Escrevo sobre meio ambiente há mais de 10 anos e, embora haja muitos animais que não conheço, pensei ter ouvido falar da maioria dos primatas do mundo. Foi então que um conservacionista me mandou uma foto de um sagui-da-serra (Callithrix flaviceps). Fiquei fascinado por sua expresssão facial, que me lembrou a de um palhaço triste, e me perguntei como foi que passei tanto tempo sem ter conhecimento desse macaco.
Parece que eu não era o único. A espécie é pouco conhecida pelos brasileiros e até recentemente tinha pouca atenção direta dos conservacionistas. Somente há alguns anos, Rodrigo Salles de Carvalho e seu grupo do Programa de Conservação dos Saguis-da-Serra (PCSS) decidiram se concentrar na espécie, juntamente com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que redigiu o Plano de Ação Nacional para Conservação de Espécies Ameaçadas de Extinção, ou PAN. O PCSS há muito tempo vinha trabalhando para conservar o sagui-da-serra-escuro (Callithrix aurita), que habita regiões semelhantes, e quanto mais eles aprendiam sobre o sagui-da-serra, mais preocupados eles ficavam.
Nos últimos anos, Carvalho, sua equipe no PCSS e seus colaboradores perceberam que o sagui-da-serra está em apuros. A Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) atualizou seu status para “criticamente em perigo”, e os pesquisadores estimam que sua população não seja maior que 2.500 indivíduos (talvez até menor do que isso). É um dos primatas mais ameaçados do mundo.
“Eles têm uma pelagem cor de café muito charmosa”, diz Carvalho. “E trocar olhares com seus olhos bastante vivazes é uma experiência extraordinária”. Ainda assim, quando vi a foto so sagui-da-serra pela primeira vez, não pude deixar de pensar que parecia um pouco melancólico, mas ainda assim atraente. Foi o suficiente para eu querer ir mais fundo e descobrir o que está acontecendo com esses nossos pequenos parentes. E não é nada bom.
Em primeiro lugar, esses saguis vivem em uma pequena região da Mata Atlântica – um dos biomas mais devastados do planeta, com menos de 16% ainda de pé. Além do mais, a espécie está sendo atingida pela febre amarela, mudanças climáticas e, o pior de tudo, a hibridização com espécies invasoras de saguis, uma questão recente que pode decretar a extinção dos saguis-da-serra.
A espécie precisa de ações rápidas e agressivas para salvaguardar sua sobrevivência, mas isso requer dinheiro e apoio. Dado que poucas pessoas ouviram falar deste animal, Carvalho diz que seu grupo luta para conseguir o financiamento necessário.
Os saguis são um grupo diversificado de 22 pequenas espécies de primatas encontrados na América do Sul, incluindo os menores macacos do mundo (os saguis-pigmeus ocidentais e orientais, Cebuella pygmaea e Cebuella niveiventris). Eles fazem parte da família Callitrichidae, que também inclui os micos.
O sagui-da-serra é único por uma série de razões. Além de sua pelagem e sua expressão facial, como observado, é também um dos dois únicos saguis conhecidos que habitam áreas de maior altitude, o que faz com que sejam capazes de sobreviver a temperaturas mais frias. A espécie ainda apresenta o menor alcance de qualquer sagui, cobrindo apenas 28.500 quilômetros quadrados dos estados do Espírito Santo e Minas Gerais.
Os saguis-da-serra também têm um paladar diversificado: comem frutas, insetos, pássaros pequenos, sapos e até mesmo ovos. Pesquisas mostraram que o sagui-da-serra tem gosto até mesmo por cogumelos, de maneira sazonal.
Avistá-los na natureza, no entanto, é quase impossível. Carvalho descreve-os como tímidos em comparação à maioria das outras espécies de saguis. De fato, ele os viu apenas algumas vezes em seu trabalho na floresta. A equipe geralmente usa chamadas pré-gravadas de outros saguis para ver se conseguem atraí-los a fim de avaliar a população.
“Quando finalmente eles respondem às nossas chamadas de reprodução e nós os vemos, ficamos alegres como crianças recebendo presentes de Natal”, diz Carvalho. Uma vez, ele teve a sorte de ver uma trupe de cerca de 10 animais – uma surpresa, já que os biólogos não esperavam que grupos de saguis-da-serra contivessem tantos indivíduos.
“Eles fazem esse canto como se fosse o de um pássaro. Eles se movimentam muito rápido. Eu diria que eles são realmente belos animais”, diz Carla B. Possamai, coordenadora do projeto Projeto Comunidade de Primatas de Caratinga, que tem rastreado populações de saguis-da-serra em Espírito Santo.
