Frango comercializado no Reino Unido está associado a desmatamento no Cerrado brasileiro
Uma investigação jornalística conjunta entre os veículos de notícias Bureau of Investigative Journalism, Greenpeace Unearthed, ITV News e The Guardian, no Reino Unido, revelou que supermercados e lojas de fast-food britânicas estão vendendo frango alimentado com soja importada do Brasil. O problema é que a produção desses grãos está associada a milhares de incêndios florestais e a pelo menos 800 quilômetros quadrados de derrubada de árvores no Cerrado brasileiro.
Os supermercados Tesco, Lidl e Asda, bem como as lojas de fast-food McDonald’s e Nando’s, adquirem frango alimentado com soja fornecida pela gigante comercial Cargill, a segunda maior empresa privada dos Estados Unidos. A combinação de proteção mínima para o Cerrado – que é sumidouro de carbono e habitat de vida selvagem de importância global – com uma cadeia de suprimentos frágil e sistemas de rotulagem confusos tem levado consumidores britânicos a contribuir para o desmatamento no Brasil, sem que tenham consciência disso.
O Reino Unido abate pelo menos um bilhão de galinhas por ano, o equivalente a quinze aves para cada pessoa no país. Muitas são engordados com grãos de soja importados para o Reino Unido pela Cargill, que compra dos agricultores do Cerrado, uma savana tropical lenhosa que cobre uma área correspondente à Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália e Espanha juntas.
A análise dos dados de transporte mostra que a Cargill importou 1,5 milhão de toneladas de soja brasileira para o Reino Unido entre 2015 e agosto de 2020. Números de exportação em nível de bioma, compilados pelo órgão de vigilância da cadeia de abastecimento Trase, indicam que quase metade das exportações brasileiras da Cargill para o Reino Unido vem do Cerrado.
Entre os carregamentos mais recentes estavam 66 mil toneladas de grãos de soja que desembarcaram nas docas de Liverpool em agosto em um navio-tanque alugado pela Cargill, o BBG Dream. Esse foi o foco de uma investigação colaborativa que reuniu o Bureau of Investigative Journalism, o Greenpeace Unearthed, o ITV News e o The Guardian.
O porão do navio foi carregado no terminal portuário de Cotegipe, em Salvador, com grãos que vieram da região de Matopiba, incluindo alguns de Formosa do Rio Preto, a comunidade mais desmatada do Cerrado. Além da Cargill, outros fornecedores incluíam a Bunge (maior exportadora de soja do Brasil) e a ADM (importante produtora de alimentos nos Estados Unidos).
Depois de cruzar o Atlântico, todo o carregamento foi descarregado na planta de esmagamento de soja Seaforth da Cargill, em Liverpool, de acordo com registros marítimos e de embarque. A investigação rastreou a forma como o grão esmagado ali é então transportado de caminhão para moinhos em Hereford e Banbury, onde é misturado com trigo e outros ingredientes para produzir ração para gado. De lá, a ração segue para as granjas contratadas da Avara.
Avara é uma empresa conjunta formada pela Cargill e a Faccenda Foods. Essa empresa engorda as aves, que são abatidas, processadas e embaladas para distribuição às lojas Tesco, Asda, Lidl, Nando’s, McDonald’s e outros varejistas. A Avara prospera quase no anonimato. “Você pode não ter ouvido falar de nós, mas há uma boa chance de ter gostado dos nossos produtos”, diz o site da empresa.
Então, de onde exatamente vem essa soja? O fornecedor da Avara, a Cargill, compra soja de muitos fornecedores no Cerrado – dos quais pelo menos nove estiveram envolvidos em desmatamentos recentes. A análise da consultoria Aidenvironment dos terrenos pertencentes ou usados por essas empresas desde 2015 encontrou 801 quilômetros quadrados de desmatamento e detectou 12.397 incêndios registrados.
Ainda no mês passado, imagens de drones feitas em Formosa do Rio Preto mostraram incêndios de grandes proporções na Fazenda Parceiro, administrada pela SLC Agrícola, fornecedora da Cargill. Dados de satélite mostram que os incêndios queimaram 65 quilômetros quadrados da fazenda.
Mais de 210 quilômetros quadrados foram limpos nas terras da SLC Agrícola nos últimos cinco anos, de acordo com a consultoria de pesquisas de meio ambiente Aidenvironment. A Cargill alega que não quebrou regras nem suas próprias políticas ao comprar produtos da Fazenda Parceiro, afirmando que não se abastece de terras desmatadas ilegalmente. A SLC Agrícola foi procurada pela equipe de investigação jornalística para comentar o assunto, mas se recusou a falar.
