Será que ingerir as bactérias dos laticínios pode melhorar sua saúde?

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Por Unesp Para Jovens |

As bactérias nos mantêm saudáveis

As bactérias foram uma das primeiras formas de vida a surgir na Terra. São organismos minúsculos, constituídos por uma única célula. Existem várias espécies (tipos principais) de bactérias, que podem apresentar grandes diferenças umas das outras: algumas vivem nas profundezas do oceano, a temperaturas superiores às da água fervente, enquanto outras se dão muito bem no gelo da Antártida. Já que as bactérias povoam toda a face da Terra, não é surpresa que algumas espécies coabitem com os humanos – sim, um grande número de bactérias vive por dentro e por fora de nossos corpos.

Infelizmente, os humanos costumam pensar nas bactérias como criaturas más, devido ao fato de que algumas espécies causam doenças. Sim, umas são malvadas – mas outras são boazinhas! Na verdade, muitas bactérias nos impedem de ficar doentes, e algumas até nos ajudam a permanecer saudáveis [1, 2]. A maioria das que vivem dentro do corpo humano está nos intestinos. Essas bactérias benéficas nos protegem contra aquelas que causam doenças, ajudam-nos a digerir os alimentos e produzem vitaminas de que nosso corpo precisa, mas não consegue produzir sozinho [1]. Recentemente, pesquisadores descobriram que as bactérias intestinais podem até influenciar a saúde mental [1]. Em conjunto, as bactérias intestinais são conhecidas como microbioma intestinal.

O que é um microbioma intestinal é saudável?

De que modo podemos estimular as bactérias boas sem fortalecer as más? Uma das maneiras é nutrir nossas bactérias boas com seus alimentos favoritos. As comidas de tipo fast food, por exemplo, embora muito saborosas, não fazem bem nem para nós nem para elas. Elas contém muito açúcar e quase nada de vitaminas e fibras. Muitas bactérias boas dos intestinos preferem ser alimentadas com fibras e, quando não recebem o suficiente, podem morrer de fome! É importante, para o microbioma intestinal, abrigar diversos tipos de bactérias porque uma diversidade elevada nos torna mais resistentes a infecções e aos efeitos da ameaça ocasional do fast food. Como isso acontece?

Suponha que as bactérias no trato intestinal sejam muito variadas. Algumas gostam de ingerir açúcar, outras gorduras, outras fibras e outras proteínas. Nesse caso, não havendo açúcar por ali, só as comedoras de açúcar ficam fracas – as outras continuam bem, ou seja, a comunidade como um todo ainda está forte. No entanto, se quase todas as bactérias comerem açúcar, o microbioma se enfraquecerá na ausência desse alimento, facilitando para as bactérias más apossar-se dos intestinos e provocar doenças. Por isso é tão importante uma dieta equilibrada.

Há outro motivo pelo qual a pouca diversidade de bactérias nos intestinos pode ser ruim. Havendo diversidade, vários tipos de bactérias desempenham a mesma função em sua comunidade, como digerir açúcar de leite ou produzir vitaminas. Se faltar uma espécie, outra toma seu lugar. Em um microbioma intestinal menos diversificado, isso nem sempre é possível, e ele se enfraquece. Uma estratégia para robustecer o microbioma intestinal, e, portanto, a saúde humana, seria garantir que diferentes espécies desempenhassem as mesmas funções. Isso é possível suplementando essas bactérias por meio de dietas.

O iogurte e o queijo podem nutrir o microbioma intestinal?