A tentativa de listar o número de questões que afetam o sagui-da-serra é assustadora. Comecemos com o mais óbvio: a Mata Atlântica é um bioma fragmentado, encolhido e danificado. Antes espalhada por 1,2 milhões de km2, a ocupação humana a reduziu a apenas uma fração de sua área original.
Desde a chegada dos portugueses em 1500, a floresta sucumbiu à urbanização maciça, aos grandes cultivos agrícolas, à criação de gado e à mineração. Quase tudo o que resta está fracionado, cercado por cidades e terras agrícolas. Como o desmatamento continua, muitas espécies animais estão à beira do desaparecimento.
Foi nesse contexto que o sagui-da-serra chegou ao século 21, onde agora enfrenta outras três grandes ameaças: doenças, mudanças climáticas e, o mais urgente de tudo, a hibridização.
Por ser uma das raras espécies de sagui a habitar áreas de altitude, isso o torna um animal ainda mais sensível às mudanças climáticas. À medida que o clima nas montanhas esquenta, as espécies de clima frio são empurradas cada vez mais para o alto até que literalmente não tenham mais para onde ir. Apesar de estarem em alerta e preocupados, os pesquisadores ainda não sabem o impacto que a mudança climática está tendo sobre essa espécie.
Ainda tem a febre amarela, que atingiu o habitat do sagui-da-serra no final de 2016 e dizimou as populações de primatas nas frações da Mata Atlântica. Os fazendeiros disseram aos conservacionistas que “a floresta ficou em silêncio”.
Carla Possamai estava monitorando uma reserva privada de mil hectares em Caratinga (MG) durante o surto de febre amarela, catalogando o muriqui-do-norte (Brachyteles hypoxanthus), o maior macaco da América do Sul e também criticamente ameaçado, para o Projeto Muriqui de Caratinga. O local também tinha sido o lar de cerca de 200 saguis, mas após o surto de febre amarela Possamai não viu mais nenhum. Em resposta, o projeto foi expandido da procura de apenas muriquis para o levantamento de vários primatas, incluindo o sagui-da-serra. Possamai buscou o sagui-da-serra durante meses, fazendo soar repetidamente o canto dos saguis, sem sucesso.
Possamai estava começando a acreditar que a espécie havia desaparecido completamente desse trecho de floresta até outubro de 2017, quando dois saguis-da-serra apareceram na copa das árvores.
“Antes [do surto de febre amarela], havia um lugar específico na floresta que os turistas costumavam ir e os saguis apareciam. Eles eram muito fáceis de ver”, diz Possamai, observando que um grupo era particularmente famoso por passear e entreter os turistas. “Hoje em dia, às vezes leva dois meses para encontrá-los”, diz ela.
Depois daquela primeira aparição, Possamai não voltou a ver os saguis por mais três meses.
Atualmente, esse trecho específico de floresta abriga apenas 17 indivíduos, distribuídos em três grupos familiares – longe de ser o que era antes do surto de febre amarela. Apesar de a população parecer estável, a mesma não parece estar se recuperando. “Estou realmente preocupada com isso”, diz Possamai.
Como se tudo isso não fosse suficiente, o sagui-da-serra corre o risco de desaparecer completamente devido à hibridização.
No Brasil, houve um tempo em que os saguis eram uma febre como animais de estimação. Retirados da natureza e vendidos em feiras, os “animais de estimação” eram principalmente os saguis-de-tufo-branco (Callithrix jacchus) e os micos-estrela (Callithrix penicillata).
Os comerciantes embebedavam os macacos, de modo que pareciam “muito simpáticos [e] muito amáveis” aos clientes, diz Cecília Kierulff, do Instituto Nacional da Mata Atlântica, ou Inma. Ela descreve o processo como “horrível”. Os clientes levavam o macaco embriagado para casa, e depois de algumas horas, o sagui “enlouquecia”, segundo Carvalho. Não só o macaco não estava mais sedado, mas também sofria de uma ressaca terrível.
“Depois que começamos a trabalhar com os saguis, muitas pessoas disseram: ‘Quando eu era criança, meu tio me deu um sagui’. Milhares de histórias como essa”, diz Carvalho. “Claro, 90% foram soltos de volta na natureza”, acrescenta o pesquisador, lembrando que quando as pessoas percebiam que o que haviam comprado não era um animal dócil, elas largavam os saguis na floresta mais próxima. No entanto, essas florestas já tinham seus saguis nativos: os saguis-da-serra.
