Por Fernanda Simoneto Machado em Jornal da Universidade UFRGS | O consumidor brasileiro sentiu no bolso o aumento no valor dos produtos alimentícios. Relatório recente do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) mostrou que, enquanto o reajuste do salário mínimo de 2021 para 2022 acompanhou a inflação (de 10,06%), o valor dos alimentos não seguiu o mesmo comportamento. Em um ano, a inflação registrada nos itens que mais comumente estão na mesa dos brasileiros, como arroz, feijão e óleo, foi de 14,8%.
O maior custo dos produtos alimentícios não se reflete somente na quantidade de comida disponível para as famílias, mas na qualidade das opções que estão no mercado. Nos últimos meses, cresceu a quantidade dos chamados “produtos alternativos”. É o caso da mistura láctea condensada, encontrada ao lado do leite condensado nas prateleiras do supermercado. O problema é que, como as embalagens são muito semelhantes, aumenta o risco de confusão para o consumidor.
A pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da Universidade de São Paulo (USP) Camila Borges alerta para a estratégia adotada pela indústria. “Isso tem se tornado uma estratégia comum da indústria: substituir itens que são mais caros e baseados em alimentos in natura ou ingredientes (como açúcar, sal, gordura) por partes de alimentos ou formulações de uso exclusivo industrial, barateando o custo do produto e reduzindo ainda mais sua qualidade nutricional”, afirma.
Desde o início do ano, o preço dos derivados de leite teve um aumento de 39,58%, de acordo com o Índice de Preços ao Consumidor (IPCA). A variação reflete nos produtos disponíveis ao consumidor, já que, por conta do aumento no preço da matéria-prima, a indústria busca produtos alternativos e com preços mais baixos.
A professora do Instituto de Ciência e Tecnologia de Alimentos (ICTA) da UFRGS Simone Flores alerta para essa mudança na qualidade final dos produtos.
“Vai ficar com uma qualidade inferior? Com certeza, porque não é um leite condensado, é um alimento alternativo ao uso do leite condensado, que é um alimento mais caro. O leite condensado tem que ser de leite e açúcar, somente, não pode ter outro ingrediente. E esse outro vai ter outros ingredientes, amido de milho, 50% de leite e outros produtos para compensar”
Vale destacar que não existe nenhuma ilegalidade na comercialização desses itens. O problema está na semelhança entre as embalagens de produtos que têm composições diferentes, o que pode induzir o consumidor ao erro.
A resolução n.º 259/2002 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) determina a proibição da circulação de rótulos que possam gerar confusão ou engano ao consumidor. Soma-se ao rótulo parecido a localização desses produtos nas prateleiras do supermercado, já que geralmente estão agrupados com itens conhecidos dos brasileiros.
“O consumidor tem que ter acesso [à informação relativa] ao que ele está comprando. É preocupante o fato de serem embalagens muito similares, porque você pode comprar e se sentir enganado, e a legislação não permite”, defende Simone.
A professora da Faculdade de Direito da UFRGS Cláudia Lima Marques destaca que o consumidor tem o direito de ser informado sobre o conteúdo e as possíveis mudanças de um produto. Uma vez que isso seja cumprido, a atividade da indústria está de acordo com a legislação. Ela alerta, no entanto, para a mensagem direcionada ao público. “Os rótulos tem um simbolismo para o consumidor, então não podem enganá-lo”, explica.
A resolução 429/2020, que determina a rotulagem frontal dos alimentos e entra em vigor a partir de outubro no país, pode trazer mudanças, mas especialistas questionam a efetividade da resolução. “A nova lei de rotulagem dos alimentos vai deixar a tabela nutricional mais clara e com mais informações. Apenas os alimentos que ultrapassarem as quantidades definidas pela Anvisa para esses nutrientes críticos ganharão um selo, informando ao consumidor sobre os excessos”, afirma Camila.
“A nova rotulagem de alimentos é um passo para conscientizar a população sobre o consumo de ultraprocessados. O Brasil, no entanto, ainda tem um longo caminho em termos de políticas públicas para regular ambientes alimentares, tornando-os mais saudáveis”
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Quem frequenta os supermercados brasileiros está acostumado com prateleiras recheadas de embalagens de produtos alimentícios. Não é novidade, contudo, que dentro de um supermercado nem tudo é o que parece. Nutricionistas e profissionais da área da saúde alertam, há algum tempo, sobre a necessidade de os consumidores checarem os rótulos dos produtos que consomem.
Pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgada em 2020 indica que o consumo de ultraprocessados teve um salto de 5,8% entre o período de 2003-2004 e 2017-2018 no país. Para a pesquisadora da Nupens, esse aumento tem explicações variadas. Entre as razões, ela destaca o ritmo acelerado de trabalho de muitos brasileiros e a ideia de que consumir alimentos ultraprocessados é mais fácil e rápido.
“Hoje, com a inflação do preço de alimentos frescos, por vezes uma dieta baseada em ultraprocessados acaba saindo mais barata do que a alimentação baseada em alimentos in natura. Deixamos de consumir carnes frescas, por exemplo, e passamos a consumir salsicha”, exemplifica.
“Já temos estudos brasileiros mostrando que pessoas pretas, pardas, amarelas e indígenas que vivem em áreas periféricas estão mais expostas a comércios varejistas, que comercializam maior quantidade de alimentos ultraprocessados, se comparado a outros bairros de maioria branca e de maior nível de renda”
De acordo com o Guia Alimentar da População Brasileira, alimentos ultraprocessados são formulações industriais que passam por processos para estender a duração, alterar o sabor, a textura, o aroma e a cor. Normalmente, rótulos de alimentos ultraprocessados contêm uma lista extensa de ingredientes, já que têm sua composição natural alterada.
Para a nutricionista e professora da UFRGS Eliziane Ruiz, não é correto encarar o consumo desses alimentos como uma questão de escolha do consumidor. “Até que ponto o consumidor, mesmo sendo educado e conscientizado, consegue fazer essas escolhas? Questões socioeconômicas e de acesso físico a essas mercadorias são determinantes.”
A pesquisadora destaca, ainda, o crescimento da insegurança alimentar no país. Edição mais recente do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil mostra que 58,7% dos brasileiros possuem algum grau de insegurança alimentar. “É mais da metade da população que, quando tem acesso à alimentação, já são produtos de menor qualidade e com diminuição da quantidade. Não há, então, escolha, argumenta.”
A reportagem tentou contato com a assessoria de imprensa da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia), mas não recebeu retorno até o fechamento desta matéria.
Este texto foi originalmente publicado por Jornal da Universidade UFRGS de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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