Projetos em desenvolvimento em centros de pesquisas universitários e em uma startup paulista têm potencial de atender a uma demanda latente no país por aparelhos robóticos direcionados à mobilidade de pessoas com restrições motoras. Pesquisadores da Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo (EESC-USP) anunciaram em novembro a conclusão de um protótipo de exoesqueleto robótico capaz de auxiliar o movimento dos membros inferiores de vítimas de doenças como acidente vascular cerebral (AVC), mal de Parkinson e lesão da medula espinhal. O aparelho utiliza algoritmos para identificar a dificuldade específica do paciente em cada articulação da perna, como tornozelo, joelho e quadril, e complementa automaticamente o esforço necessário para a conclusão do movimento.
“É um equipamento idealizado para fisioterapia. Não substitui o esforço do paciente, o que inibiria a recuperação. A ideia é estimular a realização de atividades, oferecendo ajuda ao paciente na medida adequada apenas para finalizar ações como caminhar, subir escada ou sentar”, explica o engenheiro mecânico Adriano Almeida Gonçalves Siqueira, coordenador do projeto e professor do Departamento de Engenharia Mecânica da EESC.
O exoesqueleto da USP, que recebeu apoio da FAPESP para o desenvolvimento dos algoritmos de controle do sistema, é do tipo vestível. É composto por um cinto pélvico, juntas posicionadas nas articulações das pernas, sensores, pequenos motores para impulsionar o movimento, cintas de velcro e um par de sapatos. O conjunto pesa 11 quilos (kg) e foi testado, por enquanto, em pessoas saudáveis. Nesses testes, mostrou ter a estabilidade e a segurança da estrutura necessárias, sendo que os algoritmos de auxílio ao paciente também tiveram bom desempenho. “Experimentos com portadores de deficiências serão realizados neste ano, assim que a pandemia de Covid-19 permitir”, conta Siqueira. Segundo ele, se tudo der certo, o desafio seguinte será transformar o protótipo em um produto. “Vamos buscar interessados na industrialização e comercialização.”
Hoje os exoesqueletos mais comuns nos centros de reabilitação são de grande porte e fixos. Com mais de 200 kg, são compostos por esteiras para caminhada, barras de apoio e estruturas de sustentação do peso do paciente e dos motores, sensores e equipamentos computacionais. Um dos mais vendidos do mundo é o modelo Lokomat, da empresa suíça Hocoma. Ele é utilizado no Instituto de Medicina Física e Reabilitação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (FM-USP), que integra a Rede de Reabilitação Lucy Montoro, na Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), também em São Paulo, e no Centro Estadual de Reabilitação e Readaptação Dr. Henrique Santillo (Crer), em Goiânia, da Secretaria de Estado da Saúde de Goiás.
“Os equipamentos disponíveis no mercado, de origem europeia, norte-americana ou japonesa, têm preços proibitivos para a realidade de países pobres. Aparelhos para membros inferiores custam na casa de US$ 380 mil e para membros superiores entre US$ 130 mil e US$ 160 mil”, observa a fisiatra Linamara Rizzo Battistella, diretora do Instituto de Medicina Física e Reabilitação do Hospital das Clínicas da FM-USP. “No Brasil são raros os centros de reabilitação que contam com exoesqueletos.”
O equipamento projetado na USP se insere em um mercado que começa a crescer de forma significativa. Cerca de 6 mil exoesqueletos humanos motorizados foram vendidos no mundo em 2017, de acordo com a Federação Internacional de Robótica (IFR), e esse número deve chegar a 48 mil neste ano. A consultoria norte-americana Prescient & Strategic Intelligence (P&S) projeta, no relatório Exoskeleton market research report, uma expansão do mercado global de US$ 290 milhões em 2019 para US$ 7 bilhões em 2030. As cifras e o cálculo da IFR incluem não apenas exoesqueletos para uso na área da saúde, mas também na indústria e no meio militar – nos dois últimos casos apoiando pessoas saudáveis a executar tarefas que geram grande desgaste físico.
Prajneesh Dwivedi, gerente de Marketing da P&S Intelligence, informa que o setor de saúde deverá ser o principal demandante de exoesqueletos. Alguns fatores que ocorrem de forma simultânea colaboram para isso. São eles: a maior disponibilidade de pessoas e governos investirem em saúde; o crescimento da população geriátrica; e a abertura de oportunidades no mercado de trabalho para pessoas com deficiência.