Existem bactérias em muitos alimentos, sobretudo laticínios (como queijo e iogurte), consumidos desde eras remotas. Há dez mil anos, quando a maioria das pessoas ainda vivia como caçadores-coletadores, todos os humanos eram intolerantes à lactose, ou seja, podiam beber leite quando crianças, mas, se o fizessem quando adultos, experimentariam uma sensação de inchaço e mal-estar. Depois que começaram a criar ovelhas, vacas e outros animais produtores de leite, descobriram meios de processar o leite de modo que ele tivesse um gosto diferente, durasse mais e, não menos importante, pudesse ser digerido sem fazê-los se sentir mal [3]. Esse processo, chamado fermentação, foi responsável pela produção dos primeiros iogurtes e queijos. Mas essas comunidades ignoravam que a causa da fermentação estava nas bactérias.

Certas espécies de bactérias vivem e proliferam no leite, modificando seu gosto, textura e composição. Após a fermentação, há mais bactérias (pelo menos 20 bilhões) num copo de iogurte (200 g) do que seres humanos na Terra (8 bilhões)!

Os antigos iogurtes continham muitas espécies distintas de bactérias e cada iogurte era diferente. Ao contrário, quase todos os iogurtes modernos contêm apenas duas espécies, selecionadas para uma produção em massa mais rápida e confiável. Seria possível fazer iogurtes com um coquetel diferente de bactérias, otimizado não apenas para produção em massa, mas também para incrementar o microbioma intestinal e melhorar a saúde humana? (Figura 1).

Figura 1. O iogurte e o queijo podem nutrir o microbioma intestinal? (A) Dietas não balanceadas diminuem a diversidade do microbioma intestinal, fazendo com que algumas espécies estejam presentes em pequeno número ou mesmo extintas. Isso reduz a força do microbioma intestinal. (B, C) Estamos tentando descobrir se um laticínio fermentado com bactérias selecionadas pode nutrir ou restaurar as funções de um microbioma intestinal saudável. (D) Essas funções incluem fornecer vitaminas, açúcares e gorduras úteis, além de ajudar na digestão de frutas e legumes.

A busca pelas bactérias corretas

Onde podemos encontrar as bactérias adequadas para fazer iogurtes que beneficiem nossos intestinos? A Suíça tem uma longa tradição na fabricação de iogurtes e queijos. Agroscope, o centro suíço de excelência em pesquisa agrícola, coleta, armazena e estuda as bactérias encontradas em iogurtes e queijos. Até agora, coletou mais de dez mil bactérias diferentes de dezenas de espécies!

Diante de uma quantidade tão grande de bactérias, como decidir quais são as melhores para um iogurte saudável? Com essa finalidade, os cientistas do Agroscope analisaram o DNA de cerca de mil bactérias coletadas, usando um processo chamado sequenciamento para descobrir quais genes elas possuem. Os genes são segmentos curtos de DNA que codificam funções capazes de assegurar a sobrevivência das bactérias. Por exemplo, alguns deles permitem que as bactérias se dividam em duas e outros lhes conferem a capacidade de nadar em seu ambiente.

A suplementação do microbioma intestinal

Nosso projeto era averiguar se as bactérias do iogurte podem ajudar as bactérias intestinais em sua tarefa e, possivelmente, até aumentar a diversidade do microbioma intestinal. Usamos sequências do DNA de quatro microbiomas humanos que continham uma mistura de genes oriundos de diferentes bactérias intestinais. Depois, recorremos a um programa de computador a fim de determinar as funções desses genes, utilizando o mesmo método aplicado para as bactérias de laticínios (Figura 2).

Figura 2. A busca das bactérias certas. Usando sequenciamento de DNA e em seguida análise computacional de dados, descobrimos que 24 bactérias de laticínios do acervo de bactérias do Agroscope (direita) conseguem executar a maioria das funções do microbioma intestinal humano (esquerda). Essa descoberta pode nos ajudar a fabricar um iogurte que auxilie as funções do microbioma intestinal, tornando-o mais flexível e, assim, promovendo a saúde humana.

