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O Sistema Agrícola Tradicional Quilombola (SATQ) do Vale do Ribeira foi reconhecido em 2018 Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil. Dentre os saberes dos povos quilombola, está o plantio na lua minguante para evitar o uso de agrotóxicos

Por Sibélia Zanon em Mongabay Brasil |

  • A roça-de-toco ou coivara se baseia no rodízio das áreas, unindo produção e conservação. O Vale do Ribeira concentra o maior remanescente contínuo de Mata Atlântica do Brasil, abrigando mais de 20% dos 7% de floresta que restam do bioma.
  • Os quilombolas têm histórico de lutas para continuar praticando seu sistema agrícola tradicional, ameaçado pela falta de ordenamento territorial adequado dentro da APA dos Quilombos do Médio Ribeira.
  • Com sede própria no Quilombo Nhunguara, a Rede de Sementes do Vale do Ribeira gerou R$ 120 mil em 2021. Em quatro quilombos, 42 participantes coletaram 1.400 kg de sementes, usadas por iniciativas de restauro no replantio da Mata Atlântica.

“Esse horário é bom. É o horário que a gente acordava pra jogar rede no rio. O duro era fazer par ou ímpar pra ver quem ia entrar na água. Aí, eu ficava com dó do pai e entrava, né?”, conta Adan.

Às 4 horas da madrugada, subimos no barco para atravessar o Rio Ribeira de Iguape, no sul do estado de São Paulo. Debaixo de céu estrelado e lua minguante, o vento de 9 graus sopra seu inverno antecipado. O destino é a roça de Antônio e de seu filho Adan, na margem esquerda do rio, no Quilombo Sapatu, onde os principais cultivos são a banana e o palmito.

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Quilombolas da Amazônia lutam para manter a herança africana em meio à floresta

“Que ventinho gostoso”, anuncia Adan Pereira, agricultor quilombola de 33 anos que desconhece tempo ruim.

O bananal, enluarado em prata, toca a melodia do orvalho. Mas logo a música esquenta com o crepitar do fogão a lenha: café, banana assada e taiá, a raiz da taioba cozida. Adan gosta de começar o dia assim.

Sistema Agrícola Tradicional Quilombola (SATQ) do Vale do Ribeira foi reconhecido em 2018 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil.

“A gente tem o local onde os nossos ancestrais já trabalharam, isso foi sempre passado de geração pra geração”, conta Adan. “A gente roça, depois derruba, faz a queima, depois faz o plantio. E aí, num determinado ponto, a gente abandona esse local para entrar em descanso, se regenerar, e a gente faz a roça em outro local. Esse é um sistema rotativo, esse é o manejo quilombola.”

Amanhecer no bananal de Antônio e Adan Pereira, na margem esquerda do Rio Ribeira de Iguape, no Quilombo Sapatu. Foto: Fellipe Abreu

Semear na minguante

Herança dos povos indígenas e dos africanos escravizados que ocuparam o Vale do Ribeira, o Sistema Agrícola Itinerante (SAI), conhecido popularmente como roça-de-toco ou coivara, é uma forma de agricultura antiga praticada pelos povos tradicionais em florestas tropicais e se baseia no rodízio das áreas de plantio, unindo produção e conservação.

“A gente chega numa área que é só mata, é uma capoeira. Você vai roçar e aí num determinado tempo vai secar aquela roçada”, explica Adan. “Depois você vai derrubar as árvores, aí passa para picar as madeiras e vai secar tudo aquilo. Aí você vai queimar. Tem muita gente que fala que essa queima degrada o solo, mas não. Hoje tem vários estudos que comprovam que não queima todos os nutrientes do solo.”

Apesar de ser considerada polêmica e exigir adaptações em tempos de mudanças climáticas, a queima incompleta e controlada do solo favorece o aumento de potássio, cálcio e magnésio, assim como o acúmulo de carbono orgânico, que é adubo para o solo de florestas tropicais, geralmente deficiente em nutrientes.

Entre três e cinco anos, o agricultor cultiva na mesma área, abandonando-a, então, para que a mata se regenere em período longo de pousio ou descanso. Cerca de 15 anos depois, a roça volta ao seu estado de mata fechada ou capoeira.