Marketing e posicionamento das empresas
Apesar do impacto ambiental que causam, os produtos importados do Cerrado podem ser rotulados como legais e sustentáveis no Brasil. Isso destaca as deficiências de um sistema de comércio internacional que depende de padrões locais, muitas vezes influenciados por fazendeiros interessados no lucro econômico de curto prazo, em detrimento do bem global de longo prazo, que incorporaria o valor dos sistemas de água, sumidouros de carbono e habitats de vida selvagem.
O governo brasileiro tem relaxado constantemente os controles sobre o desmatamento – e, às vezes, até o encoraja – ao longo da última década, principalmente com o relaxamento do Código Florestal em 2012. Essa realidade é particularmente exposta no Cerrado, o segundo maior bioma do Brasil, que está sendo sacrificado para impulsionar as exportações, manter baixos os preços globais dos alimentos e reduzir os impactos sobre a Amazônia. Isso porque os agricultores podem cortar e queimar legalmente uma proporção maior de árvores no Cerrado do que na região amazônica.
Muitos biólogos acreditam que essa política é míope. As árvores, arbustos e solo do Cerrado armazenam o equivalente a 13,7 bilhões de toneladas de dióxido de carbono – significativamente mais do que as emissões anuais da China. É origem de tantos rios que se tornou conhecida como “o berço das águas”, além de abrigar 600 espécies de pássaros, répteis e mamíferos (incluindo onças, tatus e tamanduás) e 10 mil tipos de plantas, muitas não encontradas em nenhum outro lugar do mundo.
Cientistas dizem que será difícil, senão impossível, salvar a Amazônia sem conservar o Cerrado. No entanto, este último sofreu o dobro do desmatamento da primeira, embora tenha metade do tamanho. Entre 50% e 80% do bioma original do Cerrado foi substituído por fazendas de gado e fazendas de soja. Independentemente de o Brasil considerar legal ou não a soja dessa área, muitos consumidores rejeitam a ideia de consumir produtos associados ao desmatamento.
O Reino Unido importa 700 mil toneladas de grãos de soja in natura a cada ano, muitos deles originários do Cerrado. Também compra quase três vezes essa quantidade de ração de soja processada, a maioria da Argentina. O impacto ambiental varia enormemente de país para país, mas os consumidores não têm como saber se o peito de frango ou o hambúrguer que estão ingerindo contribuíram para a destruição do Cerrado, porque os rótulos fornecem informações insuficientes sobre as origens dos produtos.
As empresas envolvidas dizem que estão trabalhando para reduzir o impacto ambiental de suas ofertas, mas o progresso varia. As redes McDonald’s e Nando’s cobrem os volumes de soja que usam para ração de galinhas com “certificações” de sustentabilidade, que incluem a compra de “créditos”, em sistema semelhante à compensação de carbono. Os créditos apoiam os agricultores que produzem de forma sustentável, mas a soja real na cadeia de abastecimento não vem necessariamente desses produtores. Ao contrário, frequentemente ela vem de fazendas desmatadas.
A Avara, joint venture da Cargill, disse estar na vanguarda dos compradores de soja no Reino Unido, cobrindo todas as suas compras de soja com certificação e trabalhando para alcançar uma transparência muito maior na cadeia de abastecimento. A Avara faz parte da Declaração de Apoio ao Manifesto do Cerrado e do grupo gestor dessa iniciativa.
Já o McDonald’s, o Nando’s e os três supermercados mencionados na reportagem expressaram publicamente seu apoio a um novo acordo, semelhante à moratória na Amazônia, para impedir o desmatamento para soja no Cerrado. No entanto, a oposição no Brasil significa que o plano não se materializou.
A Cargill, um dos agentes mais importantes na cadeia de abastecimento, disse publicamente que se opõe a uma moratória do Cerrado. Na época, anunciou 30 milhões de dólares em esforços de financiamento para lidar com o desmatamento, mas não especificou onde o montante seria gasto. O The Guardian perguntou à Cargill por que ela havia rejeitado uma moratória, mas a empresa não fez comentários sobre o assunto. Entretanto, expressou seu compromisso com uma cadeia de suprimentos sem desmatamento e com o apoio aos agricultores que trabalham de forma sustentável. A empresa continua expandindo seu programa de certificação no Brasil e no Paraguai, mas aposta no ordenamento jurídico brasileiro.
Em documento, alega que “a Cargill, junto com nossa indústria, agricultores, governos locais e clientes, é responsável pela transformação da cadeia de abastecimento de alimentos e estamos interagindo com as partes interessadas todos os dias para fazer progresso. O desmatamento naquele bioma é, na maioria das vezes, crime pela legislação brasileira, e deve ser tratado dessa forma”. A investigação mostra, porém, que não basta tratar o problema como uma questão brasileira. Afinal, ele chegou ao Reino Unido – e tem potencial para atingir o mundo todo.