Os antigos animais de estimação, então invasores, começaram a se reproduzir com os saguis-da-serra, gerando híbridos. Muito rapidamente, as populações se tornaram inteiramente hibridizadas – misturas genéticas de várias espécies de saguis.
Kierulff diz que é olhos treinados como os dos pesquisadores conseguem diferenciar híbridos e saguis não misturados. “Quando você vê um grupo em que cada um é diferente do outro, algo está errado”, diz ela, ressaltando que a hibridização pode muitas vezes acontecer rapidamente. “Basta apenas um híbrido entrando em uma área protegida.”
No passado, para se livrarem dos híbridos, os conservacionistas talvez tivessem praticado o abate. Entretanto, hoje, esse não seria o caminho a seguir por uma série de razões. Muitos são contra por razões éticas, e mesmo aqueles que o considerariam como alternativa não acreditam que o público brasileiro ou os legisladores apoiariam a matança direta dos saguis híbridos. Uma ideia mais palatável que está sendo discutida pode ser a esterilização de animais híbridos.
No entanto, Carvalho diz estar colocando toda sua energia na identificação de “portos seguros” – florestas que poderiam ser preservadas ativamente para manter qualquer sagui invasivo fora das mesmas. O PCSS está mapeando e analisando diferentes florestas, tanto públicas quanto privadas, em busca de potenciais santuários. A busca é por florestas que não possuam corredores de conexão e aquelas cujos limites poderiam ser, pelo menos de alguma forma, controlados, de forma que não haja contato com outras espécies de saguis. Mas nada disso será fácil ou barato.
Se os pesquisadores puderem identificar locais de “refúgio seguro”, eles precisarão fazer acordos com o governo (se for uma floresta pública), ou com proprietários de terras (se for privada). Será preciso estabelecer vários controles para tentar manter qualquer macaco invasor de fora.
“Todo político fala sobre conservação [no Brasil] mas dinheiro real não temos”, diz Carvalho. “Os administradores de parques também sabem que terão uma grande luta pela frente para conseguir o mínimo de dinheiro para que isso aconteça”.
Kierulff acrescenta que a administração Bolsonaro está cortando fundos para “pesquisa, ciência, para tudo”. O financiamento para pesquisa e o trabalho dos estudantes também está desaparecendo, pondo em perigo o processo de conservação em todo o país.
Atualmente, a maior parte do dinheiro do PCSS vem de zoológicos estrangeiros, como o Beauval, na França, e a Associação Francesa de Parques Zoológicos, ou AFdPZ.
“É graças a eles que sobrevivemos”, diz Carvalho, acrescentando que seu grupo está trabalhando para expandir seu fluxo de receitas. O fato de a PCSS ser financiada em grande parte por zoológicos não é surpreendente: Os zôos são algumas das únicas instituições dispostas a financiar a conservação direta de espécies menos conhecidas.
A criação em cativeiro é outra ideia. Atualmente não existem saguis-da-serra em um programa de criação em cativeiro, o que significa que, se eles desaparecerem da natureza, não haverá populações para evitar a extinção total e deixar opções abertas para a reprodução.
“Todos os especialistas concordam que precisamos de uma população cativa”, diz Kierulff. Mas isso também exigirá financiamento e tempo, ambos os quais estão se esgotando para o sagui-da-serra.
Não deveria ser assim. Os primatas são supostamente fáceis de proteger. Eles são, além de carismáticos, nossos parentes mais próximos, algo que geralmente atrai a atenção da opinião pública e se traduz em ações de conservação. Entretanto, uma pesquisa de 2017 detectou que seis em cada dez primatas no mundo estão ameaçados de extinção, e 75% estão vendo suas populações diminuírem. Muitos, como o sagui-da-serra, não estão recebendo, em nenhum momento, a atenção necessária para sua conservação.
Se não podemos salvar um animal tão esplêndido como o sagui-da-serra, o que isso significa para os milhões de outras espécies menos “carismáticas” da Terra? E o que isso diz sobre nós?
“Eles precisam de um mínimo de dinheiro apenas para sobreviver”, diz Kierulff sobre o sagui-da-serra.
Como muitas espécies hoje, o sagui-da-serra está em uma fase em que requer ação humana para sobreviver. Ele não precisa que os humanos simplesmente o deixem em paz – uma tática de conservação que já funcionou para muitas espécies no passado. O sagui-da-serra realmente precisa da nossa intervenção.
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