Tecnologias originalmente voltadas ao entretenimento podem tornar mais divertida e eficaz a recuperação de pacientes com limitações motoras; projetos foram apresentados durante o 4th BRAINN Congress
Tecnologias originalmente voltadas ao entretenimento, como jogos eletrônicos, sensores de reconhecimento de gestos e óculos de realidade virtual (RV), podem ajudar a tornar as sessões de reabilitação mais divertidas e eficazes, auxiliando pacientes com limitações motoras a recuperar, pelo menos em parte, sua autonomia.
Dois projetos com esse objetivo foram apresentados no final de março durante o 4th BRAINN Congress, organizado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) pelo Instituto Brasileiro de Neurociência e Neurotecnologia (Brainn), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) apoiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Em um simpósio satélite intitulado “Virtual Reality and Neurofunctional Recovery”, o pesquisador do Brainn Alexandre Brandão apresentou um conjunto de softwares de RV voltados à reabilitação motora e neurofuncional. A proposta é tornar a tecnologia mais acessível de modo a beneficiar pacientes que necessitam de tratamentos de reabilitação física de média e longa duração, como é o caso de quem sofre acidente vascular cerebral (AVC).
“Estão em fase de desenvolvimento dois aplicativos de RV para smartphones: o e-Street, que permite ao usuário explorar virtualmente um ambiente urbano e situações como atravessar ruas; e o e-House, que por enquanto possibilita caminhar pela área externa de uma casa para treinar prevenção de quedas durante a simulação de subida e descida de escadas. Em breve, também será possível acessar cômodos internos e simular atividades de vida diária, como abrir uma gaveta ou armário. Além do desenvolvimento constante da interface dos aplicativos, estamos investigando qual a melhor forma para interagir com alguns objetos dentro do ambiente virtual”, contou Brandão, idealizador do projeto e pós-doutorando no Instituto de Física da Unicamp, sob supervisão da professora Gabriela Castellano.
De acordo com o pesquisador, os softwares convencionais de RV para smartphones apenas levam o usuário por um tour virtual pré-definido. Ou seja, é possível direcionar o olhar para onde se deseja navegar, mas não há um controle efetivo sobre o ambiente virtual. Já os programas desenvolvidos na Unicamp, com apoio da Fapeps, possibilitam ao usuário avançar dentro do ambiente virtual à medida que ele movimenta as pernas para simular passos, mas sem sair do lugar.
Para isso, o grupo está desenvolvendo, além dos softwares, também equipamentos de hardware com a ajuda de impressão 3D. Para caminhar pela e-Street, por exemplo, dois sensores de ultrassom são posicionados na região do tornozelo do usuário. Esses sensores funcionam como um sonar capaz de registrar qualquer movimento que simule uma caminhada e enviam o registro, por cabos, para uma pequena placa controladora (conhecida como arduíno) fixada na cintura do usuário. O arduíno, por sua vez, se comunica via Bluetooth com o smartphone, inserido nos óculos de RV. Durante a navegação na e-Street, a direção para explorar as diversas ruas da cidade virtual é determinada pelo movimento da cabeça e rotação de todo o corpo.
Segundo Brandão, os primeiros testes com pacientes que sofreram AVC começaram em março. Embora esse seja o principal e mais desafiador público do projeto, o pesquisador acredita que a tecnologia também poderá beneficiar idosos que sofrem de desorientação espacial (comum em muitos tipos de transtornos cognitivos), ajudar na prevenção de quedas e, possivelmente, na inibição da dor ocasionada por atividade motora.
“Muitas quedas acontecem quando o idoso precisa dividir sua atenção entre uma tarefa motora, como subir escada ou desviar de um objeto na rua, e uma tarefa cognitiva, como olhar para a vitrine de uma loja ou lembrar do trajeto até sua residência. Com esses softwares, será possível treinar a atenção associada ao estímulo motor e antecipar situações que poderiam por em risco a integridade física”, explicou.
