Rocinha em três dimensões

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Por Frances Jones e Yuri Vasconcelos em FAPESP – O caótico desenho urbano da maior favela brasileira, a Rocinha, no Rio de Janeiro, poderá ser esmiuçado em breve. Uma equipe do laboratório Senseable City, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos, em conjunto com pesquisadores brasileiros, pretende usar o escaneamento tridimensional a laser (3DLS), uma tecnologia já empregada na preservação do patrimônio histórico e cultural e na exploração de petróleo, para fazer um mapa digital da comunidade, composta por escadarias, construções de alvenaria, inúmeras vielas e becos por onde não passam carros nem motos. O objetivo do projeto, em fase de captação de recursos, é gerar informações que possam melhorar as condições de vida da população local.

Se der certo, a experiência poderá ser replicada em outros assentamentos informais ao redor do mundo. Urbanização fora dos padrões vigentes, precariedade de serviços públicos essenciais e ocupação irregular da terra são algumas das características dos trechos da área urbana que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) chama de aglomerado subnormal. Popularmente, essas zonas são conhecidas como favelas, comunidades, palafitas, loteamentos ou mocambos. Em algumas cidades do país, como Belém e Manaus, aglomerados subnormais são mais da metade dos domicílios ocupados.

Localizada na zona sul do Rio de Janeiro, a Rocinha tinha 25.742 domicílios em 2019, segundo estimativa do IBGE. Não se sabe ao certo quantas pessoas moram de fato na localidade. Os cálculos variam de 69 mil a 220 mil habitantes, conforme a fonte. A dificuldade em conhecer o número aproximado vem da urbanização totalmente fora dos padrões em um terreno de 95 hectares, alternando partes planas e outras com enorme declividade.

“A Rocinha é gigantesca. Todas as vezes em que chegamos a uma ordem de grandeza para estipular um tamanho, descobrimos que tem mais uma rua, uma viela”, diz o analista de sistemas Carlos Coutinho, diretor do escritório fluminense BRtech3D. No começo de 2020, a empresa escaneou a laser duas pequenas áreas da comunidade a partir de uma ideia do arquiteto e urbanista Washington Fajardo, secretário de Planejamento Urbano do município do Rio de Janeiro. Foi o piloto do projeto chamado Favelas 4D, lançado pelo MIT para fazer o mapeamento digital de toda a comunidade.

“Assentamentos informais raramente são mapeados. O uso de câmeras convencionais sofre resistência porque elas invadem a privacidade. Já o escâner laser, conhecido como Lidar [detecção de luz e medida de distância], é uma tecnologia não invasiva que permite um mapeamento com elevado nível de precisão, em três dimensões”, explica o arquiteto Fábio Duarte, pesquisador principal no Senseable City Lab e professor do Programa de Pós-graduação em Gestão Urbana na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR).

Nuvem de pontos

Para fazer a digitalização tridimensional a laser, o escâner é instalado em um tripé e emite pulsos de laser sobre a superfície a ser mapeada – por exemplo, uma ruela, um beco ou uma moradia. Os feixes colidem com a superfície e retornam a um sensor acoplado na máquina. O tempo de retorno e a inclinação da luz rebatida indicam uma determinada coordenada espacial (x, y e z). Uma nuvem de pontos captura a forma da superfície, permitindo a medição acurada mesmo em caso de contornos e geografias complexas (ver Pesquisa FAPESP no 293).

O projeto-piloto na Rocinha, que abrangeu a digitalização de uma rua e um playground para crianças, totalizando 480 metros quadrados, foi executado em dois dias, pouco antes do início da pandemia do novo coronavírus – a digitalização de toda a favela deve levar cerca de quatro meses. Foram utilizados dois escaneadores, que, segundo Coutinho, conferiram precisão milimétrica às medidas. O equipamento, com cerca de 5 quilos, escaneia 360 graus por 315 graus, de acordo com ele. “Ou seja, registra quase tudo; só não pega embaixo dele mesmo, onde está o tripé. Fazemos até 1 milhão de pontos por segundo”, diz o diretor da BRtech3D.

Cada área escaneada é composta por cerca de 50 cenas, indicando que o equipamento precisou ser posicionado em 50 locais diferentes para captar todos os ângulos daquele lugar. A ideia é que o laboratório norte-americano desenvolva e aprimore o algoritmo de análises matemáticas das ocupações informais para que o método possa ser usado em outros lugares do planeta. Projetos semelhantes, segundo Coutinho, estão em desenvolvimento por outras iniciativas na África e na Índia.

“Com o mapeamento 3D a laser, serão criadas topografias precisas da comunidade, medir riscos associados ao lugar, como deslizamento de terra, e saber exatamente onde está cada imóvel”, explica Duarte. “Com isso, podemos ajudar os moradores da Rocinha a ter endereçamento postal, o que é fundamental para que possam se beneficiar de vários serviços públicos.”

Com dados mais acurados, será possível também planejar o escoamento de água e esgoto conforme as inclinações e altura das vielas, além de organizar o cabeamento de energia elétrica e de redes de telecomunicação. A coleta de lixo e a limpeza das vias, por sua vez, poderão ser mais bem estruturados. Em resumo, ao oferecer uma melhor compreensão da lógica arquitetônica do bairro, o projeto permitirá que a população local passe a contar com serviços públicos diversos, ganhando visibilidade.

“Com esse trabalho, pretendemos criar uma metodologia mais inovadora para políticas públicas em favelas, baseada em evidências e dados. Queremos criar uma espécie de big data sobre favelas”, diz Fajardo. “O projeto Favelas 4D permitirá mais eficiência e velocidade para melhorias urbanísticas, na promoção de moradia digna, na criação de uma infraestrutura inteligente e em saúde pública, assim como grandes avanços na regularização fundiária nessas comunidades”.

Baixa cobertura

Artigo publicado em abril deste ano pelos pesquisadores do Senseable City Lab na plataforma de preprints arXiv informava que, dos 4 bilhões de pessoas que vivem nas cidades em todo o mundo, quase 1 bilhão mora em assentamentos informais. “Embora em geral consolidadas, elas são em boa parte impermeáveis às tecnologias de mapeamento tradicionais, tornando-as invisíveis e despidas dos direitos urbanos”, destaca o laboratório do MIT.

No caso da Rocinha, apenas 23% da extensão total de suas vias fazia parte do Google Street View, plataforma que mostra vistas panorâmicas de 360 graus de várias cidades do mundo a partir de imagens capturadas por câmeras instaladas em carros. A baixa cobertura, explicam os autores do estudo, decorre do fato de que apenas essa fração das vias pode ser captada corretamente a partir de veículos automotivos.

Outras técnicas de mapeamento urbano também têm limites. A visão de cima gerada por satélites, drones e pelo Google Earth não diz muito sobre a realidade da comunidade, uma vez que é difícil mensurar o que há por baixo de cada edificação. Os pesquisadores apontam no texto que, para medir a morfologia de um assentamento informal, há cinco métricas relacionadas às características das ruas e das fachadas das edificações: largura das vias; elevação das ruas; heterogeneidade das fachadas; densidade das fachadas; e cânions urbanos.

O escaneamento 3D no Rio de Janeiro está agora sob escrutínio da competição de inovação internacional Global Mayors Challenge 2021, que anunciou prêmio de US$ 1 milhão a 15 cidades ao redor do mundo a fim de que implementem ideias inovadoras para lidar com os principais desafios urbanos pós-pandemia. O Rio já passou em uma primeira peneira, que selecionou 50 entre 631 cidades candidatas. A iniciativa é da organização sem fins lucrativos Bloomberg Philanthropies, fundada pelo ex-prefeito de Nova York, Michael Bloomberg. Se vencedor, o projeto ganhará muito mais recursos para o escaneamento do que o valor previsto pela BRtech3D. No momento, a Secretaria de Planejamento Urbano está em busca de recursos para financiar o trabalho.

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original.

Equipe eCycle

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