Também contribui o número elevado de ocorrências de lesões da medula espinhal (LM) e casos de AVC. “Apenas nos Estados Unidos vivem 291 mil pessoas com LM e são registrados 17.700 novos casos por ano”, declara Dwivedi, citando dados do National Spinal Cord Injury Statistical Center. No Brasil, o Ministério da Saúde estima em 6 mil a 8 mil casos novos de LM por ano e por volta de 197 mil atendimentos no Sistema Único de Saúde (SUS) em decorrência de AVC.
Por outro lado, destaca Dwivedi, o setor de exoesqueletos desenvolve avanços significativos com a incorporação de tecnologias robóticas, recursos como inteligência artificial, conectividade em nuvem e designs leves, que utilizam materiais mais adaptáveis ao corpo humano. Um exemplo é o equipamento para uso em membros inferiores Hybrid Assistive Limb (HAL), desenvolvido pela Universidade Tsukuba e a companhia Cyberdyne, ambas no Japão. Em 2020, o HAL tornou-se o primeiro exoesqueleto vestível a obter aprovação de um órgão de vigilância sanitária – no caso, o da Tailândia – para uso médico. Além de Tailândia e Japão, o robô já está disponível na Malásia, na Arábia Saudita e em vários países da Europa.
A equipe de cientistas da EESC-USP também trabalha associada com pesquisadores das universidades federais do Rio Grande do Norte (UFRN), do Espírito Santo (Ufes) e da Universidade de Brasília (UnB) no desenvolvimento de outro exoesqueleto para pessoas com paraplegia, ou seja, com paralisia das pernas e na parte inferior do tronco, uma situação geralmente causada por lesão na medula e muitas vezes permanente. O projeto recebe suporte do Programa de Apoio à Pós-graduação e à Pesquisa Científica e Tecnológica em Tecnologia Assistiva no Brasil (PGPTA), do governo federal.
O objetivo desse equipamento, batizado de Ortholeg, é ajudar a locomoção em pé da pessoa portadora de deficiência em seu dia a dia. “O exoesqueleto substitui a cadeira de rodas, permitindo mais facilmente a superação de obstáculos, como degraus, buracos e o meio-fio”, explica o engenheiro elétrico Pablo Javier Alsina, coordenador da iniciativa e do Laboratório de Robótica e Sistemas Dedicados da UFRN. Outra vantagem do Ortholeg, avalia o pesquisador, é gerar autoestima. “Na cadeira de rodas, a pessoa conversa de baixo para cima. Estando em pé, a sensação é de igualdade.”
O Ortholeg está em sua segunda versão. A primeira pesava 20 kg e a segunda 12 kg. A estrutura é produzida em liga especial de alumínio e fibra de carbono e adota um sistema de eficiência energética capaz de reduzir em até 30% a demanda de bateria. Com tudo isso foi possível substituir quatro motores de alto desempenho que custam R$ 50 mil cada um por outros motores mais leves com preço unitário de R$ 11 mil.
Os primeiros exoesqueletos para pessoas com paraplegia que chegaram ao mercado internacional demandam que o usuário determine cada movimento a ser executado por meio de botões de comando. Já o Ortholeg incorpora técnicas oriundas da robótica que permitem ao usuário executar movimentos com elevado grau de autonomia. Além de estabelecer a direção para a qual pretende se locomover, ele tem total controle sobre ritmo, paradas e mudança de rumo. O exoesqueleto executa automaticamente o movimento. Para isso, é dotado de uma câmera que vê os obstáculos e utiliza técnicas de inteligência artificial, otimização e planejamento de movimentos para adaptar o passo da pessoa para a forma mais adequada a superar obstáculos na sua frente e alcançar o objetivo. “O exoesqueleto é como um táxi que leva a pessoa ao seu destino”, compara Alsina.
De acordo com o engenheiro da UFRJ, os testes do equipamento com os usuários inicialmente estavam previstos para 2020, mas também tiveram que ser adiados por causa da Covid-19. Agora a expectativa é que sejam realizados ainda neste ano. O passo seguinte é a submissão do aparelho à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e, com a aprovação do órgão, o licenciamento comercial.
No Laboratório de Biomecatrônica da Escola Politécnica (Poli) da USP estão sendo desenvolvidos modelos de exoesqueletos para reabilitação em seções de fisioterapia, prevenção de lesões de trabalho e também com finalidade assistiva, ou seja, que auxiliem o portador de deficiência em seu cotidiano. O engenheiro Arturo Forner-Cordero, coordenador do Laboratório de Biomecatrônica do Departamento de Engenharia Mecatrônica e Sistemas Mecânicos (PMR), informa que já estão prontos os sistemas de arquitetura de controle que utilizam algoritmos para identificar o ritmo de caminhada de cada indivíduo e gerar um padrão de marcha. Os sistemas de controle de posição e força do robô para gerar o esforço adequado ao movimento também foram finalizados, mas ainda é preciso construir os protótipos, processo que foi atrasado em decorrência da pandemia. “Devemos ter os primeiros exemplares concluídos por volta de julho”, calcula Forner-Cordero.