O trabalho agrícola em roça tradicional é o alicerce do conjunto de conhecimentos dos quilombolas do Vale do Ribeira. Isso inclui o manejo e a diversidade dos plantios, o preparo dos alimentos, a rede de comercialização, a transmissão de conhecimentos ancestrais, e agrega ainda artesanato, expressões religiosas, música e dança.

Dentre os conhecimentos praticados no SATQ está a observação das fases da lua para iniciar o plantio. “Sempre três dias antes da minguante ou no dia da minguante”, diz Adan. “Mas, por que plantar na minguante? Para você não precisar usar agrotóxico. Se você planta a semente na minguante, não vai dar bicho na planta depois. Tudo isso está dentro do sistema dos quilombolas, entendeu? Tudo tem uma tradição e tem um porquê. Nós não mexemos com agrotóxico nenhum. É a natureza que cuida de tudo pra gente, então, você tem que acompanhar o ciclo da natureza também.”

João da Mota (esq.) e Adan Pereira praticam a coivara, sistema agrícola tradicional nos quilombos do Vale do Ribeira reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil. Foto: Fellipe Abreu

Na roça, a batata é doce

A subida é íngreme e a estrada irregular. Na caçamba do 4×4, uma foice, um balaio e Rosana. Ao chegar no topo da estrada, Rosana pega a foice, veste o balaio de palha trançada nas costas e se coloca no caminho da trilha: “Nós estamos indo pra roça”.

Conforme a trilha também fica íngreme, o sol aquece os morros, cobertos de Mata Atlântica, e os corpos, cobertos de casacos.

“É um trabalho que não é fácil. [O terreno] é muito inclinado, não dá pra mexer com trator”, diz João da Mota, agricultor quilombola que nos acompanha pelas trilhas do Quilombo Nhunguara até a roça de Rosana, onde viceja a batata-doce, mas também a banana, a abóbora, a couve, o feijão.

“A importância para nós desses produtos já vem dos nossos mais velhos, né? De plantar toda essa diversidade para o sustento mesmo”, conta Rosana de Almeida, agricultora quilombola em Nhunguara. “Quando a gente era criança, os mais velhos já plantavam a batata-doce, que era para alimentar os bebezinhos, né? Meu pai sempre falou: a mulher embarrigou já tinha que ter a batata-doce, que era o alimento das crianças. Diferente de hoje, que é o leite.”

A batata, o inhame e o cará são para Rosana o pão do dia a dia. A responsável financeira da Cooperativa de Agricultores Quilombola do Vale do Ribeira (Cooperquivale) mostra a diversidade de batata-doce que cresce em seu chão: “Ela aproveitou a bondade da terra, ela ramou muito”, diz apontando para a variedade branca.

Malvina de Almeida Silva prepara o almoço com os alimentos cultivados nas roças do Quilombo Nhunguara. Foto: Fellipe Abreu

A maior parte da alimentação consumida nas comunidades é produzida pelos próprios quilombolas, mas cada dia apresenta seus desafios, não há garantias. “Essa roça aqui que eu plantei de milho, mas o passarinho veio e comeu uma boa parte”, diz Rosana. “Aí o tempo não ajudou e o milho não deu o que a gente esperava.”

Por conta de tais adversidades, o consórcio de alimentos ganha importância. Além de contribuir com a segurança alimentar, promove diversidade na dieta e reduz insetos e doenças nas roças. Além disso, o manejo constante das sementes tradicionais em campo contribui com os processos evolutivos dos alimentos e com a conservação de germoplasma. A Feira de Troca de Sementes quilombolas também é espaço para valorização das sementes crioulas.

“A gente tinha muita produção, só que não tinha para onde vender. A gente plantava, comia o que comia. O que não comia dava pros vizinhos. Perdia bastante. Aí foi pensado em fazer a cooperativa”, explica Rosana.

Criada em 2012, a Cooperquivale comercializa a produção excedente de 19 comunidades quilombolas e conta com mais de 240 cooperados. Cerca de 80 alimentos são comercializados para programas de compras institucionais, numa feira semanal no município de Eldorado, e em institutos e iniciativas de comércio na cidade de São Paulo.

