Uma declaração de um garimpeiro ilegal, publicada terça-feira (28) em uma reportagem do jornal The Guardian, chamou a atenção pelo seu teor ousado.
“Se você me expulsar desta mina… eu irei para outro lugar porque a mineração ilegal nunca vai acabar”, disse o homem cercado pelas tropas armadas do Ibama, ao comandante das forças especiais Felipe Finger.
De acordo com o repórter do The Guardian, o garimpeiro fugitivo atende pelo nome de Edmilson Dias, é ex-açougueiro e mora no estado de Goiás, no centro-oeste.
Sua afirmação, que desdenha das operações de combate ao desmatamento da Amazônia brasileira iniciadas mês passado pela Polícia Federal (PF), certamente é motivo de repulsa para aqueles que têm ciência dos efeitos socioambientais devastadores da mineração.
Entretanto, ao observar mais atentamente a sentença, é possível extrair dela uma pergunta que pode servir como ferramenta norteadora do combate ao garimpo ilegal:
O que traz segurança para um garimpeiro afirmar com tanta certeza que continuará atuando de maneira destrutiva e criminosa em território nacional?
Intuitivamente, é possível dizer que a primeira razão para Edmilson fazer tal afirmação é o sentimento de impunidade. Mas seria esse sentimento gerado somente pela falta de fiscalização?
Em um artigo publicado originalmente no Jornal USP, Pedro Luiz Côrtes, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP afirma que a atividade ilegal permanece porque “…há falta de fiscalização, houve um desmonte das estruturas de fiscalização do Ibama e do Ministério do Meio Ambiente”.
Nesse mesmo escopo da fiscalização, um outro artigo, publicado originalmente no jornal Repórter Brasil, sugere nove medidas principais para combater o garimpo ilegal:
Não é só a falta de fiscalização que permite o estabelecimento da atividade garimpeira. A segunda razão que embasa a estrutura do garimpo ilegal é a falta de oportunidades para a população economicamente ativa dos principais estados afetados pela mineração clandestina.
Com a escassez de políticas sociais para os mais pobres, o garimpo se torna uma das poucas formas de obter recursos econômicos. Em situação de extrema pobreza, a população é levada pela lógica de exploração ali existente. Quando não há dinheiro para uma vida digna, as pessoas vulneráveis economicamente são forçadas a realizarem trabalhos impróprios.
É importante ressaltar que a situação de crise socioambiental na qual o Brasil se encontra não se iniciou no governo Bolsonaro. Embora a existência do mandato bolsonarista tenha impulsionado problemas socioambientais, agravando a tragédia humanitária dos Yanomami, por exemplo, a crise socioambiental é um produto que se iniciou com a instalação do liberalismo, sendo gerada de forma histórica-material pela colonização europeia.
O governo Bolsonaro, com o ministro do meio ambiente já tendo sido inclusive acusado de cometer crimes ambientais, promoveu o desmantelamento das políticas ambientais. Usando discursos ecocídas que apelavam para a ideia de “progresso”, esses governantes foram apoiados por parte da população, que acredita que o acesso a uma vida plena exige a degradação ambiental.
Entretanto, a história tem nos mostrado que essa premissa é um equívoco. Em seu livro “Sob os Tempos do Equinócio”, Eduardo Góes Neves discorre sobre o fato de a Amazônia ter sido uma “construção vegetal” possibilitada pela existência dos povos originários que habitavam a América Latina antes do colonialismo. Isso significa dizer que a presença desses povos, com seus métodos de subsistência, não só viabilizou, mas foi crucial para a produção do que hoje conhecemos como Amazônia, tendo sido também exemplos de modos de vida completamente alinhados à riqueza de biodiversidade.
Dessa forma, é importante desvincular a imagem da presença humana da ideia de que ela é intrinsecamente destrutiva ao meio ambiente. A degradação ambiental e o genocídio dos povos originários tem se dado por causa do emprego dos métodos de subsistência liberais europeus, como a implantação das monoculturas, emprego da Química Verde e estratégias de mercado ecocídas como a obsolescência programada.
Nesse sentido, a colonização atingiu não somente os territórios brasileiros, mas povoou o imaginário coletivo ao perpetuar ideias lineares de “progresso”, “mudança” e “desenvolvimento” como necessidades inadiáveis permitidas a qualquer custo.
Nesse processo, além da dizimação dos povos originários da América Latina, houve a desaculturação de povos indígenas africanos, que foram forçadamente retirados de suas terras natais para exercer trabalho escravo no Brasil.
Como Fato Social desse cenário, estabeleceu-se o que o líder afro-americano de direitos civis Dr. Benjamin Franklin Chavis chamou de racismo ambiental.
O racismo ambiental expõe as pessoas racializadas, como os negros e os indígenas, às piores consequências das externalidades negativas dos empreendimentos capitalistas e a fenômenos ambientais nocivos como consequência de sua exclusão dos lugares de tomada de decisão.
No contexto internacional, o racismo ambiental também se refere às relações ecológicas desfavorecidas entre o norte e o sul global, como consequência de colonialismo, neoliberalismo e globalização.
Esse processo tem sido brutal para todos os seres vivos e está embasado na crença coletiva de que não são possíveis outros modos de vida amigáveis à biodiversidade. Essa forma psíquica-material é a estrutura que promove a degradação socioambiental contemporânea. Por isso, apenas mudanças fiscalizativas não serão capazes de dar conta de combater o garimpo ilegal. É preciso haver um engajamento global em modos de vida pró-vida.
Talvez, de modo inconsciente, Edmilson, o garimpeiro ilegal que afirma com segurança que voltará a atividade após a operação da PF, sabe que as estruturas que impulsionam a mineração na Amazônia são muito mais potentes que operações pontuais.
Todavia, afirmar isso não significa dizer que a repressão a atividades ilegais por meio da força militar é inútil. Na verdade, a ação do Ibama é urgente, principalmente ao levar em conta o cenário de destruição ambiental e genocídio dos Yanomami que está nos levando para um ponto de não retorno.
Entretanto, embasar as políticas ambientais somente na militarização é como construir uma casa de alvenaria em areia movediça. A alvenaria é um material sólido e resistente, mas, para uma casa exercer sua função de abrigo, precisa ter uma boa fundação, uma estrutura capaz de mantê-la.
Com isso, quero dizer que, não basta para o Brasil eleger um governo que se comprometa em combater o garimpo ilegal com a retomada da atuação das instituições ambientais. É preciso de uma sociedade civil organizada a nível mundial que subverta a lógica da exploração dos recursos naturais pelo lucro. É necessário criar novos valores enquanto coletividade, lutando pelo o que o engenheiro ambiental e cientista político Malcom Ferdinand martinicano define como ecologia decolonial.
Em outras palavras, para combater o garimpo ilegal em sua raiz, é preciso desconstruir o modelo econômico vigente combatento sua ideologia fundadora, o neoliberalismo.
Utilizamos cookies para oferecer uma melhor experiência de navegação. Ao navegar pelo site você concorda com o uso dos mesmos.
Saiba mais