São dois os modelos de exoesqueletos para pessoas com deficiência em desenvolvimento na Poli-USP, ambos motorizados. Um deles emprega o sistema convencional com um motor junto a cada articulação assistida. O outro modelo adota um sistema em que os motores são reunidos em uma mochila carregada nas costas e a transmissão de força é realizada por cabos bowden, como os usados nos freios das bicicletas. “Esse sistema permite reduzir o peso a ser suportado em uma área que se encontra fragilizada, concentrando-o nas costas”, explica o engenheiro mecatrônico Rafael Traldi Moura, também do PMR da Poli-USP. As pesquisas são financiadas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Em São Caetano do Sul (SP), a startup Vivax desenvolveu um robô portátil para apoiar a reabilitação dos membros superiores. A ideia é que o sistema seja uma alternativa de custo mais acessível. O robô, conforme a empresa, o primeiro do gênero, estimula o paciente a se exercitar ao jogar games digitais lúdicos 3D que simulam atividades cotidianas em ambiente tridimensional.
O aparelho, similar a um joystick, move-se por meio de um sistema de coordenadas esféricas denominado A.R.M. (assistive rehabilitation machine). Os movimentos estão predefinidos nos jogos. Por meio de uma interface, os terapeutas selecionam os jogos mais adequados a cada paciente, assim como a força necessária para realização dos exercícios.
“Com o robô, o paciente executa cerca de 1.400 movimentos em uma sessão de 50 minutos de fisioterapia. Numa sessão normal, são realizados por volta de 100 movimentos. É como fazer 14 sessões de fisioterapia em apenas 50 minutos”, destaca o engenheiro naval Antonio Makiyama, idealizador do equipamento junto com o seu irmão, o fisioterapeuta Tomas Makiyama.
O A.R.M. é portátil, pesa aproximadamente 15 kg e está sendo comercializado por US$ 80 mil. Já foram vendidos nove para a Rede Lucy Montoro e outros dois para a prefeitura de São Paulo. “É um equipamento com vocação internacional e estamos nos preparando para uma comercialização em escala”, diz Makiyama. Para 2021, a Vivax planeja apresentar ao mercado uma versão do A.R.M. para membros inferiores, com jogos lúdicos que usam o pé. O desenvolvimento do robô contou com apoio financeiro do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP.
Para Battistella, da FM-USP, a robótica presta uma grande contribuição à reabilitação, possibilitando ao paciente concluir um número maior de repetições dos exercícios – algo que ele não conseguiria fazer sem o auxílio externo. “Os exercícios físicos melhoram as condições motoras, cardiovasculares e cognitivas. Essa recuperação apoiada pela robótica é mais rápida, permitindo que o indivíduo afetado retome suas atividades normais em menor tempo. O impacto social poderá ser muito grande”, explica a especialista, cujo grupo de pesquisa estuda, com apoio da FAPESP, os mecanismos de neuroplasticidade envolvidos no processo de reabilitação motora.
Os exoesqueletos, segundo a fisiatra, também ajudam a preservar a saúde dos técnicos que, sem a ajuda do equipamento, precisam realizar um grande esforço físico para auxiliar o paciente. Outro benefício da robótica é aperfeiçoar a elaboração de um tratamento customizado para cada paciente, utilizando para isso as informações captadas pelos sensores, que avaliam a cada momento o esforço realizado e a dificuldade do paciente em complementar a atividade.
De acordo com Battistella, os exoesqueletos vestíveis em desenvolvimento nas universidades brasileiras demonstram em laboratório ser capazes de oferecer as mesmas funcionalidades para a reabilitação dos pacientes e informações para a equipe médica ofertadas pelos modelos analógicos. Os equipamentos nacionais, segundo ela, podem significar um potencial mercadológico ainda inédito no mundo, caso tenham bons resultados nos testes com pacientes.
“Um produto viável para a aquisição pelo SUS no Brasil terá uma expansão mercadológica rápida. Países da América Latina, África e Ásia também se interessariam”, afirma a fisiatra, que é uma das coordenadoras do Grupo de Desenvolvimento das Diretrizes de Reabilitação Relacionada à Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS).
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