Além disso, portadores de fibromialgia e pessoas de todas as idades que apresentam limitações motoras – seja em decorrência de fraturas, cirurgias, lesão medular ou qualquer outro tipo de trauma – podem se beneficiar com sessões de fisioterapia e terapia ocupacional (que costumam envolver tarefas repetitivas) mais lúdicas e estimulantes.
Robôs e videogame
Ainda durante a programação do 4th BRAINN Congress, o pesquisador Glauco Caurin, da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da Universidade de São Paulo (USP), apresentou sua linha de pesquisa voltada ao desenvolvimento de jogos eletrônicos e membros robóticos que funcionam como ferramentas auxiliares da fisioterapia.
O trabalho é desenvolvido no âmbito do Núcleo de Estudos Avançados em Reabilitação (NEAR), coordenado pela professora da Faculdade de Medicina da USP Linamara Rizzo Battistella. “O robô atua como um joystick sofisticado. O jogo determina quais movimentos o paciente tem de fazer para alcançar um determinado objetivo – pode ser coletar uma fruta ou impedir que uma bolinha caia de uma plataforma, por exemplo. Quando o paciente não consegue fazer a ação sozinho, o robô aguarda algumas frações de segundo e, então, o auxilia”, contou Caurin.
Como explicou o pesquisador, o grau de ajuda que o robô oferece pode ser modulado pelo fisioterapeuta ou fisiatra responsável pelo tratamento. A ideia é que o auxílio vá diminuindo à medida que o tratamento avance. Em um dado momento, o robô pode até mesmo oferecer resistência ao movimento para aumentar o tônus muscular.
“O paciente tem domínio completo das ações. O robô sabe antecipadamente qual é o movimento que precisa ser feito para ganhar o jogo, mas, se o paciente não tiver a intenção de fazer essa ação, nada acontece. Ele pode perder de propósito, se quiser. Nossa preocupação é desenvolver o robô de modo que ele não possa machucar ninguém. Em um dos testes de laboratório, mostramos que a máquina tem sensibilidade suficiente para sair do caminho se empurrada com algo frágil, como uma batata chips”, contou Caurin.
O projeto em desenvolvimento na USP de São Carlos tem como foco a reabilitação de punhos e tornozelos, embora o grupo também já tenha criado robôs para auxiliar movimentação de ombros e até um exoesqueleto capaz de auxiliar a movimentação da cintura para baixo.
“O tornozelo proporciona aproximadamente 50% da energia necessária para caminhar. Os flexores plantares do tornozelo contribuem com até 50% de trabalho mecânico positivo em um único passo para permitir a propulsão para frente. Se conseguirmos recuperar esse movimento, portanto, já é uma grande conquista. Qualquer ganho de independência pode melhorar muito as condições de vida do paciente e aliviar a carga de familiares”, comentou o pesquisador.
De acordo com Caurin, estudos internacionais já comprovaram – particularmente no caso dos membros superiores – que a fisioterapia auxiliada por robôs oferece vantagens em relação aos métodos clássicos de reabilitação.
“Com o robô é possível realizar quase dez vezes mais movimentos em uma sessão do que com a ajuda de um fisioterapeuta, pois o profissional também entra em fadiga. Além disso, o videogame ajuda a tornar a atividade mais estimulante. Ainda estamos trabalhando para tornar os jogos menos estáticos e repetitivos, possibilitando ao paciente evoluir de nível”, disse Caurin.
Longe de perder o protagonismo no processo de reabilitação, os profissionais de saúde passam a atuar como supervisores de todo processo. Para auxiliá-los nessa tarefa, o grupo da USP está desenvolvendo programas de computadores capazes de medir objetivamente variáveis como amplitude de movimento, aceleração e força. As informações são coletadas enquanto o paciente faz o exercício e são armazenadas ao longo de todo tratamento para mostrar a evolução.
Os protótipos de membros robóticos em estágio mais avançados de desenvolvimento já estão sendo testado em pacientes por meio de uma colaboração com pesquisadores da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP).