Pesquisador da Unesp analisa a obra da cantora e compositora paulista, falecida esta semana, que conseguiu se tornar sucesso comercial e cativar gerações de fãs sem abrir mão da personalidade inquieta e questionadora
Por Renato Coelho em Jornal da Unesp | Com a morte de Rita Lee, 75, ocorrida esta semana, a música brasileira, e o rock brasileiro em especial, perdem uma das suas principais cantoras e compositoras. Segundo comunicado da família divulgado nas redes sociais, Rita faleceu em sua residência, em São Paulo, capital, no final da noite de 8 de maio, amparada de todo o amor de seus filhos e seu companheiro, como sempre desejou. Diagnosticada com câncer de pulmão em 2021, ela vinha realizando tratamentos contra a doença.
Rita teve papel fundamental na revolução do rock brasileiro e na concretização do Tropicalismo, formou uma banda brasileira de rock que está entre as mais cultuadas no mundo, os Mutantes, e criou canções na carreira solo com enorme alcance popular sem perder a liberdade e a irreverência marcantes da sua obra.
Durante quase seis décadas de carreira, Rita foi moderna, criativa, transgressora e feminista. O título de “rainha do rock brasileiro” surgiu naturalmente, mas ela considerava “cafona” e preferia ser conhecida como “padroeira da liberdade”.
Rita Lee Jones nasceu em São Paulo, em 31 de dezembro de 1947. Seu pai, Charles Jones, era dentista e filho de imigrantes dos EUA. Sua mãe, a filha de italianos Romilda Padula, era pianista, e incentivou a filha a estudar o mesmo instrumento e a cantar com as irmãs.
Aos 16 anos, Rita participou de um trio vocal feminino, as Teenage Singers, e fez apresentações amadoras em festas de colégios. Nessa fase, o cantor e produtor Tony Campello descobriu as meninas cantoras e as chamou para participar de gravações como backing vocals.
Em 1964 ela entrou em um grupo de rock chamado Six Sided Rockers, que depois de algumas mudanças de formação e de nome deu origem aos Mutantes, banda que depois ganharia status de cult na cena do rock mundial. Surgido em 1966, o grupo foi formado originalmente por Rita e pelos irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias Baptista. A banda foi peça chave para o Propicalismo, ao combinar a psicodelia com os ritmos regionais brasileiros, em sua participação no álbum Tropicália ou Panis et Circensis, de 1968. Entre suas passagens emblemáticas, o trio acompanhou Gilberto Gil em “Domingo no parque” no 3º Festival de Música Popular Brasileira da Record, em 1967, e Caetano Veloso em “É proibido proibir” no 3º Festival Internacional da Canção, da Globo em 1968, dois marcos da tropicália.
Rita integrou os Mutantes no período mais criativo, de 1966 a 1972, colaborando com a composicão de canções e a gravação de vários álbuns. O turbulento fim do relacionamento com Arnaldo Baptista coincidiu com a saída dela dos Mutantes. O primeiro álbum solo foi Build up, lançado em 1970, ainda antes de deixar o grupo. Na transição da saída do grupo, também gravou Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida, em 1972. Entretanto, sua carreira pós-Mutantes tomou direção mais significativa ao montar a banda Tutti Frutti, que a acompanhou na gravação de cinco álbuns. O destaque nesta fase foi o álbum Fruto proibido, de 1975, que trouxe a faixa “Agora só falta você”. O grupo conquistou uma série de premiações relevantes da música e fez história no rock nacional.
Em 1979, começou a trabalhar em parceria com Roberto de Carvalho, com foco cada vez mais certeiro na carreira solo. Rita compôs e gravou canções de pop rock, muitas delas românticas, que emplacaram imenso sucesso. Um dos álbuns mais bem sucedidos foi Rita Lee, de 1979, com “Mania de Você”, “Chega mais” e “Doce Vampiro”. No disco de mesmo nome lançado em 1980, ela seguiu na direção mais pop e ampliou o sucesso com “Lança perfume” e “Baila comigo”. De lá pra cá foram inúmeros trabalhos, hits e prêmios. Rita foi uma roqueira popular antes e depois de o gênero se tornar um fenômeno comercial no país em meados dos anos 1980.
