Passada a temporada de festas de começo e fim de ano, é provável que você tenha trocado presentes. Independente de qual seja sua crença ou religião, é provável que todos esses presentes tivessem uma coisa em comum: eles estavam embrulhados com uma camada de papel decorado.
A prática de cortar, dobrar e colar papel é milenar e transcende barreiras culturais e doutrinas religiosas. Embrulhar presentes remete a uma experiência mais profunda: o jeito como os humanos aprenderam a emoldurar objetos para mostrar que eles são especiais.
Os embrulhos de presente que você provavelmente fez nas últimas semanas estão ligados ao modo como uma moldura dourada transforma uma pintura em arte ou ao jeito como um porta-jóias faz a unha de um santo virar um tesouro sagrado. Embrulhar um objeto comum é o que o transforma em algo extraordinário.
O indústria de papéis de embrulho hoje em dia é imensa: nos últimos anos, os produtores do ramo declararam um faturamento anual entre 3,2 e 9,36 bilhões de dólares. Nos EUA, a estimativa é de que as pessoas joguem fora durante os feriados de fim de ano por volta de quatro milhões de toneladas de papel de embrulho e sacolas de compras – peso equivalente a cerca de 11 prédios do Empire State (NY).
O papel de embrulho em geral é muito leve e tem muita tinta, o que dificulta sua reciclagem eficiente. Além disso, se incluir películas ou plástico, muitos recicladores não o aceitam. É por isso que alguns presenteadores estão desistindo do lixo instantâneo que os papéis de embrulho representam e optando por alternativas mais sustentáveis para embrulhar seus presentes, tais como reutilizar caixas de alimentos ou tecidos antigos. Apesar dos fortes argumentos ambientais contra o papel de embrulho, é difícil para a maioria das pessoas imaginar um presente sem sua cobertura de papel colorido.
A importância que o Ocidente dá ao ato de embrulhar presentes teve sua origem na Europa e nos Estados Unidos, durante a Era Vitoriana, quando se tornou elegante empacotar presentes com tecidos e laços bonitos. Então, em 1917, durante as festas de fim de ano, uma loja em Kansas City, no Missouri (EUA), depois que os tecidos acabaram, passou a vender papel estampado feito com o interior de envelopes decorados. Eles se esgotaram rapidamente e a loja se tornou a Hallmark, dando origem à moderna indústria do papel de embrulho.
Em 1979, o sociólogo Theodore Caplow chegou em Muncie, Indiana (EUA), para estudar os rituais americanos de troca de presentes. Depois de entrevistar mais de 100 adultos sobre suas experiências com o Natal, ele identificou uma série de regras. Entre elas: presentes de Natal precisam ser embrulhados antes de serem entregues. Caplow percebeu que seus entrevistados embrulhavam praticamente todos os presentes em papel, exceto os muito grandes ou difíceis, como uma bicicleta. Eles concluiu que embrulhar permitia que as pessoas vissem os presentes embaixo da árvore “como um monumento brilhante à abundância da família e ao seu afeto mútuo”. Também servia para conferir ao recipiente uma feliz noção de surpresa.
O antropólogo James Carrier, em 1990, adicionou outra dimensão vital ao estudo dos embrulhos de presentes quando percebeu o paralelo entre o surgimento dessa prática atual e a produção industrial e massiva de objetos. O argumento de Carrier é que embrulhar presentes transforma objetos impessoais em algo pessoal, ritualmente convertendo uma simples mercadoria em um presente personalizado. Assim, nos dias de hoje, quando embrulhado, um iPhone deixa de ser um objeto que qualquer um pode comprar e passa a ser “o iPhone que eu comprei para você”, por exemplo. Carrier destacou que é por isso que presentes feitos à mão, tal qual um pote de geleia caseira, não precisam de um embrulho completo. Um simples laço em volta já é suficiente.
Esses estudos dizem muito sobre o costume de embrulhar presentes na sociedade ocidental contemporânea. Mas a prática dos embrulhos, em um sentido mais amplo, tem uma história muito mais profunda e que sugere uma razão mais fundamental pela qual as pessoas embrulham, enquadram e encaixotam objetos particulares.
O papel já era usado como embrulho antes mesmo de ser usado para escrever. Na China antiga, cerca de 2 mil anos atrás, o papel era usado para proteger materiais preciosos, estoques de folhas de chá e remédios. Depois, a corte imperial usou envelopes de papel para presentear oficiais do governo com dinheiro. Há cerca de mil anos, embrulhar virou um princípio fundamental do ato de dar presentes na cultura japonesa. Em outras palavras, as pessoas já embrulhavam presentes muito antes do início da Revolução Industrial.
O objetivo do embrulho pode ser compreendido dentro de uma prática humana mais ampla de usar um objeto como moldura para destacar a importância de outro. A historiadora da arte Cynthia Hahn recentemente nomeou esse fenômeno como “o efeito relicário”. Em seu livro mais recente, Hahn estudou as práticas de igrejas católicas, mesquitas islâmicas e mosteiros budistas para entender como itens como um osso de dedo, um pedaço de madeira ou até um cisco de poeira são transformadas em objetos sagrados. Ela concluiu que a maior parte das relíquias religiosas não têm um valor intrínseco, mas são “produzidas socialmente” como objetos de poder. Isso se dá graças ao relicário, o receptáculo fabricado para conter a relíquia. “O relicário faz a relíquia“, escreve Hahn.
Os relicários em geral são bonitos, mas eles têm uma função mais básica: deixar claro que o que contém (a relíquia) é valioso. Apesar disso, eles precisam quase desaparecer no plano de fundo, assim como a moldura de um quadro. A moldura ajuda a delimitar uma imagem como “arte”, mas quase nunca está destinada a fazer parte dela.
O recipiente prepara o palco para um tipo de striptease que tanto esconde (você não sabe exatamente o que está por trás) quanto revela (você tem uma ideia do que ele contém). E, como no ato erótico, Hahn observa que “o relicário encontra seu propósito ao chamar atenção e capturar o desejo”.
Muitos se aproveitaram desse poder performático das embalagens. Curadores de museus usam redomas de vidro para demarcar objetos como históricos ou belos. Agências funerárias colocam as cinzas de pessoas cremadas em urnas decoradas para transformar poeira humana em ancestrais a serem lembrados. Designers usam caixas novas, elegantes, brancas e como fechos impressionantes para fazer com que objetos produzidos em massa pareçam tão especiais quanto um anel de diamantes.
É assim que os embrulhos de papel funcionam: eles enquadram os objetos como um presente. É isso que transforma um livro presenteado em um presente de verdade. Um livro sem embrulho poderia perfeitamente estar na estante de uma livraria ou em um criado-mudo. No final das contas, até mesmo a geleia caseira precisa de uma laço para mostrar que é um presente.
Assim, da próxima vez que abrir um presente, considere tudo o que representa seu embrulho. Tire um momento para refletir sobre essa tradição humana e considere se o presente que você está segurando não se pareceria com um presente se não estivesse embrulhado.
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