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Caminhando com Rosana pela roça, vemos a abundância de mexerica e limão. Há frutos caídos no chão. Ela fala sobre a necessidade de ampliar as oportunidades de venda, incluindo um aumento de participação em programas como o Programa de Aquisição de Alimentos na modalidade de Doação Simultânea (PAA-DS) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

“Como a gente produz, queria vender também”, diz ela. “Queria que os governantes, a política pública olhasse por esse lado, que a gente é produtor pequeno, mas a gente consegue produzir e botar esse produto na mesa para eles também. São produtos orgânicos, né? É sem veneno que a gente trabalha.”

Adan mostra a diversidade da sua roça no Quilombo Sapatu. “A agricultura familiar seria isso que você vê. Não existe a monocultura”, diz ele, ao apontar limoeiros, mamoeiros, taioba, inhame e uma jacataúva (Citharexylum myrianthum) — árvore melífera que atrai aves —, em consórcio com o bananal. “Não tem por que derrubar essa árvore. Ela vai devolver a matéria orgânica para o solo e você tem a diversidade.”

Na foto à esquerda, João da Mota, Malvina de Almeida Silva e Rosana de Almeida exibem os alimentos produzidos por eles no Quilombo Nhunguara. À direita, Adan Pereira mostra a folha de taioba que cresce em sua roça, no Quilombo Sapatu. Foto: Fellipe Abreu

Modelo colonial de conservação

Quando o drone sobe sobre o Rio Ribeira de Iguape, é possível vislumbrar os verdes que os números professam. Com cerca de 80% de floresta, a região concentra o maior remanescente contínuo de Mata Atlântica do Brasil, abrigando mais de 20% dos 7% de vegetação que restam do bioma. O Vale do Ribeira, que interliga o sudoeste do estado de São Paulo e o nordeste do Paraná, abrange área superior a 2 milhões de hectares e abriga mais de 80 comunidades quilombolas.

“Desde a época do meu bisavô, imagina, estão fazendo roça e abandonando e você olha hoje: o Sapatu tem 90% do território preservado. Todas as nascentes nossas são preservadas”, diz Adan. “Basta dois ou três hectares de roça bem feitos, um bananal bem feito, um palmitalzinho bem plantado, saber vender — por exemplo, através da cooperativa que está sabendo fazer a distribuição —, e você tem uma vida boa”.

Os quilombolas já estavam há centenas de anos na região do Vale do Ribeira praticando as roças de coivara quando, por volta dos anos 1980, o Estado passou a vê-las como desmatamento. A partir de então, os quilombolas precisavam de uma licença ambiental para plantar nas terras que sempre haviam sido suas.

O processo era demorado e uma licença solicitada em janeiro, por exemplo, podia sair somente em dezembro. “Quando chegava a ordem, já tava passada a época certa de fazer a roça”, explica Rosana.

Aumentando ainda mais as restrições para o plantio, em 2008 foi criada a Área de Proteção Ambiental (APA) dos Quilombos do Médio Ribeira como parte das 14 unidades de conservação do Mosaico do Jacupiranga, que forma um trecho contínuo de remanescentes florestais de Mata Atlântica. Tanto o quilombo Nhunguara quanto o Sapatu estão dentro da área da APA.

Desde então, conta Fernando Prioste, educador e advogado popular no ISA, “aconteceu de tudo nesse período: roças com licenças, licenças atrasadas, pessoas que não fizeram mais roças, falta de assistência técnica para fazer roças e, com certeza, muitas multas e processos”. Segundo ele, “ao invés de funcionar como elemento de salvaguarda do manejo tradicional, a APA pode prejudicar esse manejo”.

Por causa da pandemia e do risco de segurança alimentar, foi instituída a Resolução 28/2020 depois de anos de luta dos quilombolas. Ela permite que as roças sejam feitas antes e validadas mais tarde pelos órgãos oficiais. Com vigência até final de 2022, há expectativa de que a resolução seja prorrogada.