Quando comparamos as bactérias de laticínios com as bactérias do microbioma humano, ficamos surpresos: cada espécie bacteriana do leite consegue executar cerca de metade das funções do microbioma intestinal humano, embora as bactérias de laticínios vivam em um ambiente totalmente diverso e quase nunca sejam encontradas nos intestinos humanos. Combinadas, nossas 24 espécies de bactérias de laticínios cobriam 89% das funções do microbioma intestinal humano [4]! Também observamos que alguns microbiomas humanos, em comparação com outros, não dispunham de determinadas funções. Algumas destas estão presentes nas bactérias de laticínios, de modo que talvez sejamos capazes de desenvolver um iogurte capaz de suplementar funções ausentes ou perdidas em um microbioma humano, tornando-o mais flexível e melhorando a saúde das pessoas.

E depois?

Nosso estudo mostra que bactérias de queijos e iogurtes possuem funções similares às das bactérias dos intestinos humanos. Achamos que esse conhecimento possa ser muito útil. Por exemplo, pessoas com certas doenças como a obesidade não têm determinados tipos de bactérias intestinais. Assim, em futuros estudos, poderemos recrutar participantes com uma doença conhecida e sem a bactéria que desempenha funções específicas. Em seguida, procuraremos no acervo do Agroscope bactérias do leite que desempenhem as funções em falta para produzir um iogurte com elas. Daremos então esse iogurte aos participantes e avaliaremos os efeitos em sua saúde.

Os humanos vêm criando gado e ingerindo alimentos fermentados há milênios, mas só recentemente obtivemos o conhecimento e as ferramentas necessárias para desenvolver laticínios saudáveis com base em dados específicos. Esse processo é longo, mas vale a pena! Caso os cientistas continuem a explorar o potencial das bactérias para melhorar a saúde humana, poderemos um dia ajudar inúmeras pessoas com doenças como obesidade e diabetes oferecendo-lhes produtos que contenham bactérias úteis.

Glossário

Espécie: Grupo de organismos, como bactérias, que se comportam de modo parecido e possuem genomas muito similares.

Microbioma intestinal: Todas as bactérias que vivem nos intestinos humanos.

Diversidade: A variedade de seres vivos num determinado habitat. Quanto mais espécies houver, maior será a diversidade.

Fermentação: Produção de alimentos como iogurte, queijo, pão, kimchi, cerveja e vinho com a ajuda de levedura ou bactérias.

Sequenciamento: Processo de estudar a composição do DNA de um organismo.

Gene: Segmento de DNA que determina uma característica, capacidade ou função específica de uma forma de vida.

Referências

[1] Wang, H., Wei, C. X., Min, L. e Zhu, L. Y. 2018. “Good or bad: gut bacteria in human health and diseases.” Biotechnol. Biotechnol. Equipment. 32:1075–80. DOI: 10.1080/13102818.2018.1481350.

[2] Marco, M. L., Sanders, M. E., Gänzle, M., Arrieta, M. C., Cotter, P. D., de Vuyst, L. et al. 2021. “The international scientific association for probiotics and prebiotics (ISAPP) consensus statement on fermented foods.” Nat. Rev. Gastroenterol. Hepatol. 18:96–208. DOI: 10.1038/s41575-020-00390-t.

[3] Curry, A. 2013. “The milk revolution.” Nature 500:20–2. DOI: 10.1038/500020a.

[4] Order, T., Wüthrich, D., Bär, C., Sattari, Z., von Ah, U., Ronchi, F. et al. 2020. “In silico comparison shows that the pan-genome of a dairy-related bacterial culture collection covers most reactions annotated to human microbiomes.” Microorganisms. 8:966. DOI: 10:3390/microorganisms8070966.

Citação

Order, T., Pimentel, G., Bär, C., von Ah, U., Bruggmann, R. e Vergères, G. (2022). “Can eating bacteria in dairy products support your health?”. Front. Young Minds. 10:721939. DOI: 10.3389/frym.2022.721939.

Este texto foi originalmente publicado por Unesp Para Jovens de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.

Equipe eCycle

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