O indígena tornou-se um símbolo da resistência dos isolados também porque repetidamente se recusou ao contato; com sua morte, destino dos 8 mil hectares está em risco
Por Rubens Valente em Agência Pública | Um símbolo da resistência dos povos indígenas isolados no país, ele ficou conhecido como “índio do buraco”, por abrir covas no chão, e já foi chamado na imprensa de “homem mais solitário do mundo”. Por mais de 25 anos, esse extraordinário brasileiro – sobre o qual nunca se soube nome, língua e etnia – viveu completamente isolado num pedaço de mata em Rondônia monitorado por indigenistas da Funai (Fundação Nacional do Índio), apesar de intensas pressões de políticos e fazendeiros da região a fim de desacreditar a interdição do território, com cerca de 8 mil hectares, e perseguir os servidores da Funai.
Nesta quarta-feira (24), o indígena foi encontrado pela Funai morto em seu tapiri, “deitado na rede, e paramentado [com penas de arara] como se esperasse a morte”, conforme um indigenista comentou depois. O corpo foi removido para o IML (Instituto Médico Legal) de Porto Velho (RO), onde um exame tentará identificar a causa da morte.
Em 1996, após uma extensa investigação, os indigenistas da Funai Altair Algayer e Marcelo dos Santos conseguiram confirmar a existência do indígena a partir dos primeiros relatos trazidos por um cozinheiro, Gilson, que trabalhava numa serraria na zona rural. Ele contou que madeireiros saíram da mata assustados, dias antes, porque temiam um índio que se movimentava rapidamente na mata.
Marcelo dos Santos disse à Agência Pública neste sábado (27) que o indígena deveria ser enterrado no mesmo local em que viveu e morreu, em um memorial a ser construído pelo Estado brasileiro, e que o território que ele habitava deve ser imediatamente protegido porque corre risco de ser alvo de invasões e degradações. “É óbvio que o corpo tem que ser devolvido à sua terra. Ele é um marco de um genocídio que ainda falta ser detalhado”.
Santos disse que a palavra que define o chamado “índio do buraco” é a “solidão”, à qual ele foi jogado a partir de diversas violências sofridas pelo grupo do qual ele fazia parte e que, com sua morte, desapareceu. “Ele não confiava em ninguém em sua volta porque viveu várias experiências traumatizantes com os não indígenas. Ele temia pela própria vida. Um conjunto de fatores levou a essa solidão. Há relatos de que indígenas isolados foram mortos na região com veneno misturado à comida. Acreditamos que, por isso, ele nunca aceitou a comida que deixávamos para ele na mata.”
O “índio do buraco” tornou-se um símbolo da resistência dos isolados também porque repetidamente recusou um contato mais prolongado, chegando a disparar, por duas vezes em anos diferentes, uma flecha na direção de funcionários da Funai que se aproximaram. No fundo de alguns buracos que abria na mata, costumava colocar lanças de madeira, criando armadilhas para afugentar os invasores da sua terra.
A interdição legal do território por ele habitado é um dos maiores exemplos da chamada “política de não contato” adotada pela Funai logo depois do fim da ditadura militar (1964-1985). Por essa política então inovadora, o órgão indigenista assumiu as tarefas de identificar e monitorar indígenas isolados, protegê-los de ameaças, interditar ou demarcar seus territórios e apenas ir ao seu encontro em caso de perigo iminente representado por invasores, como fazendeiros, madeireiros e garimpeiros, ou a partir da decisão dos próprios isolados.
Marcelo e Altair conseguiram confirmar a existência do indígena em dezembro de 1996. Depois a Funai assinou a primeira Portaria de Restrição de Uso, pela qual não indígenas ficaram proibidos de ingressar num pedaço de mata de cerca de 8 mil hectares que incide sobre quatro municípios de Rondônia (Chupinguaia, Corumbiara, Parecis e Pimenteiras do Oeste). A portaria foi renovada em 2009, 2012 e 2015 e o território recebeu o nome de Terra Indígena Tanaru. Com a morte do “índio do buraco”, também surge uma inquietação sobre o destino desses 8 mil hectares pelo risco iminente de serem invadidos e degradados.
O indigenista Antenor Vaz, especialista no tema dos isolados, que também atuou por anos em Rondônia, disse que o “índio do buraco” sintetiza “o mais alto grau de resistência, da luta de um povo”. “Mesmo após o possível massacre que seu povo sofreu, tudo leva a crer que sofreu, ele ainda permaneceu na sua luta”, disse Vaz.
“Ele também sintetiza todas as violações possíveis que uma sociedade majoritária pode cometer contra um povo indígena. Foi negado a esse grupo qualquer direito de viver.”
Vaz também sugeriu, a exemplo de Santos, que “o último e lamentável ato que o Estado brasileiro pode fazer, em reconhecimento à bravura desse índio, é manter a Terra Indígena Tanaru como memorial de resistência dos povos isolados”, destinado à capacitação sobre as políticas públicas voltadas para os isolados. Para Vaz, o corpo do “índio do buraco” deve ser enterrado, em “um mausoléu”, no mesmo local em que viveu e morreu.
Nos anos 90, Marcelo Santos e Altair Algayer trabalhavam numa Frente de Contato da Funai em Rondônia quando receberam as primeiras informações sobre a existência de um misterioso indígena que morava sozinho na mata. Em 1995, pela Funai, a dupla havia conseguido localizar outros dois grupos de indígenas isolados na mesma região, os Kanoê e os Akuntsu. Parte dos contatos foi acompanhada e registrada pelo documentarista Vincent Carelli.
A notícia da localização desses dois grupos ganhou o mundo, provocando a reação de fazendeiros e madeireiros contra a Frente de Contato. Eles chegaram a acusar falsamente Marcelo de ter “plantado” os indígenas no local. Na época não tinha esse nome, mas era uma “fake news”. O território depois foi enfim demarcado pelo governo como Terra Indígena Rio Omerê, com 26 mil hectares.
Os primeiros contatos da Funai com o “índio do buraco” ocorreram em expedições organizadas por Altair e Marcelo com a participação de indígenas Kanoê, que poderiam atuar como intérpretes, outros servidores da Funai e o documentarista franco-brasileiro Vicent Carelli. Por volta de 1998, com uma câmera instalada numa árvore, Carelli também conseguiu filmar rapidamente o “índio do buraco”, que na ocasião também recusou um contato – as informações constam do livro “O último da tribo” (Companhia das Letras, 2010), escrito pelo jornalista norte-americano Monte Reel.
A localização do novo indígena isolado novamente acirrou as ações contra Altair e Marcelo, que passaram a ser alvos de uma série de acusações que se mostraram infundadas. No ano 2000, Marcelo disse ao programa da TV Globo “Fantástico” que vinha recebendo ameaças de morte. As pressões contra os indigenistas chegaram ao Congresso Nacional. Políticos ligados aos ruralistas de Rondônia usaram uma comissão do Senado para pressionar Marcelo que, motivado também por questões pessoais, enfim teve que deixar Rondônia. Altair também acabou exonerado de suas funções na Funai em Rondônia, mas regressou anos depois e retomou, entre outras funções, o trabalho de monitoramento do “índio do buraco” até os dias de hoje.
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