Rosana de Almeida cultiva batata-doce, banana, abóbora, couve e feijão em sua roça no Quilombo Nhunguara, no Vale do Ribeira. Foto: Fellipe Abreu

Estudos mostram que Terras Indígenas, Territórios Quilombolas e Unidades de Conservação são eficazes na conservação da vegetação nativa. Fernando destaca que “do ponto de vista nacional e internacional, as unidades de conservação têm menos eficiência na conservação ambiental do que os territórios de povos e comunidades tradicionais”.

Nurit Bensusan, uma das idealizadoras do livro A Diversidade Cabe na Unidade? Áreas Protegidas do Brasil, define esse modelo de Unidade de Conservação como um modelo colonial.

“Todo mundo aqui desmata a Mata Atlântica, todo mundo destrói a Mata Atlântica pra fazer hotéis na beira da praia e isso todo mundo tá achando ótimo”, diz a ecóloga. “Agora, os quilombolas são percebidos como atrasados e não percebidos como aqueles cujo modo de vida preservou os mais importantes fragmentos de Mata Atlântica.”

Além da luta para continuar praticando o SATQ e pela titulação dos territórios, foram necessários 28 anos de reivindicações até que fosse negada em 2016 a licença para a construção da hidrelétrica de Tijuco Alto, da Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), que inundaria uma área de 56 quilômetros quadrados onde viviam 580 famílias.

Vista do Rio Ribeira do Iguape no Vale do Ribeira, região que concentra o maior remanescente contínuo de Mata Atlântica do Brasil. Foto: Fellipe Abreu

Arvorecer o olhar

Maria Tereza tem notado que coletar sementes muda o olhar — começando pelas crianças.

“A gente começou o trabalho das sementes e muitas crianças, na inocência delas, pensavam que eu era a pessoa que comprava as sementes”, conta Maria Tereza Vieira, agricultora no Quilombo Nhunguara, responsável pelo recebimento das sementes. “Elas vinham até minha casa pra vender. Eu nunca disse não para aquelas crianças, sempre dava um jeitinho. Pesava, calculava e pagava do meu dinheiro. Hoje os pais estão na rede.”

Rede de Sementes do Vale do Ribeira, iniciativa que começou em 2017, envolve 42 coletores de quatro quilombos. Em 2021, foram coletados 1.400 kg de sementes, gerando R$ 120 mil, cerca de R$ 2.900 para cada coletor.

“Isso mudou a maneira da gente pensar, como valorizar ainda mais a natureza. E também para muitos até na parte financeira está ajudando, principalmente as mulheres coletoras. Agora é um dinheiro extra que entra”, diz Maria Tereza.

Por meio da venda para viveiros e iniciativas de restauração, as mais de 100 espécies de sementes coletadas vão possibilitar a restauração de mais de 40 hectares de áreas degradadas da Mata Atlântica.

Maria Tereza Vieira trabalha no viveiro e na Casa de Sementes no Quilombo Nhunguara, no Vale do Ribeira. Foto: Fellipe Abreu

Em dezembro de 2021, as sementes que ficavam armazenadas na sede do ISA, em Eldorado, ganharam espaço próprio: a Casa de Sementes no Quilombo Nhunguara. Feita de taipa de pilão e com cascalho do Ribeira do Iguape, as paredes da casa têm 40 cm de largura e ajudam a manter o frescor.

Entre ipês, olhos-de-cabra e uma grande diversidade preenchendo as prateleiras, só consegui identificar as sementes do guapuruvu (Schizolobium parahyba), árvore de crescimento rápido, que se destaca pelas flores amarelas coroando a copa no alto de seus 30 metros.

“Eu sinto muito prazer trabalhando com isso”, diz Maria Tereza. “Não importa se amanhã ou depois eu não estiver aqui – com tanta mata e no meio de tantas sementes. Aonde eu for, eu vou levar esse trabalho de alguma maneira”.

Se as árvores não passam despercebidas, o Rio também não. Na hora do almoço, no Quilombo Sapatu, Adan nos convida a sentar no banco com vista privilegiada para o Ribeira de Iguape.

“A mãe da gente diz que é errado comer assistindo televisão, né? E agora?”, brinca o agricultor, em alusão ao rio que corre à nossa frente. Melhor televisão, impossível.

Este texto foi originalmente publicado por Mongabay Brasil de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.


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