas que ultrapassaram as fronteiras de Laguna e atraíram a comunidade acadêmica. Desde os anos 1980, pesquisadores da capital catarinense observam e tentam entender melhor essa interação entre os pescadores e os golfinhos nariz-de-garrafa.

Um artigo publicado no final de janeiro mostra como foi possível medir o quanto o papel dos botos influencia o sucesso da pesca na região. A interação acontece em um espaço de tempo muito curto: são cerca de 7 segundos entre o sinal do boto e o movimento do pescador, que tem 17 vezes mais chances de capturar peixes quando sincroniza suas ações com as dos animais. Os pescadores também pescam quatro vezes mais peixes com ajuda dos “colegas de trabalho”.

“A interação traz um benefício socioeconômico para os pescadores”, afirma Fábio Daura-Jorge, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), supervisor do projeto e um dos autores do artigo. Os dados que indicam esses benefícios foram obtidos a partir de análise de imagens de câmeras subaquáticas e de sons captados com hidrofones (microfones que podem ser usados embaixo d’água) instalados desde 2018 no local de pesquisa.

De prontidão com as tarrafas, a serem lançadas ao sinal dos mamíferos aquáticosFábio Daura-Jorge

As imagens mostram que os botos fazem o trabalho de reunir os peixes e empurrá-los em direção à costa, onde ficam os pescadores. Quando eles conseguem arrebanhar as presas, fazem o sinal para os humanos lançarem as tarrafas. “Os botos colocam os peixes no lugar certo, essa é a contribuição-chave”, afirma o biólogo brasileiro Maurício Cantor, autor principal do artigo, agora na Universidade Estadual do Oregon, nos Estados Unidos, além de manter a afiliação com a UFSC, onde realizou a maior parte desse trabalho. Na sequência, os botos indicam onde reuniram os peixes. “Os pescadores interpretam como indicativo do local correto e do momento mais apropriado para lançar a tarrafa”, continua o pesquisador. Em seguida ao lançamento, os botos emitem sinais sonoros, os cliques, que indicam que também estão tentando pegar algum peixe.

Os pescadores conseguem, com o tempo, distinguir quais movimentos dos botos são sinais relevantes para a pesca. “Tem horas que eles sobem para respirar ou brincar com outros botos; mas o movimento para os pescadores é mais enérgico, como se dissessem: ‘Pode tarrafear que aqui tem peixe’”, conta Safico. “Tem que ter prática para perceber.”

O que os animais ganham com isso? Com os cardumes desorganizados pelas tarrafas, os botos conseguem capturá-los mais facilmente antes que a rede se feche sobre os peixes. Os golfinhos que interagem com os humanos têm 13% mais chance de sobreviver de um ano para o outro do que aqueles que buscam alimento sozinhos, conforme o levantamento dos pesquisadores. É um sistema vantajoso para os dois lados, segundo as análises, mas que só funciona quando há cooperação e sincronia entre as partes. Isso requer que o conhecimento de como interagir seja transmitido entre pescadores – e entre os botos – para que saibam como e quando agir. “Quando se perde esse componente de transmissão cultural, a comunicação e coordenação entre as espécies não funciona”, diz Cantor.

Por definição, a comunicação entre animais envolve basicamente um emissor de sinal, um meio e um receptor, além da possibilidade de modificar o comportamento do outro. “Os golfinhos nariz-de-garrafa são conhecidos pela plasticidade acústica, pela capacidade notável de aprendizado e de imitação, então é plausível inferir a tentativa de comunicação”, afirma a bióloga Yasmin Viana, doutoranda da Universidade Federal de Juiz de Fora, especialista em bioacústica e pesquisadora associada do Instituto Aqualie, que não participou do artigo.

É sempre difícil inferir propósito no comportamento animal, mas existem algumas evidências, segundo Cantor. “Essa interação entre os botos e pescadores acontece há quase 150 anos na região estudada. Se não fosse proposital e de alguma forma vantajosa para ambos os lados, não duraria tanto tempo”, sugere. Os botos são animais inteligentes, afirma o biólogo. “Eles aprenderam a tirar vantagem desse comportamento humano que quebra a estrutura do cardume.”

Segundo Daura-Jorge, a interação pode ter começado de forma acidental. “Os humanos acharam que poderiam se aproveitar do comportamento dos botos, fizeram essa leitura e de fato conseguiram os peixes mais facilmente”, suspeita o pesquisador. “Com o tempo, os botos também aprenderam a tirar suas vantagens.” Esse tipo de interação, no entanto, é rara. Por isso, existe uma preocupação entre os pesquisadores e pescadores de manter a tradição viva. No artigo, os cientistas sugerem dois caminhos para que a pesca com botos não deixe de existir em Laguna: fiscalização da pesca ilegal para evitar que eles sejam acidentalmente presos nas redes e valorização da cultura local de modo que os pescadores se sintam motivados a manter a tradição.

Ao tentarem fugir da rede, os peixes muitas vezes são abocanhados pelos botos de prontidão Fábio Daura-Jorge

Além de afetar social e economicamente os pescadores, o fim da pesca com botos também pode ser danosa para esses animais. “Alguns integrantes dessa população estão acostumados a se alimentar dessa forma e, sem a ajuda dos pescadores e sem as tainhas, podem desaparecer”, comenta Viana.

A pesquisadora compara a pesca com botos em Laguna com outros casos, como o das orcas de Eden, na Austrália. Entre o final do século XIX e início do XX, um grupo de caçadores de baleias recebia ajuda de orcas – que são da família dos golfinhos marinhos, apesar de serem conhecidas como “baleias assassinas”. Elas recebiam alimento em troca do “aviso” de onde estavam as baleias. Antes de puxar a caça para o barco, os baleeiros deixavam as orcas comerem a língua das baleias já presas no arpão. “O declínio dessa ‘parceria’ se deu quando a pesca industrial tornou o ‘serviço’ das orcas desnecessário”, conta a pesquisadora. “Em Laguna, a pesca industrial e o declínio das populações de tainha podem fazer com que essa relação entre humanos e golfinhos se perca também, o que pode ser prejudicial para ambos”, avalia.

Este texto foi originalmente publicado pela Pesquisa Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.


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