O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, aprovou pessoalmente o uso de retardantes na Chapada dos Veadeiros, em Goiás, no início de outubro. O produto químico foi despejado por aeronaves para tentar conter incêndios que consumiram 75 mil hectares na região.
Mas o produto usado, de nome Fire Limit, da empresa espanhola Rio Sagrado, não é autorizado para uso pelo governo do estado, que sequer foi comunicado pelo MMA. Um parecer do Ibama, de 2018, diz que o retardante deve ser usado somente em último caso e faz uma série de alertas sobre os seus impactos ambientais.
O Ibama afirma que o produto não deve ser usado em Áreas de Preservação Permanente e que a população deve ser informada “sobre os possíveis riscos do consumo de água e alimentos provenientes do local nos 40 dias seguintes à aplicação do retardante de chamas”. Em caso de uso, as autoridades devem fazer acompanhamento por pelo menos seis meses para identificar danos ambientais.
Os moradores da Chapada dos Veadeiros protestaram contra o uso do retardante e a visita de Ricardo Salles, pedindo a saída do ministro do cargo. Uma ação popular na Justiça Federal pediu a proibição do uso do retardante em todo o Brasil e a suspensão da compra de 20 mil litros do produto, sem licitação. Pressionado, o Ibama recuou e cancelou a compra do produto, que custaria R$ 680 mil.
Retardantes também foram usados em fase de testes para combater o fogo no Pantanal e a compra suspensa do Ibama visava a mesma região. Os produtos não tem eficácia comprovada, seu uso não é regulamentado no Brasil e os impactos ambientais variam de leves a graves, dependendo das substâncias.
O professor Carlos Henke, da Universidade de Brasília, estuda o uso de retardantes de fogo desde 2015. Em laboratório e em campo, na parceria com o Corpo de Bombeiros do DF, Henke testa os diferentes tipos de retardantes encontrados no mercado a partir de queimas controladas.
Enquanto a eficácia varia enormemente de produto para produto, explica Henke, todos os retardantes deixam impactos ambientais, incluindo a morte total da vegetação em alguns casos. Para Henke, que é doutor em Ecologia e Recursos Naturais, o uso na Chapada dos Veadeiros foi precipitado e a ação não se justifica.
“Além da questão ambiental, foi errado usar porque não teve negociação social. Isso deixa uma cicatriz na sociedade”, afirma Henke.
No caso do retardante Fire Limit FL-02, usado na Chapada, o pesquisador conta que o representante do produto nunca quis participar efetivamente dos testes feitos. Segundo Henke, a Rio Sagrado prometeu ceder uma quantidade aceitável do retardante para a pesquisa científica e até hoje não cumpriu com a promessa.
Essa negativa do fabricante em se submeter ao crivo científico coloca em xeque as afirmações feitas em seu site oficial, de que o produto “não causa nenhum dano ao meio ambiente” e que “bloquearia o avanço do fogo”. A Rio Sagrado não respondeu às perguntas enviadas pela Mongabay sobre as informações divulgadas em seu site, se os testes foram feitos em diferentes biomas, em que condições e a independência dos pesquisadores.
A suposta eficácia é questionada pela nota técnica do Ibama. “Na aplicação aérea, atentar para a viscosidade do produto utilizado e a altura mínima requerida para aplicação por aeronave. Fluidos de baixa viscosidade, quando derramados de altitude elevada, tendem a atomizar e assim não atingem o alvo em concentração suficiente para debelar o fogo”, diz o parecer. É o caso do Fire Limit FL-02, que tem viscosidade por volta de 200 centipoises (cP), considerada baixa segundo o Ibama, que observou a efetividade em produtos com 1500 cP.
O parecer do Ibama reforça que “não há regulamentação e sistema de avaliação definido” para os retardantes. Assim, os padrões comparativos usados foram referentes a agrotóxicos, e o Fire Limit, sob essa análise, foi classificado como “pouco tóxico e pouco persistente”.
Porém, diz o Ibama, “com os dados disponíveis, não é possível inferir o resultado da utilização repetida deste produto no meio ambiente e quais danos isso pode acarretar aos ecossistemas terrestre e aquático”.
A Rio Sagrado alegou ao Ibama que o produto teria conseguido autorização de uso em países como Portugal, Espanha e Chile com base em análises laboratoriais e testes de eficiência. No entanto, de acordo com o material enviado, “não foi obtido nenhum documento oficial tal como licença ambiental ou autorização de uso emitida pelos governos português, espanhol e chileno permitindo oficialmente a utilização de retardantes de chama”, afirma o Ibama.
Para Henke, não é possível comparar o uso de retardantes em lugares como Europa, Estados Unidos ou Canadá com o Brasil porque a característica dos incêndios é completamente diferente. Nos Estados Unidos, por exemplo, o fogo vai de copa para copa de árvores, algo que só é possível de combater por via aérea e situação em que os retardantes podem ajudar, com uso estratégico e supervisionado.
O fogo nos biomas brasileiros tem características bem distintas. “Aqui não tem fogo de copa. No Pantanal há o fogo subterrâneo, que não se combate com retardante. É uma situação em que um solo muito rico de matéria orgânica vai durante séculos formando uma camada de combustível. Tem uma importância ecológica fundamental. E o fogo vai andando por baixo da terra. Nós também verificamos isso na Amazônia e é algo terrível de combater”, explica Henke.
O pesquisador reforça que o combate com produtos químicos, quando necessário, deve ser feito de maneira planejada, com conhecimento. “O retardante tem que ser usado de forma cirúrgica, não pode ser banalizado. Esse não é o caso da Chapada dos Veadeiros nem do Pantanal”, afirma.
Procurados para comentar o uso de retardantes em todo o Brasil, os critérios técnicos usados e o que teria mudado em relação ao parecer de 2018, o Ministério do Meio Ambiente e o Ibama não quiseram se manifestar.
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