No início dos anos 1990, ela passou quatro anos separada de Roberto de Carvalho. O retorno foi em 1995, na turnê do álbum A marca da Zorra, quando ela também abriu os shows dos Rolling Stones no Brasil. No ano seguinte, eles se casaram no civil após 20 anos vivendo juntos. Já em 2001, Rita Lee ganhou o Grammy Latino de Melhor Álbum de Rock em Língua Portuguesa com 3001. Ela ainda teria mais cinco indicações ao prêmio, e receberia em 2022 o prêmio de Excelência Musical pelo conjunto da obra. Seu último álbum de canções inéditas em estúdio saiu em abril de 2012. Reza era, então, seu primeiro trabalho de inéditas em nove anos. A faixa-título foi a música de trabalho, definida por ela como “reza de proteção de invejas, raivas e pragas”. Ao todo foram 40 álbuns, sendo 6 dos Mutantes e 34 na carreira solo.
Apesar da bela trajetória artística, Rita sempre falou abertamente sobre sua luta contra os vícios das drogas e do alcoolismo. Em maio de 2021, foi diagnosticada com câncer de pulmão. Submeteu-se a tratamentos de imunoterapia e radioterapia. Quatro meses depois, lançou o último single da carreira, “Changes”, em parceria com Roberto de Carvalho e o produtor Gui Boratto. Nos últimos anos, ela viveu em um sítio no interior de São Paulo com a família. Ela deixou três filhos: Roberto, João e Antônio.
Thiago Vieira, historiador, doutorando e membro do Grupo de Estudos Culturais do câmpus da Unesp em Franca, diz que parte do grande interesse que o trabalho de Rita Lee despertou em meio à cena musical brasileira pode ser atribuído ao fato de ser popular e acessível. “Essa acessibilidade da Rita Lee se dá pela sua presença nos rádios, nos programas televisivos, pela vendagem de discos. Mas, sobretudo, pela linguagem. É uma linguagem muito singular, uma linguagem de liberdade. Ela construiu uma postura bastante própria enquanto artista, sua carreira, sua trajetória, que foi brilhante, e conseguiu se conectar às pessoas inclusive de diferentes gerações”, diz.
De acordo com o pesquisador, desde o início da sua carreira, Rita desempenhou um papel marcante na cena do rock e da música brasileira. “Especificamente no ano de 1967, sua aparição pública foi bastante importante para aquele momento da música popular brasileira. Era a explosão do Movimento Tropicalista, que foi fundamental na renovação da canção popular no Brasil. Isso se deu de forma contundente pela presença das guitarras elétricas, pela presença de outra linguagem e sobretudo por expor os muros que separavam a música brasileira da música estrangeira”, relata.
“É importante nós lembrarmos que naquele período havia uma certa cisão entre a defesa de uma música mais nacionalista, uma música ligada ao protesto social, ao engajamento, e uma música que foi entendida por essa parcela mais engajada como desinteressada, entreguista. E a renovação dessa linguagem trazida pelo Tropicalismo mostrou que fato de que um estilo musical recebesse influência estrangeira não fazia dele uma música alienada. Muito pelo contrário, estava sintonizado com os movimentos de juventude.”
Segundo o pesquisador da Unesp, ao lado de outros artistas, Rita Lee teve um papel enorme e diferenciado na assimilação da linguagem do rock no Brasil, que foi além da música e envolveu também questões de comportamento. “Apesar das influências do rock londrino e experimental que ela e os Mutantes trouxeram, Rita sempre fez uma defesa ampla de uma linha mais libertária, de ser uma mulher que estava ancorada nos seus direitos, na busca de seus direitos, acompanhando movimentos que aconteciam na Europa e nos Estados Unidos. Neste grande bojo da contracultura, ela vai trazer uma atitude ligada ao rock. Não apenas a sonoridade do rock, mas também uma atitude transgressora, underground. Isso é bastante importante para entender como o seu papel colaborou para renovar, ao longo da década de 1960, a linguagem da canção no Brasil. Apesar de se tornar mais pop ao longo da carreira, Rita foi uma artista de muitas facetas, mas nunca abriu mão de sua singularidade”, diz.
Por ser uma figura transgressora, Rita tencionou os padrões estabelecidos de forma bastante universal, num movimento que atravessou inclusive diferentes gerações. Esse é um legado que ela deixa. “Talvez Rita Lee tenha sido, na história recente do Brasil, uma das principais figuras a levar essa ideia adiante. A dizer que as pessoas não são obrigadas de fato a conviver com padrões que elas julgam inadequados. Aquele espírito que está presente, por exemplo, naquela canção dela, ainda com os Mutantes, ‘Panis et Circencis’ que diz que as pessoas estão sempre interessadas pelas trivialidades do cotidiano. Essa é uma experiência que continua muito presente, no sentido de que a semente para a indignação precisa sempre estar viva. Eu acho que esse é o grande legado dela, uma artista que nunca vai se perder na memória musical brasileira.”
Confira abaixo a entrevista completa no Podcast Unesp.
Este texto foi originalmente publicado pelo Jornal da Unesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.